17.5.06

tati

Sim, a segunda-feira em São Paulo tem histeria coletiva, toque de recolher informal, trânsito recorde precedendo ruas absolutamente desertas, silêncio e medo.

Mas a terça-feira tem Meu Tio, em película, projetado no Espaço Unibanco de Cinema.

Acha pouco?


Com Meu Tio, Jacques Tati-ator firmou Monsieur Hulot definitivamente no imaginário dos amantes do cinema e na história da arte cinematográfica. Mais: imprimiu uma figura muda que transpira poesia e singeleza em todos os seus modos e gestos, fazendo um retrato de devastadora beleza da simplicidade.

Jacques Tati, o diretor, realizou uma obra-prima do cinema. Em uma carreira de pouquíssimos filmes - ele levaria nove anos, e toda sua energia física e financeira, para realizar outra imensa obra-mestra, Playtime, de 1967 - Tati foi capaz de muita coisa.

Construiu tramas onde não há propriamente personagens, exceto o que ele próprio interpreta e ao redor do qual tudo gira, mas sim tipos, ou, antes, coletivos. Maiores ou menores, são grupos de pessoas em determinadas situações que regem os acontecimentos. Daí, posturas, gestos, inflexões, (poucas) falas, roupas e hábitos são capazes de definir um caráter. E, logo, tecer ácidos comentários sociais e uma arguta e terna observação humana.

Além: das relações dos seres humanos com os espaços que habitam e com os objetos com que lidam, em sua rotina profissional ou doméstica, Tati extrai mais e mais matéria humana cheia de sensações, sentimentos e significados. E são coisas de importância a princípio tão mínimas que só potencializam a beleza cadenciada do poema audiovisual empreendido.

O que Tati faz, com isso, é uma reinvenção, ou antes uma recolocação do espaço e do tempo cinematográficos. Espaço porque seu olhar sabe captar um todo com a generosidade de quem dá muita atenção a cada parte. Sua colocação da ação e dos atores em cena e a relação destes com o cenário que ocupam, e o subsequente enquadramento de câmera daí advindo, são capazes de imagens que inundam os olhos, alentam a alma e paralisam um sorriso no rosto do espectador.

E tempo porque a primazia da imagem ante o diálogo, dos corpos, dos movimentos físicos e das expressões, faz com que se erga, ali no espaço dos 24 fotogramas por minuto, uma pulsão poética própria, um convite à contemplação - em tudo que ela pode ter de voyeurística - da vida, dos seres, dos lugares. O espírito repousa e respira ditado pela duração precisa das cenas de Jacques Tati.

Isso sem sequer começar a mencionar o quanto as gags visuais são inacreditavelmente engraçadas.

Meu Tio, enfim, como toda obra definitiva, oferece prazeres infindos. Que se renovam e se multiplicam a cada olhada. Aqui, Tati e seu Monsieur Hulot representam o mais encantador dos desajustes. Do personagem anacrônico que não se adapta à tecnologia e à multidisciplinariedade dos "tempos modernos" ao cineasta anacrônico que esculpe uma arte sensível e delicada demais para olhos progressivamente embrutecidos.

De um para o outro, dentro do mesmo gênio, indo, vindo, entrelaçando-se.

Jacques Tati é capaz de nos ensinar o que perdemos em nós mesmos.



Como se vê, São Paulo é, mesmo, cheia de emoções.

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