8.8.05

os pecados de todos nós

Houve um dia em que não havia cinema.

E, depois, houve. E o cinema herdou do teatro sua vocação cênico-dramática e de tantas outras artes tantas outras coisas, a ponto de se afirmar, por aí, que o cinema é a mistura de todas elas. Que, quando bem feita, é nada menos do que estupenda – e os exemplos são muitos.

Não raro filmes são adaptados de obras literárias, de peças. Às vezes, querem reproduzir a luz específica de algum pintor. Alguns filmes querem ser dança, outros música.

É certo que não existe uma fronteira, um “certo/errado” que determine o “pode” e o “não pode” quando se trata das fusões de meios de expressão. Tudo pode, a princípio – mais ainda, diz-se por aí, em tempos hipertextuais como os nossos.

Deixando de lado inspirações mútuas lá e cá, atenhamo-nos à tradução intersemiótica, isto é, de um meio artístico para outro, de determinada obra. Quando uma peça vira um filme, ou quando um livro vira um musical, ou quando uma história em quadrinhos vira cinema.

Contrariando quem um dia disse que somente livros ruins dão bom cinema, há dezenas de filmes maravilhosos adaptados de grande literatura. Para ser rápido, “Morte Em Veneza”. Para ser local, “Lavoura Arcaica”. Mas o que Thomas Mann e Luis Fernando Carvalho empreenderam foram, de fato, assombrosas transmutações. Filtraram em seus gênios artísticos uma determinada cadeia de códigos de expressão – a literatura – e transformaram-na em outra, sendo absolutamente fiéis à suas fontes exatamente por serem absolutamente fiéis às suas percepções e ao meio no qual trabalhavam. As obras literárias, nesses dois casos, são pontos de partida.

Uma obra de arte total não carece de transmutação. Se uma peça ou um livro ou um filme resolve-se bem em si mesmo, determina-se, completa-se, não há motivo pelo qual se possa querer transformá-la. Cabe à ética artística, inclusive, pensar o quão “honesta” essa transformação pode ser. Ao deparar-se com algo fascinante, que o comove e preenche, por que não pode um outro artista satisfazer-se somente com essa fruição, tendo, em vez disso, que “tomar para si” esse algo, fazê-lo passar por suas mãos para que vire uma obra também sua? É possível determinar de fato uma linha entre a reverência e o egoísmo, a generosidade de espectador e a sanha possessiva de criador?

Que passe longe desse texto uma condenação sumária. Como já dito, adaptações podem ser sublimes. As artes existem em suas variações para inspirarem-se mutuamente e nada é mais prolífico do que isso. Mas até que ponto uma obra merece ou permite uma revisão?

Cabe sempre perguntar: adaptar para quê? Com que propósito?

Robert Rodriguez nunca foi um cineasta mais do que medíocre e “Sin City”, a graphic novel, é, claramente, para ele, ponto de chegada. Rodriguez, na companhia da fonte inspiradora em si, Frank Miller, operou uma reprodução fidelíssima daquilo que estava supostamente “adaptando”. “Sin City”, os quadrinhos, para virar “Sin City”, o filme, não parece ter passado pelo caleidoscópio sensorial ou criativo de ninguém, diretor ou não. Antes, cineasta, aqui, operou uma busca tecnológica detalhista para fazer o que era desenho virar imagem “viva”.

Mas, cabe perguntar: para quê? Qual é a necessidade de reproduzir algo que já era completo e admirado, acrescentando-lhe o detalhe do movimento?

A tecnologia, antes que gritem os apressados, não é fim. É meio.

Sim, o visual de “Sin City” é mesmerizante. Mas o filme foi feito para que se criasse um visual mesmerizante? Ademais, não são necessários mais de 15 minutos para que toda aquela estética já se torne habitual.

Ou, antes que se possa acusar o signatário de atitudes ditatoriais por tolher vontades alheias, perguntando-se “porquês” e contestando a “necessidade” de se fazer aquilo com que ele talvez apenas simplesmente não concorde, vamos partir para outra espécie de pergunta:

O que, afinal, se ganha com “Sin City”? O que o espectador, afinal, leva?

Um filme chato e vazio. Vencida a novidade do visual, as histórias, fielmente reproduzidas, não se sustentam na tela. Os personagens marginalizados, cicatrizados e “misteriosos” repetem-se, a violência cansa e irrita, o ritmo caduca. A novidade acaba e não há matéria cinematográfica suficiente que a sustente.

(Afinal, quem mandou mexer no que já era bom?)

Não sei o que “Sin City”, a graphic novel, ganha com o filme. Seus realizadores, sem dúvida, inclusive Frank Miller, devem ter ganho alguns trocados. Os atores, muitos deles, ganharam a oportunidade de extravasar em interpretações expressionistas ou calculadamente caricaturais, abandonando o naturalismo.

O cinema, em termos de tecnologia, talvez tenha avançado para ser menos cinema. (Isso é bom?)

Os quadrinhos, até onde cabe saber, vão bem, obrigado. Não ganharam, não perderam.

O público ganha um filme eticamente nojento (“olho por olho”, ou simplesmente, “sangue por prazer” – será?). Mas cabe atribuir culpa a alguém, em meio a tantos “vencedores”, “perdedores”, “adaptadores”, “reprodutores”, aspas e parênteses? Cabe atribuir culpa a alguém, alguma vez?

(Itamar Assumpção e Alice Ruiz diriam que “a vida não ta certa nem errada/ aguarda apenas nossa decisão”. Certos?)

Para voar longe, “Sonhos”, de Akira Kurosawa, reproduziu em movimento algumas telas de Van Gogh. Mas fez só isso? Certamente que não.

Numa discussão que pode durar meses, esqueçamos a validade de “Sin City” ter virado cinema. Mas ressaltemos que virou um cinema nada agradável.

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“Provocação” e “A Fantástica Fábrica de Chocolate” são filmes díspares, mas cheios de pecado – em suas tramas, vale dizer.

O primeiro titubeia em pequenos mas decisivos passos, ao narrar uma boa história, com algumas boas idéias dramáticas. Tropeça feio em Kim Basinger, atriz que nunca teve recursos para papéis que fossem para além de sua beleza.

Há honestidade e vontade genuína de acertar. Ficam, daí, algumas boas impressões.

O segundo tem em Johnny Depp todos os recursos do mundo. Ator de tantas possibilidades, Depp faz um Willy Wonka de cinismo ímpar, comanda o show, rouba o show. Ele é o show.

Tim Burton continua craque máximo em operar um cinema autoral dentro da grande indústria, fazendo concessões e disfarçando-as, para torna-se deglutível. Faz uma fábula sombria e visualmente fantástica – na ampla acepção do termo –, trabalhando a mise-en-scéne com máxima e consagrada habilidade. Embora vá perdendo fôlego rumo ao fim, o filme não deixa de ser, quando lhe cabe, moralmente corrosivo e de bom-humor quase destruidor.

Mas, cabe a pergunta: havia necessidade de refazer “A Fantástica Fábrica de Chocolate”?

Dentro ou fora da tela, eis três filmes que exacerbam os pecados (morais, artísticos, legais) de todos nós.