29.12.08

dias de Madrid - 2.2

o Prado é um desses grandes museus com vastas e deslumbrantes coleçoes de arte européia. se nao é nenhum Louvre, é capaz ainda assim de facilmente ocupar mais de um dia de visita, dependendo da dedicaçao, e definitivamente esgotar qualquer par de pernas.

nao podendo ver tudo, portanto (e até porque já havia bem visitado o Prado na primeira vez), fui direto a Rembrandt, em exposiçao especial e temporária. depois, tratei de caçar as masterpieces que o próprio guia/mapa do museu convenientemente lista para o visitante incauto. das 50 apontadas, vi 40.

sob o título Rembrandt - Pintor de Historias, estavam reunidas obras de quase 20 importantes museus de mais de 11 países, representando telas narrativas e/ou religiosas do pintor holandês. ou seja, uma bênçao, dessas oportunidades raras com as quais se tem a sorte de topar em grandes museus de grandes cidades (em sorte parecida, já vi uma retrospectiva de Georges de La Tour, outra de Jackson Pollock; mais recentemente, Ingres e Bonnard).

Rembrandt:

* a admirável busca pelo movimento, pela figura humana em sua realidade e imperfeiçao orgânica. formas arredondadas e eventualmente "mal acabadas", contrapondo-se ao classicismo apolíneo e perfeitamente harmônico.

* a devoçao a Rubens.

* a luz. fontes de luz fortes, marcadas, precisas e profundas.

* o monocromatismo-cheio-de-cores. às vezes predomina o ocre, às vezes investiga-se formas do esverdeado. apesar de fulgurantes vermelhos, por exemplo, há uma sensaçao de que o artista pinta como se trabalhasse em uma escala de cinzas - é como se as diferentes cores fossem variaçoes de tonalidades de um todo cromático predominante.

* a espiritualidade. as figuras humanas parecem dotadas verdadeiramente de almas. há uma aura metafìsica colada ao assunto da pintura. as composiçoes de luz, por sua vez, fazem com que o quadro em si emane um espírito. difícil de explicar, como se pode perceber, mas fácil de sentir.

* a reter: Simeon no Templo, Jesus e a Mulher Adúltera, Judas Devolvendo as Trinta Moedas de Prata, Descanso na Fuga Para o Egito, todas telas com cenas onde personagens estao inseridos na magnitude do espaço, ocupando-o em harmônico diálogo.

para o lado do intimismo, o desconsolo da casada Betsabé, ao saber que foi requisitada como amante do rei e terá de atendê-lo, e o retrato de Sao Bartolomeu.


A Coleçao

as salas de exibiçao do Prado parecem consideravelmente mudadas em relaçao ao que eram nos tais 10 anos atrás. de fato, na época o museu passava por severas reformas.

comentar (e ter cabeça limpa para apreciar)a coleçao nao é fácil, menos ainda para um neófito em artes visuais.

evidente que repousam ali grandes obras de grandes pintores espanhóis. de Velászquez, Las Meninas já é quase clichê (é a Monalisa do Prado), mas é mesmo (e ainda) fascinante em seu jogo de pintura metalinguística. dele, coloca-se também entre os tais 50 destaques As Fiandeiras, tela capaz de reter os olhos por horas com seu jogo de perspectivas e múltiplas açoes.

mas ouso dizer que irresistível mesmo em sua faísca vital é Os Bêbados, onde um sedutor e faceiro deus Baco brinda com feios e sujos (e malvados?) companheiros de copo. aquele Baco juvenil, no esplendor do poder e beleza de sua juventude, incorpora com malícia e precisao os inelutáveis, irresistíveis e fugazes poder e beleza da juventude, bem como os prazeres mundanos da carne, do espírito e seus catalisadores naturais, como o vinho.

de um vastíssimo acervo de pinturas de Goya, sao destacadas cinco. Três de Maio é figurativamente um clássico da representaçao dos horrores da desavença humana, com sua cena de um fuzilamento. A Maja Desnuda está emprestada para o Grand Palais de Paris (e lá chegaremos em mais alguns dias). A Família de Carlos IV é de fato um eloquente e vistoso plano-conjunto da realeza em todo seu (oco) esplendor.

o poder expressionista de Saturno Devorando Seu Filho é inegável, aquele do ser humano levado ao máximo das circunstâncias e das consequências. faz pensar em Medéia, é claro, o que faz pensar em Georgette Fadel e sua Joana, o que liga Madrid às arenas teatrais paulistanas, Goya e Chico Buarque de maos dadas.

e a surpresa fica com a aparente futilidade, mas de composiçao geométrica e cromática fascinante que é O Guarda Sol, cena idílica da vida campestre em perfeita luz e sombra, azul e amarelos dos mais puros.

a sessao Prata da Casa ainda nos dá El Greco, Zurbarán e Ribera (de quem O Sonho de Jacob nos leva imediatamente à ilha de Lost...), entre outros, mas a talvez mais interessante jóia do Prado esteja também em sua coleçao de arte flamenca dos séc. XV e XVI.

de Rubens, por exemplo, As Três Graças possui a indolência e o encanto da mitologia que coloca os pés na terra. mas o êxtase vem mesmo na sala que reúne três outros grandes artistas.

de Patinir, paisangens-narrativas de tamanha riqueza e dimensionalidade que tragam os olhos para seus horizontes. de Brueghel, O Triunfo da Morte é obra mítica em sua eloquência dramática e conceitual - poderosa e aterrorizante. e de Bosch, se a Mesa dos 7 Pecados Capitais já parece provocativa e instigante, ela é só um ensaio para O Jardim das Delícias Terrenas, o artista sendo surrealista em 1500, num tríptico que instaura o estranho e o onírico na iconografia religiosa e que tira o fôlego com sua riqueza de detalhes e sua imensa capacidade de envolver e fascinar.

e para nao dizer que nao se falou da Itália, Fra Angelico está lá com sua deslumbrante Anunciaçao e Caravaggio, mestre dos mestres, faz A Vitória de David Sobre Golias parecer literalmente uma brincadeira de criança.

*

depois de tanta arte, uma tentativa de assistir a algo no Teatro Real falha e a perna pede arrego. janta-se um sanduíche de jamón e encontra-se o grupo, já tao no final do dia, para um Dunkin Donuts, uma caminhada e um monte de fotos.

dias de Madrid - 2.1

domingo em Madrid. o frio é bastante, mas é ao mesmo tempo moderado, dadas as expectativas e a preparaçao. francamente, o frio é ótimo. eu adoro o frio. o frio civiliza.

prevendo que às segundas-feiras (que seria/será meu último dia em Madrid) os museus fecham, resolvi aproveitá-los, já que o pessoal nao deu mesmo sinal de vida.

caminho até o Prado e o Passeo del Prado é mesmo lindo. horas mais tarde, ando por ele com Camelo em meus ouvidos cantando Copacabana - boulevar por boulevar, ali era a av. Atlântica, por 3 minutos.

ah, o ipod, com quem havia rompido no aviao, retorna à vida e fazemos as pazes. nos amamos muito, nesse domingo.

(alo, alo, Tati, ouvir Beirut na Europa é meio como estar dentro daqueles vídeos!)

a fila do Prado era algo inacreditável - de onde vem tanta gente querendo ver arte? amplos cartazes na porta anunciam uma mostra de Rembrandt (!). ou seja, nao há fila capaz de manter-nos longe disso.

mas decido tentar o museu Reina Sofia, para ver se o Prado desafoga. no caminho, entro em um invernal Jardim Botânico Real.

chegando ao Reina, entradas grátis, mas a multidao é sem dúvida menor.

quando estive no RS, lembro de ter passado por ele muito rápido e ter retido somente Guernica, de Picasso, com precisao. o edifício estava em reforma, inclusive. hoje, ele está ampliado e belo. Guernica continua lá, poderosa e magnética, mas há mais.

sobre o RS, notas esparsas:

* está ali, para quem quiser ver, em carne, osso e óleo sobre tela, um magnífico caminho do figurativismo ao abstracionismo, passando notadamente pelo cubismo e pelo surrealismo. ou seja, é presenciar a história da arte do século XX através majoritariamente das obras de pintores espanhois que sao os próprios mestres das respectivas vanguardas que representam.

* Mulher de Azul, de Picasso, de um lado da parede. Mulher na Janela, de Dalí, do lado oposto. dois quadros explêndidos, onde os gênios nao eram exatamente ainda quem viriam a ser - ou antes, eram exatamente isso.

* ao ver Natureza Morta com Luminária, de Fernand Léger, acontece mais do que só o maravilhamento do olhar. a gente começa a entender como as artes plásticas e especialmente a pintura e especialmente o cubismo fazem Peter Greenaway achar que o cinema está em sua pré-história. avisem lá nos multiplexes da vida que salas em 3D sao essas aqui!

* quase tao interessante quanto olhar as obras é olhar as pessoas durante suas visitas individuais - mais ainda em um domingo com entrada grátis. há os que estao ali meramente cumprindo protocolo (turístico?), há os que nao sabem exatamente porque estao, há os que estao obrigados (quase sempre pelos pais). e há, claro, quem quer ver arte. mas talvez seja a minoria.

* as dezenas de estudos, desenhos e telas que levaram Picasso a Guernica dao a noçao clara de que uma obra-prima nao nasce da pressa nem da negligência. vale a máxima dos 10% de inspiraçao e 90% de transpiraçao.

* ser Miró é pintar uma longa e tracejada flecha sobre uma tela branca, acrescentar uma pequena esfera vermelha em cima e uma azul embaixo, chamar a obra de Pássaro Deslizando no Espaço e ser incrivelmente convincente.

* ao mesmo tempo que é capaz de explosoes cromáticas e sutilezas pictóricas desconcertantes, Miró outras vezes parece que só estava se divertindo muito ao pintar. vale até smiley face na tela.

* e o surrealismo definitivamente nao me interessa muito como expressao figurativa ou estética. algumas telas me atingem conceitualmente, mas pouco, em comparaçao com outros movimentos.


saindo do museu, passo em frente a um estabelecimento que estampa "famoso por seu sanduíche de lulas". nao tive a mais ligeira dúvida e entrei. lulas fritas em escala mcdonística, garçons que gritam uns com os outros, com a camisa aberta sobre a fritura e que nao diferenciam, higienicamente falando, colocar a mao na comida ou no dinheiro, muita gente, muita confusao. mas tudo muito amável. é inusitado comer lulas fritas na baguete, mas delicioso.

caminhada de volta ao Prado. e aqui começa todo um segundo capítulo.

dias de Madrid - 1

Lembra de 2006, quando esse blog virou um diário aberto de viagem? welcome back, portanto!

vôo (é melhor usarmos o circunflexo em "vôo" enquanto ainda dá tempo - a reforma ortográfica vem aí!) bom, mas dormir que é bom, aquela coisa... Madrid às 6.30h e Frank (será que é assim que escreve o nome dele?), amigo da Camila, amiga da Mayara, ambas com quem eu viajava, está no aeroporto, sonado. mas outros virao (o tal acento "til" o teclado vai ficar devendo), porque Camila é presença muito aguardada na Espanha.

metrô (um excepcional metrô, aliás - alo, alo, Daniel!), eles pro apartamento deles, perto da Universidade, distante do centro de Madrid, eu para meu hostal, na Gran Via, coraçao de Madrid.

dormir. uma pena perder tantas horas em uma cidade tao bonita, mas o corpo nao aguenta. no fim da tarde, ressurgimos e fazemos o re-reconhecimento da área. Puerta del Sol, que era exatamente como eu lembrava, exceto que está em reforma, decorada para o Natal e com muito mais gente do que a memória permitia reter.

o grupo aparece (além de Ma, Camila e Frank, há também Felipe e uma segunda Mayara) e quer comer no McDonald´s, afinal, economia é a palavra de ordem. quem está na chuva é pra se queimar, entao aceito.

eu estou vendo bem? McFlurry de KitKat??? frio, sim, mas resistir quem há de (e Victor Mendes, essa foi em sua homenagem!)?

caminhamos pelas redondezas e a Plaza Mayor é tao bonita quanto era, também. mas mais cheia, mais iluminada, mais... fim de ano.

"Voce veio pra cá há dez anos? e muita coisa mudou?", me pergunta Frank.

nao que eu perceba de imediato. "aqui as pessoas saem muito à rua", me diz ele. aquelas calçadas abarrotadas, onde nao se pode parar de andar um segundo, sob o risco de ser sumariamente atropelado, já demonstravam com clareza, e essa era precisamente a minha sensaçao mais forte. acho que todos esses anos, eu queria sair na rua em Madrid (talvez por isso quisera morar aqui, quando estive).

andamos e andamos e nos separamos. ando mais, de volta ao hostal. a vontade é de nao voltar jamais pro quarto apertado, porque em Madrid se deve estar mesmo nas ruas. para onde vai toda essa gente, todas essas crianças passeando pelas calles à meia noite?

mas vou dormir, algo melancólico, com a vontade de descobrir até que horas Madrid nao dorme.

23.12.08

mas eu volto logo pra te ver...

23 de dezembro


23 de dezembro, quase 5 da tarde.

eu estou na produtora, quase sozinho. as pessoas começam a ir embora.

quando eu era criança eu gostava do Natal. ele fazia mais sentido. agora, eu não gosto.

(talvez estivesse mais feliz em Berlin - onde vou estar, em 7 dias).

a série está entregue. 13 episódios, 8 meses de trabalho, um monte de gente que já sente saudade.

Relicário está aí, Calabar esteve, Vinicius Calderoni ainda estará muito.

e tantas outras coisas. e novidades. e reviravoltas. até quando parecia que não dava mais tempo. porque o mundo não é mesmo chato.

2008, enfim.

*

eu ainda queria escrever sobre as peças boas que vi no último mês, sobre um ou outro filme, sobre Madonna. mas deu preguiça.

sobre Madonna, uma coisa: não se é Madonna à toa. e estamos todos ainda sob o feitiço (não estamos?). quem esteve lá, sabe.

*

até já.

14.12.08

Qu'importe le ridicule si tu m'escortes

Tio Vania (*)

SONIA
... Amo-o há seis anos, amo-o mais que à minha própria mãe; ouço sua voz a todo instante, sinto a pressão de sua mão; tenho o olhar preso na porta, à sua espera, e me parece que ele vai entrar no instante seguinte. E, está vendo, a cada minuto corro até você para falar dele. Agora ele vem aqui todos os dias, mas nem me nota, nem me vê... Que sofrimento! (...)

IELENA
(...) Não é difícil saber se ele ama você ou não. Não se envergonhe, meu anjo, e não tenha medo: vou interrogá-lo com tanto cuidado que ele nem vai perceber. O que temos de averiguar é: sim ou não? Se for não, então que não venha mais aqui. Não é verdade? (Sonia assente com a cabeça.) Seria mais fácil se você não o visse. Vamos interrogá-lo agora mesmo, sem demora. (...)

SONIA
Mas você vai me dizer toda a verdade?

IELENA
Claro que sim. Acho que a verdade, qualquer que seja, é menos terrível que a incerteza...

SONIA

Não, melhor é a incerteza... Assim ao menos sempre resta uma esperança...

IELENA
O que foi que disse?

SONIA
Nada. (sai)

IELENA
Não há nada pior do que a gente vir a saber um segredo alheio e não poder ajudar.


*

IELENA
Trata-se de uma jovem. Vamos falar sem rodeios, como pessoas decentes, como bons amigos. Falamos e depois esquecemos qual foi o assunto da conversa. Está bem?

ASTROV
De acordo.

IELENA
Trata-se de Sonia, minha enteada. Gosta dela?

ASTROV
Sim. Tenho por ela respeito e estima.

IELENA

Mas gosta dela como mulher?

ASTROV
Não.

IELENA
Mais algumas palavras e teminou. Não notou nada?

ASTROV

Não. Nada.

IELENA
Leio em seus olhos que não a ama... Sonia sofre... Compreenda isso e... não venha mais aqui.

ASTROV
Já passei da idade... Além do mais, não me sobra tempo... Quando me sobraria tempo?

IELENA
Ah, que conversa mais desagradável! Estou tremendo como se tivesse acabado de carregar nas costas cem toneladas. Bem, graças a Deus terminamos. Vamos esquecê-lo, é como se nunca tivessemos falado e... vá embora. O senhor é um homem inteligente, vai compreender...

(...)

ASTROV
Perdoe-me; não faça essa cara de surpresa, pois sabe muito bem o que me traz aqui todos os dias... Sabe muito bem por que razão e por quem tenho vindo.


*


ASTROV
Finita la commedia!

(...)

Que estranho!... Nós nos conhecemos e, de repente, por uma razão qualquer... não nos veremos mais. Tudo é assim nesse mundo...




(*) Anton Tchekhov, traduzido por Gabor Aranyi