20.2.10

as delícias coquetes de 'Chéri' (e um pouquinho de 'A Fita Branca')


Chéri foi lançado nos cinemas - brasileiros e internacionais - de mais a mais sem grande relevância, perdido entre outras estréias e com pouco espaço em imprensa e/ou atenção do público.

é certo que não se trata de um grande filme, mas notemos que Stephen Frears é na maior parte do tempo um narrador invulgar, de Ligações Perigosas (1988) a A Rainha (2006). mais: trata-se de um cineasta inteligente e que se ocupa verdadeiramente dos temas, das circunstâncias e das implicações morais de seus personagens e seus atos, em seu tempo.

o desenrolar de Chéri é permanentemente prazeroso, apesar de se poder levantar inúmeras acusações contra ele. sim, há música em excesso (mas é uma bela música, não é?) e as causas dramáticas muitas vezes soam incipientes, mas ouso gostar do filme ao preferir frui-lo em uma chave literária - a que, ademais, ele paga tributo, adaptado que é de dois romances da autora francesa Colette, cria legítima da Belle Époque retratada no trio de obras.

o texto de Chéri, dessa forma, possui um sabor específico ao ser escutado como um 'romance em cena' (e Aderbal Freire-Filho que nos permita dizer isso). importa menos que os diálogos soem consistentes em termos das motivações das personagens e mais que eles consigam fazer parte de um determinado jogo da encenação de uma forma artificiosamente relevante.

aos moldes de A Fita Branca, por esdrúxulo que possa parecer o paralelismo, Frears retrata uma determinada dinâmica social e sua conjuntura às margens da História, sintetizando a Belle Époque, sua superficialidade irresistível e suas contradições - frutos legítimos de seu tempo tanto quanto agentes transformadores dos tempos que se seguiriam - momentos antes de sofrerem violento revés com a eclosão da I Guerra Mundial.

e o faz a partir de um estimulante jogo de sedução, paixão, amor, recusa, ciúme, poder e tantos outros sentimentos tão antigos quanto persistentes. e que vêm à tela com um vigor todo próprio.

acompanhar o caso de Lea de Lonval e Cheri é um sentimento sedutor e inebriante em termos cinematográficos mais epidérmicos, no que diz respeito a cores, movimentos, luzes, dinâmicas, figurinos e direção de arte luxuriantes, assim como também humanamente reflexivos, no ponto de chegada do drama. sempre na chave de um realismo 'de mentira', como na leitura encenada de uma obra literária que não necessariamente precisa transcender seu material de origem.

parte desse prazer há de vir sem dúvida de Michelle Pfeifrer, translumbrante em longos cabelos, sofisticados vestidos e muitos sussurros, e de suas cenas de fragilidade e poder com o amante tanto quanto de seus duelos cínicos com 'a sociedade' incorporada em uma Kathy Bates em piloto automático mas nem por isso menos saborosa.

Chéri, esse 'drama de alcova' que é quase uma redução de câmara da grandiloquência de Ligações Perigosas, tem a elegância e o encanto de uma coquete - da frívola sonoridade do termo tanto quanto de seu significado.

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pegando a isca do assunto, sobre A Fita Branca mapear a conjuntura social de ascendência no nazismo, Michael Haneke tem palavras diretas e elucidativas sobre o caso:

Tinha vontade de tratar da educação que impõe valores absolutos às crianças, que acabam por interiorizá-los. Queria mostrar que, se têm o caráter formado a partir de um princípio absoluto, elas se tornam inumanas. Cada ato terrorista, cada manifestação de fanatismo, seja ele político, religioso ou de outra natureza, é alimentado por essa fonte de intransigência. Qualquer idéia se torna perversa se tem, como ponto de partida, o autoritarismo. Esse é um tema universal, que não tem ligação direta com a problemática alemã. O filme não é sobre nazismo.

palavras secas e depositárias de uma inquietante (e, por que não?, "óbvia") verdade, tão perturbadora quanto facilmente relegada. e que encontra no filme uma dramatização rigorisíssima e sufocante, uma espécie de cinema que vai ao alvo dos instintos e dos sentimentos mais inelutáveis para provocar em verdade o intelecto. um cinema que Haneke faz como ninguém e que chega como míssil em quem se dispõe a encará-lo de frente.