27.1.10

Douglas Sirk impõe a essência do melodrama

por INÁCIO ARAÚJO

A coisa mais impressionante nos melodramas de Douglas Sirk é isso que se pode chamar de "o olhar do cego".

Seus personagens, no entanto, nada têm de cegos, caso de Fred McMurray em Chamas Que Não Se Apagam.

Ele é um próspero industrial numa cidadezinha do interior, casado com Joan Bennett, que em outros carnavais já foi bem mulher fatal.

Mas quem surge (ou ressurge) na vida do industrial é ninguém menos que a atriz Barbara Stanwick, a essência da "femme fatale".

Ora, o bom homem ficará suspenso entre sua linda casa e seus belos filhos - ou seja, essa vida pacata e, vamos admitir, insossa que as coisas muito certinhas propiciam - e a tremenda atração que sobre ele exerce a outra.

Desde então ele vê, mas não enxerga o mundo: por mais que olhe, ele só vê a si memso, ali onde o mundo desmorona.

O melodrama é fundamentalmente isso: não uma choradeira, mas a percepção de que a vida realmente não perdoa.

11.1.10

Nova York - dia 10: um arremate Romântico

(um tempo considerável passou e agora esse relato tem tudo menos o calor do momento. então vai ser na base do resumão...)


Fela! é o novo musical da temporada outono/ inverno que qualquer resenhista de qualquer publicação vai te jurar que é imperdível (entre 'melhores do ano' e afins). tendendo a ter um fraco por críticas persuasivas, lá fui conferir a história de Fela Anikulapo-Kuti, com direção e coreografia de Bill T Jones e produção apadrinhada por Jay-Z e Will Smith.

antes de peça, é um recital. chamam-no de "o mais original musical em cartaz na Broadway" e há uma medida de verdade nisso no sentido em que ele faz de uma maneira que nenhum outro faz. a forma é a chave.

um enérgico e estrondoso ator, Kevin Mambo (revezando-se com Sahr Ngaujah), literalmente conta a história de Fela, compositor, músico, cantor e ativista revolucionário. pequenas cenas são encenadas, mas a coisa toda funciona mais como show.

o intuito é envolver o espectador na atmosfera do bar original que Fela possuia na Nigéria em seus anos de esplendor musical e político, onde todas as noites fazia grandes apresentações sonoras e inflamados discursos contra a ditadura governante (e o Imperialismo Britânico).

o teatro inunda-se em Afrobeat, nas canções de Fela, em improvisos intrumentais, em coreografias eletrizantes, cores, projeções, atores e dançarinos movidos a poderosas baterias movimentando-se pela platéia e por todos os outros lugares que eles conseguem preencher com corpos que parecem bombas artísticas.


em 12 espetáculos vistos na cidade, não há nem de longe aplausos tão calorosos e entusiasmados quanto aqui - e a platéia até é convidada a ficar de pé e dançar em dado momento, o que faz sem qualquer inibição. isso transmite a medida precisa de quanto fascínio a arte de uma cultura "exótica", quando bem representada, pode exercer, levando o público a lugares onde ele realmente não fora antes.

legítimo e honesto a seu biografado e aos princípios de fazer viva uma manifestação artística específica e especial, vigorosíssimo em sua realização, Fela! não é o tipo de musical que exatamente faz minha cabeça, embora assisti-lo (ou, antes, experimentá-lo) seja um grande prazer.

e pode-se dizer seguramente que, evitando folclorizações e escapes fáceis ao "estrangeiro", temos aqui, sim, algo de intensa originalidade.

*


Os Contos de Hoffmann, no Metropolitan, com direção do mesmo Bart Sher de South Pacific, veio vingar a letargia e o peso da Elektra vista aqui alguns dias atrás.

a partitura solar e fragmentada de Offenbach vaz vibrar sua leveza em uma encenação delicada, caprichosa, cheia de pequenos detalhes e prazeres. seja na inebriante área de Olympia, cantada com brio e sutil fantasia pela understudy Rachele Gilmore, à intensidade dramática quase fantasmagórica da cena de Antonia, no corpo de Anna Netrebko, a sensação é de uma sedutora e apaixonante viagem pelos sentidos.

(conduzida ela toda com o exato senso de inteligência, o interessante distanciamento e as qualidades dramáticas com que Kate Lindsey interpreta/ canta o duplo papel de Nicklausse/ Musa.)


cores, texturas, luzes, sombras, coreografias, movimentos, tudo gira com a mecânica simples e precisa de um carrossel - o que, de certa forma, dramaturgicamente o libretto sempre fez mesmo.

espetáculo de sonho e encatamento, uma pequena refeição para a alma, um arremate refinado para a temporada de espetáculos nova-yorquinos.

1.1.10

Nova York - dia 9: tarde de esplendor colorido e musica de à noitinha



é um dia de quase tudo fechado, então por que não dormir até mais tarde, tomar um café da manhã que é quase almoço e se enfiar no cinema?

seguindo a recomendação mandatória de Marco Dutra, decido ver Avatar em "um Imax de verdade, e não esse Imax 'de bolso' que a gente tem aqui no Pompéia". então tá.

bom, a sala de cinema é um negócio realmente monstruoso - defronte à primeira fila de cadeiras há um pequeno abismo. sessão lotada, uma voz falando no auto-falante para as pessoas não deixarem cadeiras vazias entre si, trailers que passam antes da hora marcada.

e o que dizer sobre Avatar? realmente não sei, porque acho que já se disse tanto... em página dupla num anúncio no Times esses dias, era possível ler, por exemplo (em tradução livre e preguiçosa):

* "Abrace o filme - certamente a mais vívida e persuasiva criação de um mundo de fantasia jamais visto na história do cinema - como uma experiência totalmente sensorial, sensual, voluptuosa. 'Avatar' é uma experiência de ponta que, nos anos por vir, definirá aquilo que os filmes podem alcançar." (Richard Corliss - TIME)

* "Restaura um senso de maravilhamento à experiência cinematográfica que estava em falta há tempo demais. O choque e espanto de 'Avatar' merecem ser vistos. Você nunca experimentou algo como ele, assim como ninguém mais. Ver 'Avatar' é sentir que você entende o cinema em três dimensões pela primeira vez." (Kenneth Turan - LOS ANGELES TIMES)

* "Vendo 'Avatar' eu me senti mais ou menos como quando vi 'Star Wars' em 1977. O filme de James Cameron tem sido assunto de um incansavelmente dúbio falatório antecipado, assim como o seu 'Titanic' foi. Uma vez mais, ele silenciou os duvidosos simplesmente entregando um filme extraordinário. 'Avatar' não é simplesmente um entretenimento sensacional, embora ele seja isso. É um evento, um desses filmes que você sente que precisa ver para não ficar de fora da conversa." (Roger Ebert)

* "Glorioso. Se a história de um paraíso encontrado e potencialmente perdido parece ressoante é porque 'Avatar' é tanto sobre a nossa Terra quanto o universo que o sr. Cameron inventou. Mas o mais verdadeiro significado do filme está na audácia de sua realização." (Manohla Dargis - NEW YORK TIMES)

todos esses críticos estão certos, a seu modo, até na medida em que determinadas afirmações precisarão passar pela prova dos anos. para mim, Avatar é o encontro de tantos filmes e referências e experiências e aspectos mitológicos. o mundo intergaláctico de Star Wars, as sociedades e criaturas de Senhor dos Anéis, o encantamento juvenil que tanto me marcaram em Caravana da Coragem, o gênio e pioneirismo de 2001 (não importa quão longe se vá, o homem não escapa de si mesmo), O Novo Mundo de Mallick e a terra maculada, a destruição da cultura nativa, a força da grana que ergue e destrói coisas belas.

em verdade, a metáfora política é quase um panfleto de tão evidente, mas as questões da dominação colonizadora (e aí Malick está lá de novo, acenando na dianteira) empreendem uma reflexão não banal sobre natividade, oposição, Maniqueísmo, o olhar sobre o outro e a mudança que esse olhar sofre diante da efetiva possibilidade de estar em seu lugar.

quem diria que James Cameron é um pacifista e que quer nos dizer que raça, ou aquilo que somos, não é uma predestinação, mas um estado mutável - no fim das contas, somos aquilo que sentimos/ queremos ser, onde pertencemos.

visualmente, acho tudo mesmo um desbunde.

(e as cores, meu deus, as cores... esses diretores de arte devem ter se afogado em Picasso - da fase azul, especificamente - Kandinsky, Paul Klee e tantos etcs...)

na história de qualquer arte, raramente costuma ser à toa que se passa tantos anos sobre uma realização. e nesse sentido, o filme é um império de enorme porte, beleza e significado.

a tecnologia importa na medida daquilo que ela é capaz de fazer. toda a história poderia ser contada sem um segundo de 'efeitos especiais'? claro que sim (como dissemos, Terrence Malick o fez). mas ela não é, aqui, e esse é o ponto. os 'efeitos' passam a ser toda a realidade cinematográfica em si e isso, em termos imaginativos, fantasiosos e escapistas é de fato o que conta.

as qualidades de Avatar, hoje, são ir aonde ninguém foi antes. e me parece que esse sentimento é vivo não por raciocínio intelectual, mas pelas mais primitivas respostas sensoriais, físicas, emotivas e estéticas advindas da experiência que se tem em sentar e assisti-lo.

pelo menos em Imax 3D "de verdade".

(ah, e Sigourney, né?, pondo aquela dignidade na coisa toda... e era só eu que, desde Lost, morria de saudade da masculinidade de Michelle Rodriguez?)

*


A Little Night Music é uma montagem que eu realmente não veria de novo, em tão curto espaço de tempo, não fosse pela atração inescapável exercida pelas presenças de Catherine Zeta Jones e Angela Lansbury no elenco (e, afinal, elas estão lá para isso mesmo).

ao ver a exata mesma produção em Londres, em maio, escrevi:

Para fechar tudo com chave de ouro, no entanto, houve A Little Night Music. E por mais que Marco Dutra sempre houvesse me alertado das delícias das partituras de Stephen Sondheim, há coisas que nós temos mesmo que aprender sozinhos - ou, na melhor das hipóteses, guiados por uma montagem tão afinada quanto essa. Não há nada fora de lugar, mas a alma de tudo é sem dúvida um elenco que canta tão bem quanto atua e que valoriza com perfeição as muitas nuances (cômicas) do texto. Ressoam pelo palco as comédias mordazes de Oscar Wilde e os labirintos sentimentais de Tchekhov, amarrados em música e cena que são puro deleite intelectual e estético. Não poderia haver melhor final de temporada londrina, nem melhor porta de entrada de uma paixão por Sondheim."


continuo achando a mesma coisa, mas algo do frescor se esvai na reprise. em particular, o elenco londrino parecia estar sempre em maior domínio do jogo de cena, indivual e coletivo.

Angela Lansbury é uma lenda e vê-la não tem preço. ela passa pela peça sentada (literalmente) sobre o talento burilado em 84 anos de vida, tantos deles dedicados aos palcos. é perfeita em cada segundo, mas é uma coadjuvante. a atuação de Maureen Lipman em Londres, por exemplo, não deve em absolutamente nada a de Madame Lansbury, no sentido em que essa última não cria um personagem memorável ou arrebata com uma força ou personalidade específicas. seu trabalho é tão afiado quanto pode ser o de qualquer grande atriz, mas trata-se de uma execução, somente.

já Catherine Zeta Jones poderia aprender com Hannah Waddingham, sua equivalente londrina, algumas sutilezas da fina arte de estar ao vivo diante da platéia. Jones desfila pelo palco como se não pudesse conter sua sensualidade e poder de sedução. a flechada da luxúria é efetiva, por certo, mas excessiva também. como disse um crítico, ela atua como se fosse Velma Kelly, sua famosa personagem na adaptação cinematográfica de Chicago, tentando conviver com as convenções da vida social na Suécia da virada do século (passado).

não é nem que Zeta Jones não tenha o wit. mas ela não parece destilá-lo nem nas doses precisas, nem no tempo correto. de onde não se deve inferir, no entanto, que sua performance é uma catástrofe - não é. é satisfatória e o público certamente se encanta. mas lembremos que eu, aqui, tenho uma base muito próxima de comparação, de uma atriz no mesmo papel, na mesma montagem e no melhor de seu jogo. nessa, portanto, Catherine Zeta Jones sai perdendo. como atriz de teatro é quase todo o tempo uma fulgurante estrela de cinema.

na mais estranha das reviravoltas irônicas, no entanto, em seu grande momento, a bela canção Send In The Clowns - a qual Marco Dutra me ensinou que deve ser cantada sem arrebatamento musical e com um complicado equilíbrio entre melancolia triste e resignação confortante -, a estrela de cinema baixa a guarda e a atriz brilha. brilha de verdade. humaniza-se, deixa passar por si um raio de energia honesta, como se conseguisse acessar, ainda que por um momento, a verdade e a essência dessa Desiree Armfeldt. ali, ela vale o show.

Nova York - dia 8: uma pausa de mil compassos

desde criança, fui ensinado a significar as datas. eu adorava o Natal, o encontro, o entusiasmo, a espera, o Papai Noel, a casa da minha avó, os presentes, o dia, a noite, os primos, a energia coletiva e até mesmo essa esperança, que hoje meu cinismo vê como patética, das pessoas tentarem praticar coisas como paz, harmonia e amor (como se esses estados de espírito tivessem hora marcada).

hoje eu detesto o Natal e tudo o que eu mais quero, todo ano, é poder fazer com que ele simplesmente não exista - obrigado, eu finalmente consegui!

acordo para alguns consumismos pontuais e demorados, que acabam me levando a Greenwich Village. estou na rua 8 e decido que o melhor caminho de volta à 59 é andando. que mal podem fazer 51 quarteirões em uma tarde de frio e sol em Manhttan, certo?

e os percorro em zigue-zague, entrando em Barnes & Noble, Dunkin Donuts, dando com a cara na porta da Drama Bookstore (o que foi realmente muito triste), comprando presentes no MoMa.

e o faço na excelente companhia de Chris Garneau, Wilco, Pato Fu, Roberto Carlos, Los Hermanos, Cazuza, Radiohead, The Smiths, Tiê, Nina Simone, Astor Piazzolla, Caetano Veloso, Stars, Jon Brion, Arnaldo Antunes, Marisa Monte, David Bowie, música para cortar os pulsos, muitas delas.

quando chego de volta ao hotel, é noite. dou os presentes comprados e saímos para jantar no convidativo e descomplicado Serafina, com os mais do que agradáveis amigos de papai.

vinho, comida boa, conversa divertida, uma 'noite feliz' como outra qualquer.

quem precisa de Natal?