10.8.10

ninguém nunca vai saber

...eu sabia que um monte de gente ia olhar pra mim com pena e querer me abraçar e beijar e tocar em mim e eu não queria nada disso, só queria ficar bem quieta e encolhida no meu canto, chorando ou gritando exatamente como eu fiz no chuveiro, esmurrando os azulejos e dobrando o corpo sem força como se ele fosse escorrer pelo ralo que era na verdade o que eu queria ou o que parecia que ia acontecer e também olhando pra dentro de mim mesma porque só eu sabia o que era aquilo, aquela dor, aquela queda looooooooooooooooooooooooooooooooooooonga, contínuacontínuacontínuacontínuacontínuacontínuacontínuacontínInfinita infinita infinita
três vezes infinita, infinitas vezes infinita, sem super herói pra vir salvar mas também sem gravidade, como se eu caísse da lua pra dentro do espaço, um grande nada, um vácuo sufocante, prestes a me despedaçar e ninguém sabia o que eu estava sentindo, ninguém jamais iria entender o que é ter que ver o Tio Tuta indo embora, então por isso eu não quis ver, não quis ver cadáver, não quis ver caixão, não quis chegar perto e enxergar uma tampa de madeira sendo colocada em cima da pessoa que me ensinou tudo o que eu sei e tudo o que eu sempre soube, tudo o que eu era e sou, a pessoa pra quem eu queria mostrar as coisas bonitas que eu fizesse, de quem eu precisava do consentimento e aprovação, e pra quem eu vou mostrar as coisas agora?, pra quem eu vou fazer as coisas?, para quê eu vou fazer?, e que me mostrou todos os lados mais divertidos da vida e as belezas dela e também algumas atrocidades e agora a maior delas porque ele ir embora era a pior de todas e eu não queria participar daquilo para ver se de repente percebiam que estava errado e era mentira e cancelavam tudo e o tempo voltasse atrás e o desespero não existisse; as pessoas que falam em vazio falam porque não querem perceber direito que não tem nada de vazio, é uma grande cheia, um vulcão transbordante de lava entrando em erupção e te queimando toda e subindo pelos seus pés, e seu espírito trancado dentro de um túnel cheio de terra, querendo cavar pra não sufocar em tanta tristeza, e cavando é como se cada punhado de terra fossem todas as lembranças mais palpáveis que você não quer que deixem de ser palpáveis, então na verdade você quer cavar para não se asfixiar mas você também não quer parar de cavar porque quer sentir de forma táctil, e não quer parar de sentir e de entender mas não se entende nada porque ninguém te prepara pra isso, ninguém nunca te avisa que essa sensação existe, te preparam pra um monte de responsabilidades e dizem que a vida vai te ensinar muitas coisas e alertam que nem sempre tudo é alegre e prazeroso mas ninguém te conta que isso é possível, esse momento, isso aqui agora, alguém tira isso daqui, de mim, alguém me tira de mim e todos me deixem sozinha porque ninguém nunca vai saber, sozinha, só nós, só ele sabe e só eu sei e por que ninguém te conta que existe uma queda livre para dentro, uma explosão que despedaça partes de você que você nem sabia que existiam, ninguém, nada, nunca.

9.8.10

em 67


O excelente documentário Uma Noite Em 67 opera destreza, reflexão e prazeres em alguns niveis:

- Surgido em época na qual documentar é tão banal, o documentário trabalha justamente no resgate de um documento histórico único, valioso e ocorrido em um momento em que o registro audiovisual significava outra coisa - tendia a ser portentoso, histórico, testemunha ocular insubstituível de um momento. E, buscando seu documento em arquivos de outrém (especificamente nos da TV Record), ocupa-se em acrescentar a ele pontuais, elegantes e não menos valiosos complementos.

- Possui aquela atmosfera melancólica e efusiva de álbum de retratos e dá a ver a gênese de gigantes - uma experiência sempre efusiva, melancólica e desconcertante.

- Vinga o atabalhoado e trôpego Dzi Croquettes, mostrando como se opera linguagem, discurso, bom gosto e raciocínio cinematográfico. Empreende um documentário, portanto, digno da alcunha.