24.3.09

talvez dessa vez



semana passada teve show de Ute Lemper, um vulcão em forma de performer que arrebatou a Sala São Paulo e conduziu a platéia na palma da mão durante todo o seu recital.

a Orquestra Sinfônica Municipal emoldurou uma voz poderosa de uma cantora-atriz, ou atriz-cantora, que parece ter nascido para cantar (e interpretar) o que canta: Kurt Weill (com e sem Brecht), Gershwin, compositores diversos do repertório de Edith Piaf e a dupla Kander e Webb.

e foi justamente com canção dos dois últimos, "Cabaret" (do musical homônimo), que ela começou seu show feito furacão e nos fez lembrar o porquê de amarmos tanto os musicais, as músicas, as cantoras, o show.

*

daí, por ocasião do aniversário de um querido amigo, relembramos ao piano, no mesmo dia do estrondo da Srta. Lemper, Maybe This Time, canção que também faz parte do score de Cabaret.

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daí Natasha Richardson morreu.

e eu senti uma falta tão legítima de Natasha Richardson no instante mesmo em que fiquei chocado com a notícia de sua morte, que me vi perguntando: por que mesmo eu gosto tanto de Natasha Richardson?

pesquisei sua filmografia e não havia ali nada que desse muito motivo para tanta admiração. então a resposta só podia estar no teatro.

eu lembro quando Richardson estreou na Broadway em Closer, em papel que depois foi de Renata Sorrah e depois de Julia Roberts. e lembro quando ela fez Blanche Dubois em Um Bonde Chamado Desejo. mas eram lembranças do simples conhecimento do fato e não memórias vividas.

mas havia o disco da remontagem de 1998 de Cabaret, na qual ela e Alan Cumming eram os donos do palco. a esse espetáculo eu de fato assisti, ainda que sem estes dois atores. mas a gravação em cd tocou por muitos e muitos anos na minha vitrola e na minha cabeça, e foi ela que me levou retroativamente ao filme de 1972, com Liza Minelli.

conclusão: mesmo não tendo-a visto como tal, ter ouvido Natasha Richardon por tanto tempo como Sally Bowles fez com que eu a tivesse conhecido assim, de alguma forma. por caminhos tortos mas tão corretos, ela era a minha Sally Bowles, a primeira, antes mesmo de Liza, a original.

e perder uma Sally Bowles é perder muito.

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um dia depois, aquele mesmo amigo do piano me telefona e não responde ao meu "alô". ouço alguns barulhos e não levo mais do que 2 segundos para entender: do outro lado da linha, ao vivo, aqui de São Paulo, Liza Minelli cantava Maybe This Time.

dirigindo de volta pra casa, eu estava subitamente emocionado. e achando que o mundo tem suas graças.

*

em vídeos ruins, Natasha como Sally, cantando Maybe This Time e Cabaret, unindo Ute Lemper, Liza Minelli, passado saudosista, presente luminoso e trágico, alguma idéia boa de futuro.

(especialmente em Cabaret, é impressionante a força da atriz-cantora. sua voz jamais seria a de Liza ou Ute, mas a transformação que seu rosto opera ao longo da canção é simplesmente de tirar o fôlego).



17.3.09

dramaturgia dos atores



A “dramaturgia da cena” é uma constante forte demais no teatro recente (para não dizer “contemporâneo”) para não ser encarada como uma espécie de movimento. Não que seja inédita ou uma exclusividade dessa década, mas é fato que se prolifera e arrica se firmar como tendência (um conceito que pode ser muito abominável em sua natureza) essa intensa participação do ator na construção (e não só na transmissão) do texto dramatúrgico.

Explicando: fala-se aqui de peças em que a base da comunicação teatral – o texto – muitas vezes nem sequer existe de antemão, sendo encontrado e moldado a partir de vivências, pesquisas, experimentos e ensaios. Ou, em outros casos, todo o repertório dos intérpretes e suas maneiras práticas de abordagem de um tema ou história é que enriquecem e transformam um texto que de fato existe (às vezes em forma não-dramática - por exemplo, um conto) como ponto de partida.

Os exemplos são muitos e caminham de mãos dadas com uma já desgastadamente apontada realidade da cena dessa década, que é o “teatro de grupo”. Entre tantos outros, Cia. Livre, Grupo XIX de Teatro, Cia. Luna Lunera e Grupo Espanca! demonstraram sucesso nessa seara. Com resultados frescos e surpreendentes (“Por Elise”), densos e reveladores (“Arena Conta Danton”), intensos, inventivos e delicados (“Aqueles Dois”, “Hysteria”, “Arrufos”) ou simplesmente sublimes (“Negrinha”).

E quando, afastado do grupo, um ator coloca-se sozinho nessa jornada de erguer um espetáculo, sem um autor que o apóie? Ou, antes, quando o autor é ele mesmo, antes ou durante a composição da cena?


É nessa experiência que Felipe Rocha se atira em Ele Precisa Começar.

Para todos os efeitos, o experimento de Felipe dá certo porque ele é ator de uma profunda simpatia, no sentido mais amplo do termo. Suas idéias podem parecer – porque em certa medida são mesmo – dispersas e digressivas, pedaços flutuantes em busca de um todo. Mas o eixo central de sua performance é a sua própria presença e sua capacidade sempre precisa em provocar a busca por imagens ativas e poéticas extraídas de suas palavras. Ele pode não estar dizendo um texto com progressão dramática ou relações causais claras, mas os elementos que traz para a troca estética e emotiva estão sempre vivos, sempre instigando atmosferas e sensações, sempre causando algo, seja o riso (na maior parte das vezes), o incômodo ou a sentimentalidade.

Ele Precisa Começar começa com a falsa idéia de um experimento cênico de câmara e agiganta seus espaços (físicos e semânticos) com uma sacolejante explosividade. É como um elefante numa loja de porcelanas – exceto que o elefante canta e dança balé entre as louças, sem jamais derrubá-las.

(Isso sem contar que a cena em que o ator protagoniza um memorável embate com o revisor ortográfico de seu computador é desde já para não se esquecer.)