29.4.10

hora de despertar



A questão não é gostar ou não gostar da produção brasileira do musical O Despertar da Primavera porque não é ela que importa, aqui, para mim. Eu não gostava de O Despertar da Primavera. Essa resposta eu já cheguei ao teatro sabendo.

Em maio de 2009, pela ocasião de tê-lo visto encenado em Londres, escrevi:

... se em Rent as canções eram muito mais carismáticas e o espetáculo radiografava com alguma precisão o tal “espírito do tempo”, quando de seu lançamento em 1996, Spring faz a crônica generalista de uma idéia de adolescência que soa francamente anacrônica e aproxima-se perigosamente da ingenuidade tola. Ou, em outra chave, talvez só eu esteja velho demais para me envolver com questões tão estritamente juvenis tratadas sob uma ótica de desajuste já por demais desgastada (e já incontornavelmente pouco verdadeira).


Não acho que eu esteja velho demais, não acho que nenhum de nós esteja. Mas fiquei horrorizado feito um avô sensível ao testemunhar a adoração que o espetáculo provoca numa juventude (arquetipicamente adolescente) paulistana que não tem (ou não deveria ter) nada de ingênua, não - a começar pela iniciativa de gastar um bom dinheiro com o ingresso, em mais de uma ocasião, já que a taxa de reincidência da platéia é notável no momento mesmo em que se ouvem os primeiros acordes das canções.

Se fosse só um caso de má arte (e é), o susto poderia ser menor. Porque a força da grana que ergue um determinado tipo de "competência" capaz de impressionar o público, isso já estamos carecas de conhecer. E no sentido artesanal, técnico, não há dúvida de que é competência o que vemos.

(E reparem, por gentileza, que nenhuma vírgula desse texto diz respeito especificamente à adaptação nacional e/ou a maneira como a equipe criativa local optou por encenar o espetáculo. Isso não é uma crítica aos colegas e jamais será. O ponto, aqui, é a matéria prima original e a forma como ela opera sobre e é processada pelo público).

O negócio é que tudo é completamente datado, chato, careta, moralista. Estamos num teatro musical que dá uma roupagem rock, devidamente enérgica e/ou sentimentalista como a grande música pop gosta de ser, a um drama teenager passado na Alemanha de 1891. Vou repetir: mil oitocentos e noventa e um.

Assim como as comédias 'adolescentes' de Shakespeare encenadas hoje ou amanhã em um palco perto de você cintilam de inteligência, sagacidade, luz e brilho dramático, provando-se "imortais" e "eternas" em sua radiografia do ser humano de qualquer tempo, esse deve ser também o caso desse texto clássico do teatro, então?

NÃO
.

Como é possível se identificar com uma dramaturgia tão pífia, banal e frouxa, claudicante, apressada, que opõe forças construídas de maneira rasinha, rasinha, chegando a ser ofensiva?

- Eu sou um garoto de 16 anos, mas o sexo oposto é pra mim um mistério insondável e proibitivo.
- Eu sou praticamente uma mulher, mas ajo sentimentalmente (e discurso) como se tivesse cinco anos.
- Eu apanho do meu pai, sou terrivelmente infeliz.
- Oi, como vai?, eu não sinto nada, me bate, mas me bate forte?
- Eu sou bichinha do modo mais idiota que eu poderia ser.
- Eu vou repetir de ano então talvez seja melhor eu me matar e, opa!, me matei mesmo.
- Eu fiz sexo e fui punida com uma gravidez e tive que abortar e, opa!, morri.

O QUÊ? Cê tá falando sério?? Uma bunda, um peitinho, um "vai se fuder" e nós somos "ousados"? E os adolescentes efetivamente se identificam???

SIM.

Pelamordedeus, alguém me salva! Alemanha, 1891, é você batendo na porta?? Não tem como o sujeito não se deprimir.

Em primeiro lugar, porque talvez a resposta seja, de novo,"sim": 1891, seja bem vindo. Estaria o pêndulo da História Moral da Humanidade em seu lado mais reacionário e insuportável?

Porque se as Grandes Questões são essas, se fazer sexo é a maior transgressão de que um espírito jovem é capaz, se uma peça existe para retratar uma juventude aprisionada que desafia valores, mas na qual os amantes, o questionador, o ateu, o intelectual, os que pensam e raciocinam e realmente reagem para sair da roda-viva são sumariamente punidos, expelidos, massacrados, onde está o chamado à transgressão? Onde está a ousadia? A rebeldia tem valor (e exala energia de ação) quando exposta operando de forma tão avessa?

Será esse mesmo o grau de cegueira e castração das liberdades/ vontades individuais em que vivemos? Essa peça faz sentido por refletir com precisão a juventude que vai assisti-la ou para dizer-lhe "viu, querido, como os tempos já foram piores? que bom que hoje papai te traz ao teatro, até, né? agradeça pela vida que tem!"???

E, nesse caso, ela faz isso organizando o que não deixa de ser uma celebração em torno do moralismo paternalista, sufocante e conservador?

Em segundo lugar, é possível somente (somente?) que a oferta de arte que de fato dialogue com honestidade com adolescentes seja tão escassa que um negócio desses passa bem (como outras coisas vem passando há anos). É uma latente possibilidade (ou uma peremptória verdade?).

Em qualquer uma das duas hipóteses, no entanto, vem a calhar que As Melhores Coisas do Mundo esteja aí para mostrar que não é bem assim.

Mesmo que um crítico que muito respeitamos aponte no filme, com alguma propriedade, justamente uma visão edulcorada da vida e de suas possibilidades de redenção, a complexidade do mundo que a dramaturgia dele apresenta e a maneira como ela de fato estabelece pontes sólidas de contato com uma realidade imediata (daquilo que é a subjetividade juvenil hoje e as circunstâncias do mundo possíveis de nela interferir), demonstram articulação, "atualidade" e honestidade tão infinitamente superiores que colocam a obra de Wedekind de onde não há motivo para ela ter jamais sido tirada. Ou seja: 1891.

E pra completar, não há uma, uminha só música capaz de cativar ou empolgar. Nada que você consiga sair do teatro feliz por ter ouvido.

Mas a joça faz sucesso (aqui, em Londres, em Nova York...). Estamos fritos!

18.4.10

carta para vocês de 'as melhores coisas do mundo'



Você certamente não se lembra, Laís, mas lá se vão quase 10 anos desde que eu te mandei um email depois de ter ido ver Bicho de Sete Cabeças com meus colegas de faculdade, em uma sessão no Espaço Unibanco de Cinema, sexta-feira à tarde, dia da estréia. A sala estava cheia de jovens como nós então éramos e lembro de meu entusiasmo duplo: naquele alvorecer da profissão que eu decidira seguir, comprovar que havia um cinema brasileiro possível e que ele chegava a seu público. Sobre isso te escrevi, no entusiasmo daquele momento, e você respondeu meu email – lembro-me com clareza. (Você inclusive me disse para mandar meu currículo já que, quem sabe, estudante que eu era, talvez não surgisse um estágio na produtora de vocês. Eu nunca mandei.)

Ontem fui ver As Melhores Coisas do Mundo, novamente no dia de estréia, mas agora sem os mesmos amigos, já há muito formado, avançando em anos no exercício da profissão. Eu mesmo, agora, já criei e dirigi uma série de televisão para adolescentes, além de ter passado por tantas outras experiências audiovisuais.

E por algum motivo relutei a entregar-me a seu filme, incomodei-me com a apresentação dos personagens e conflitos, não acreditei neles de imediato. Mas de uma hora pra outra, magicamente, eu estava pego. Ouso precisar em qual momento: a conversa de Mano com seu irmão mais velho sobre a primeira experiência sexual de ambos, construída sobre uma honestidade narrativa que dali em diante só faria crescer.

Eu então consegui finalmente sair de mim e abandonar os tantos assuntos e preocupações que ultimamente teimam em não largar minha cabeça (não importando a qualidade da arte que elejo para assistir). E, fazendo isso, espatifei-me em cheio contra mim mesmo.

Passei pelo que deve ser a experiência padrão dos adultos que vêem o filme com o coração aberto: senti-me um adolescente, encantado pelo frescor de sensações e descobertas que soavam tão antigas e tão vivas, indesviáveis, arrebatadoras. E falo em “experiência padrão” sem medo de me inserir no clichê, porque só os clichês são verdade (e será que eu já sou adulto?).

Ensaiei ressentir-me da velocidade dos acontecimentos, do ar de painel que advém de uma multiplicidade de pequenos dramas, da duração rápida das cenas. Mas o outro jeito de olhar para isso é achar que a vontade de que as cenas perdurem são reflexo da qualidade humana que elas engrendram. A travessia dos lugares comuns é a consciência de que, meu deus!, como a adolescência é, mesmo, cheia de lugares comuns - só os clichês são verdade.

Luiz, obrigado por batalhar para que estereótipos sejam representados como arquétipos, que é o que são. Por escrever jovens que não fogem muito à regra de como os imaginamos porque eles são, enfim, como os imaginamos. O que inconscientemente sempre achamos que sabemos deles são o que eles nos mostram. E que sabemos, enfim, porque estivemos lá, não estivemos?

Francisco, obrigado pelo seu olhar portador de todas as dores do mundo e capaz da alegria mais genuína. Obrigado, Francisco, pela verdade. E por aquele sorriso que encerra o diálogo final, uma das coisas mais lindas do mundo.

Paulo e Caio, obrigado por envelhecermos. Pela maturidade. Por assumirem com tanta propriedade papéis de mentores de personagens que até outro dia eram vocês que faziam. Paulo, obrigado especialmente pela serenidade e por duas cenas tão bonitas com Francisco.

Gabriela, me desculpe por torcer o nariz para você no início da história. Obrigado pela melhor piada de todos os tempos. Obrigado por ser o reflexo tão adequado de gente que eu conheci e amei tão igualzinha a você. (E cuida bem do coração do Mano, tá?)

Denise, eu quero jogar ovos na parede com você todos os dias da minha vida.

Luiz, será que você também viu Domingos dizendo “fica com os dois, Glorinha, eu agüento!”? Será que você também ama (o texto, a cena, o Domingos)? Fiuk, e você, será que viu?

Laís, será que você viu Passagem Azul enquanto Mano andava de bicicleta pelas ruas de São Paulo? Será que você viu Mano andando de bicicleta enquanto via Passagem Azul?

Por que será que eu ri e chorei e me deixei conquistar tão reconfortantemente pelo afeto e o calor que esse filme de vocês dá em abundância para a platéia? Como, mesmo sem vossos corpos presentes, há tanta troca de energia?

E, Arnaldo, obrigado por mais essa canção linda de morrer. Já que ela aparece tão escondidinha nos créditos finais, assino essa carta cantando-a (em sua voz).

Um beijo,

Rafael