7.6.11

um jardim sem muros




From: Rafael Gomes
Date: 2011/6/2
Subject: ...
To: Leonardo Moreira


Leo,

hoje faz um ano que minha avó morreu. que eu fui acordado com um daqueles telefonemas que a gente não quer receber nunca. que esmurrei a parede do banheiro enquanto tomava um banho onde me contorcia de dor. que fiz a viagem mais silenciosa de todos os tempos, com meu pai ao volante. que entrei no apartamento de onde eu tinha saído duas semanas antes, porque voltara de Cannes mais cedo do que o planejado e fui direto a Santos, escrever na varanda da casa dela, na tranquilidade daquele apartamento que estava em um outro tempo, tão passado e tão contínuo.

naquela ocasião, eu disse que voltaria em breve, para escrever mais. ela disse que estaria me esperando e fechou a porta, ficando sozinha no apartamento imenso onde morreu no chão frio do banheiro, dias depois.

eu acho que devia ser proibido morrer no chão frio do banheiro. ela dizia que não queria ficar velhinha e ter doenças como Alzheimer, ou problemas de locomoção, tinha horror de dar trabalho aos outros. falava que que morreria quietinha, de camisola, em sua cama. ela era friorenta e merecia ter morrido embaixo do cobertor, não no azulejo gelado.

eu não voltei mais ao apartamento depois daquele 1º de junho, dia em que as pessoas iam chegando e olhando para mim todas com cara de "eu sei" e eu só consegui tentar me desviar dos olhares pensando "não, ninguém nunca vai saber".

porque ela me deu tudo. ela fez de mim o que eu sou. e tudo o que hoje eu faço, era (é) como se quisesse demonstrar que os caminhos que ela me abriu estavam chegando em algum lugar.

"O Jardim" é uma obra de arte dessas que análise nenhuma vai poder enquadrar, porque transcorre num patamar muito longe da racionalidade - e, no entanto, quanta organização intelectual na linguagem e nos aspectos formais todos que fazem com que aquilo tudo seja tanto teatro.

você e essa cia. Hiato que eu tenho vontade de abraçar inteira e nunca mais largar foram em lugares inimagináveis, ou, antes, de tão imagináveis, tão escondidos. mas também tão evidentes. (por que será que as pessoas não vamos mais lá, onde vocês foram?)

eu não voltei ao apartamento porque não quis olhar os objetos, tantos e tantos deles, cada um com muitas cenas e histórias. mas eu pedi a minha mãe que me desse os livros todos, se ninguém os quisesse. e um quadro específico, de José Antonio da Silva, pintor de quem vimos juntos, eu e ela, uma retrospectiva na Pinacoteca do Estado, já nem sei quantos anos atrás (sem ela, as exposições de arte e as apresentações de dança fazem menos sentido. fazem menos sentido os cinemas aos sábados e domingos à tarde e os almoços de família - não é à toa que nenhuma dessas coisas eu continue fazendo com regularidade).

mas daí Aline e Paula enfileiram aqueles objetos todos e referenciam O Jardim Das Cerejeiras, peça que eu conheço tão bem sem nunca ter visto montagem no palco e que minha avó sempre citava ao vislumbrar a mudança que por fim acabou empreendendo, lá pelo início da década passada, de uma enorme casa em que morava.

e as taças. e as fotos. e o jardim. e a casa. o machado cortando as cerejeiras, os empreendedores e a modernidade transformando tudo em condomínios. objetos - coisas tão simples, não é mesmo, Leonardo, mas tão avassaladoras?! é triste que os objetos sobrevivam às pessoas. mas é também bonito.

o quadro está pendurado atrás de mim, agora. lembro do dia em que minha mãe me trouxe e eu, sozinho, apoiei-o no elevador. quando, em um breve relance, olhei com súbito distanciamento para aquele quadro que durante tantos anos ocupou paredes específicas na minha memória visual e afetiva, e, parado ali no chão de um elevador que não combinava com ele, era como se tudo estivesse errado. fora do lugar. como caixas espalhadas em um jardim. escancaradas.

Thiago e Fernanda, que tão suavemente ecoam Winslet e DiCaprio naquele filme subestimado, me jogam para dentro dos meus pulsos metaforicamente cortados. eu penso em quem era a minha avó antes de ser minha avó. ela que se apaixonou pelo meu avô aos 13 anos e que só se lembrava de sentir taquicardia ao vê-lo descendo a rua em direção a ela, ainda pré-adolescente, será que ela algum dia abandonou alguém? será que ela foi abandonada? será que se apaixonou perdidamente por alguém com quem nunca falou, em uma viagem pela Europa, antes de voltar a seu casamento tão sólido? onde se apoiam as fundações dos casamentos sólidos? que tempo foi esse, que vida foi essa, essa dos que nasceram em 1933? quantas coisas minha avó nunca me disse, quantas eu não perguntei?

e a memória de quem não a tem. Lu, Mariah Amélia, tanta delicadeza e cuidado. cada olhar de Edison onde cabe um mar, tantas ressacas, uma vida inteira. as duas pontas da vida atadas com um paralelismo tão cruel quanto impensável (Machado, Bentinho, Capitu e a cabeça da gente inventando realidades alternativas, inventando memórias). e nenhuma desesperança, em mim. estranho conforto em uma dor aguda, desalento, vontade de dormir à tarde, depois da escola, no melhor sofá que já houve, ou de ver a novela das 8 na casa de Campos do Jordão, disputando com os outros primos o colo de minha avó. ou de admirá-la descascando laranjas, indo ao cabelereiro, fazendo compras no Mercadão, tricotando, não nos deixando falar palavrões.

eu voltei para casa naquela sexta-feira e olhei os livros que ainda estão em sacolas, vindo de Santos a prestações, um ano depois. os livros que eu sempre vi numa biblioteca imensa e sempre quis para mim. mas nos quais agora eu não tenho vontade de mexer.

esse email quase não vale de nada, por serem tantos pensamentos tão dispersos. mas se ele puder te fazer entender um pouquinho da estatura do trabalho que vocês construíram, terá já cumprido seu objetivo.

"O Jardim" me dá vontade de nunca sair de lá, de nunca me desfazer dessa sensação tão fatidicamente catártica e plena que só a arte causa. me dá vontade de ver todos os filmes que eu ainda não vi, de fazer todos os filmes que eu ainda não fiz, escrever todas as coisas que eu não saberia dizer nem sentir de outro modo, talvez de nunca parar de fazer teatro. ao mesmo tempo que me faz achar que eu não preciso fazer mais nada, porque já que seria tão difícil ficar melhor que aquilo, aplaudir já basta.

(como se eu sequer tivesse conseguido aplaudir).

parabéns por dividir com o mundo tanto afeto. e por nos dar quintais sem muro, exatamente como quereria Roberto Carlos, o melhor cantor que já existiu.


um beijo


R