20.12.09

Nova York - dia 2


MoMa.

pela manhã, pouco depois de sua abertura, o museu ainda é um lugar transitável. comprar tickets, deixar casacos, pegar o bloco de notas e subir direto para a exposição de Tim Burton.

logo na primeira parede, um moça tira os olhos dos desenhos expostos, direciona-os para mim e diz: "I had no idea he did all this".

nem eu. são dezenas e dezenas de desenhos agrupados sob o rótulo de Character Studies e divididos em 4 séries: girls, boys, creatures e miscelaneous.

em todos, o traço mais do que talentoso, o senso cromático explosivo e, acima de tudo, a imaginação feroz. dentre tantos, os melhores parecem ser aqueles que trazem nomes ilustrativos, capazes de amplificar alguns sentidos. tentem imaginar o que Burton pode ter desenhado sob os títulos "Complexo de Perseguição", "Esquizofrenia", "Adolescência, um Período Esquisito" e "Mickey Mouse Fora de Proporção", por exemplo.

é inteligência narrativa e um bom humor marcante, tão frequente quanto a pura fantasia e o fascínio pelo mórbido. dividida em períodos, a exposição mostra que Burton já era Burton desde cedo, o que é algo não só nada espantoso como simplesmente natural. Surviving Burbank (a cidade onde nasceu e passou a adolescência) cobre de 1958 a 1976, Beautifying Burbank vai de 1977 a 1984 e Beyond Burbank vai daí em diante.

vemos contos escritos a mão, listas de filmes anotadas em cadernos, curtas-metragens em 8mm feitos aos 14 anos de idade, estrelando a si mesmo e amigos em experiências rudimentares com stop motion. nesses filmes, um espírito inquisidor e ávido por contar histórias (em um deles, Burton e um amigo apostam corrida em carros imaginários, ele bate e seu corpo pega fogo; em outro, Burton é perseguido por uma almofada assassina), provando que a adolescência pode ser não o que o mundo faz de você, mas o que você faz daquilo que tem à mão.

prosseguindo, um poema sensacionalmente simples e divertido, chamado "The Blind Date" (em sua própria caligrafia), escrito aos 17 anos. curtas-metragens em 16mm, feitos aos 20. da faculdade, anotações de aula sobre Cézanne e a História da Arte. um primeiro livro infantil, chamado "The Giant Zlig" (ao lado da carta que ele mandou a uma editora, sugerindo publicação, e a resposta da mesma).

a seguir, uma série de cartoons ilustrando literalmente, com esperteza e humor ainda mais apurados, expressões da língua inglesa. numa sala improvisada com almofadas no chão, um especial para a TV baseado em "João e Maria".

daí pra frente, muitos rascunhos, desenhos e estudos dos longas metragens que viemos a conhecer e amar - além de bonecos usados como modelos e peças de figurino - e de todos os outros trabalhos seguintes, como o livro "The Melancholy Death of Oyster Boy", uma web-série baseada no mesmo personagem e uma coleção de polaróides artísticas, entre outras coisas.

para cinéfilos, a exposição é um banquete. e não porque repassa a obra de Burton, mas porque traz a público uma parte dela pouco ou nada conhecida.

saindo daqui, tem-se a impressão de que só fazer filmes é pouco demais para um cineasta.

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com o tempo gasto em Burton, a visita ao museu que duraria metade de um dia já se anuncia como bem mais longa.

a outra exposição temporária em cartaz é Bauhaus 1919- 1933: Workshops for Modernity, que conta com detalhamento e exímia demonstração de exemplos a trajetória da mítica escola alemã.

aqui, em uma visita para mim altamente didática e recompensadora, vão-se mais algumas horas (e não poder comprar o catálogo, enorme e pesado, é uma grande frustração).

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hora, portanto, de visitar o acervo permanente. a essas alturas, já é de tarde e multidões de pessoas não param de chegar.

entrando na seção Painting and Sculpture I, o visitante que esteja preparado: de cara, há Cézanne. a placidez de O Banhista é a primeira visão da sala, em meia parede defronte à porta. ao lado, Château Noir é um universo de meios tons entre o verde e o azul. para o Seraut de Evening, Honfleur, nem a moldura escapa ao labiríntico pontilhismo.

ainda na mesma sala, o congestionamento diante de The Starry Night comprova que essa é, mesmo, a Monalisa do MoMa. mas justiça seja feita: a tela de Van Gogh é um balé o qual olhos nenhum superam. e o Munch de The Storm invoca um latente senso de sobrenatural, uma sedutora atmosfera etérea e uma sensação misteriosa do exterior e da natureza como local do desprotegido e do inseguro.

na sequência, muitos e muitos Picassos. do figurativo de Boy Leading a Horse à revolução de Les Demoiselles d'Avignon, vemos paisagens, naturezas mortas e figuras humanas gradualmente perdendo a forma (ou adquirindo novas) - inclusive um Bather que ecoa o Cézanne da entrada.

Braque também vem contraposto, no estilo Fauve em Landscape at La Ciotat e retorcidamente cubista em Road Near L'Estaque e Man With a Guitar. de Matisse, La Japonaise é uma pequena surpresa - e surpresa é também achar a figura feminina em meio a pinceladas tão primitivas.

quando Umberto Boccioni afirma que "para pintar a figura humana deve-se não pintá-la", já que o movimento e luz tratam por si de destruir a materialidade dos corpos, não poderia haver ilustração mais perfeita para a teoria do que sua Dynamism of a Soccer Player, que, hipnotizante e caleidoscópica, torna-se um túnel retorcido de cores que atrai o próprio corpo de quem a vê.

Gustav Klimt, em The Park, consegue pintar todos os verdes do mundo e enquadrar o objeto retratado com surpreendente recorte de proporção. Kirchner pinta Street, Dresden, em 1908, como se usasse aqueles efeitos pré-configurados de fotografia chamado de pop art (ao menos no aplicativo Photo Booth, do Macintosh). na parede ao lado, uma inundação de cor no Chagall de I and the Vilage, no Kupka de Red and Blue Discs e no Delaunay de Simultaneous Contrasts: Sun and Moon.

em 9 telas reunidas em um mesmo espaço, Matisse vale mais do que toda a exposição armada em seu nome recentemente em São Paulo. Dance (I) é icônica e como que abraça o visitante com seu trabalhado senso de primitivismo. em The Red Studio o artista revisita a si mesmo, para em seguida desbundar a forma e a perspectiva em View of Notre Dame, The Rose Marble Table, Goldfish and Palette e The Piano Lesson.

mais Picasso, espelhando Three Women at the Spring em Three Musicians, e vice versa. mas nenhuma delas possui a beleza mansa e aguda de Pierrot. entre Mirós (de quem Hirondelle Amour é flutuante), Magrittes e Modiglianis, Picasso é mesmo o rei do MoMa. Girl Before a Mirror, por exemplo, quase sintetiza a coleção do museu, sendo tantos estilos ao mesmo tempo (alguém falou em pop art?).

há uma sala inteira de Mondrian para chegar em sua Broadway Boogie Woogie, síntese perfeita não só do geometrismo depurado do artista, mas também da cidade que retrata. ali perto, fica a mais famosa roda de bicicleta do mundo, por Duchamp, bem como o derretimento de A Persistência da Memória, que é Dalí demonstrando a força dos significados simbólicos ou como um título pode transformar uma obra.

(e meu deus, e como as pessoas tiram fotos em frente aos quadros, como se estivesem, digamos, em Times Square!)

caminhando para a conclusão do andar, um espaço dedicado à arte mexicana traz um Rivera figurativamente poderoso em Flower Festival: Feast of Santa Anita e Frida Kahlo na dor perene de Self Portrait With Cropped Hair, tela ao lado da qual um americano exclama "the movie was very good!". não era tanto, mas enfim...

nos domínios da seção Painting and Sculpture II, Max Ernts, Mark Rothko e Jackson Pollock. desse último, de quem uma memorável retrospectiva abrigada por esse mesmo MoMa dez anos atrás ainda soa retumbante na memória, uma sala com 8 embriagantes telas.

Jasper Johns brinca com imagens já conhecidas, fazendo vibrar a cor e ressignificando a iconografia. Map é um destaque.

Robert Rauschenberg faz Combines (mistura de pintura, escultura e instalação) dos quais Bed, de 1955, deságua no filme Unmade Beds, de 2009 - em sua esfera semântica, ao retratar a particularidade do indivíduo através do que o cerca e/ou pertence, e na linguagem, organizando-se por fusões de meios.

as sopas Campbell, de Warhol, expostas em "prateleiras", são ainda impressionantes.

saindo de tudo isso, no corredor de acesso, diante da escada rolante, são poucas as pessoas que notam a latente força dramática de Christina's World, de Andrew Wyeth.

um andar antes do térreo, uma breve exposição especial de seis Water Lillies, de Monet, são um paraíso para os olhos se perderem para sempre - fazem cócegas na alma, sério.

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às 5 da tarde, o MoMa é um formigueiro e o oficial nazista que comanda a fila da chapelaria está constantemente a 1 segundo de bater em alguém.

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troca de roupa para ir à ópera, no Metropolitan Opera House, Lincoln Center.



ELEKTRA

a música de Strauss, embora não traga células melódicas de tão fácil apreciação, é grandiloquente e poderosa. em um ato, essa é ópera que se apóia no carisma e força dramática de sua protagonista e Susan Bullock dá conta do recado, muito bem amparada por Debora Voigt.

a montagem, no entanto, pesa. seja na marcação de cena engessada e truncada, seja no cenário petrificado, feioso e nada conveniente à movimentação dos atores, a direção sufoca em vez de arejar. a trama adaptada da mitologia grega de fato retrata a liberdade cerceada e o espírito oprimido da personagem título, mas para que sua vivacidade sanguinária e vingativa ecoasse em todas as suas potencialidades cênicas, o pensamento teatral por trás dessa Elektra não poderia ser tão duro.

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enquanto isso, na cidade, toda a mídia só fala mal de Nine.

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