[em tempo, três anotações esparsas ainda sobre o Bonde de Cate:
- qual o público que vai ao Brooklyn num sábado à noite, em meio à nevasca, para ver teatro de qualidade? culturetes nova-yorkinos, é claro, que diferem muito pouco (em variação de idade, pose, fanatismo, estilo etc) da platéia que estava em julho no Sesc Pinheiros vendo Isabelle Huppert fazer Quartett, por exemplo (peça, que, aliás, foi apresentada aqui nessa mesma Brooklyn Academy of Music, dentro da mesma temporada de outono, chamada Next Wave Festival - que teve ainda Robert Lepage com Lipsynch, Juliette Binoche com In-I, ópera de Philip Glass e balé de William Forsythe, entre outros...)
- o que impressiona pensando no Bonde agora, em recente retrospecto, inevitavelmente posto ao lado das outras peças e musicais vistos na cidade, é seu exasperante realismo. Liv Ullman faz daquela pequena casa em Nova Orleans uma gaiola onde os personagens existem sem jamais terem qualquer consciência do público. ao contrário de todo o teatro musical - que é cantado para a audiência - e da grande maioria das peças dramáticas (aqui ou em SP, ou em Berlim, ou em Londres, ou onde for), os atores não jogam com a platéia, direta ou indiretamente. não há um tempo ou uma piscada que faça do público um ente diegeticamente presente. e essa quarta parede tão rigidamente erguida torna a verdade de tudo ali no palco ainda mais desesperadora.]
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todo dia eu acordo e digo que usar luvas é a pior coisa que existe.
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segunda-feira é dia de museus fechados, então (mas não só por isso), a decisão é dedicar-se ao passeio consumista. começo passando pela loja da NBC, onde há todo tipo de produto divertido e tentador de velhos e atuais favoritos como Friends, Seinfeld, 30 Rock, Parks and Recreation e por aí vai (Tati e Arrigo, e o tanto de coisa de The Office e Saturday Night Live?!).
depois, umas comprinhas de roupas bonitas e baratas porque, vai?, eu não compro roupa há anos (e eu sei que falo isso toda vez que compro roupa, mas é verdade).
metrô para encontrar papai no Soho, quarteirões e quarteirões de lojas, num clima mais intimista, por assim dizer, do que a magnitude de Midtown Manhattan.
a UNIQLO é Kandinsky feito roupa em escala industrial, ou qualquer outro pintor que o valha, no sentido das cores que chegam a te deixar tonto. e está pra existir um mesmo espaço com tantos japoneses juntos fora do Japão.
ando por ali e vou subindo até a Washington Square (que já é Greenwich Village), toda cheia de neve e reformas. mais alguma caminhada para chegar na Strand, livraria que alegadamente possui 18 milhas de livros - e trata-se mesmo de um labirinto de corredores e prateleiras de enlouquecer. feliz é quem mora nesse bairro.
chego até a Union Square, onde há mais reformas, mais neve e barraquinhas com uma feira de Natal. da praça mesmo, não sobra muito.
volto ao centro do Soho para reencontrar papai e Rose para um almoço-jantar no restaurante Barolo. antes mesmo da conta chegar, levanto correndo e pego o metrô para ir ao teatro.
NEXT TO NORMAL
nada poderia seguir Marry Poppins de forma mais antiteticamente eficiente do que Next to Normal. Tudo o que no show da Disney é exuberância e vistosidade aqui é teor dramático e risco.
Normal coloca no centro do drama uma depressiva mãe de família, diagnosticada 'bipolar', tendo que lidar com os tormentos da ausência do filho morto (alô, Lars Von Trier!) e os desequilíbrios que causa na filha e no marido. ou, antes, a filha e o marido devem lidar com as tormentas de uma mãe instável e o apego que ela estabelece com o fantasma do primogênito falecido.
quer dizer, a coisa funciona como teatro. há personagens complexos, desafiadores, uma trama que progride apoiada em conflitos reais e demasiado humanos. para não dizer que não há fantasia, existe a imagem desse garoto, morto ainda bebê, que aparece com 17 anos, como se a mãe o tivesse mantido efetivamente vivo dentro dela - e essa aparição é a um só tempo uma possível raíz da depressão como também a corporificação física, em termos dramatúrgicos, com que a peça trabalha a doença.
o texto e letras de Brian Yorkey e a música de Tom Kitt conjugam-se em precisa harmonia e constróem um espetáculo vivo e vibrante, colocando, ou extraindo, música de temas e histórias onde não se imaginaria havê-las. nesse sentido, faz lembrar Rent, como um musical contemporâneo que abdica do fantástico para falar de gente de verdade com problemas do mundo real. não à toa, as duas montagens compartilham o mesmo diretor, Michael Greif.
estão ainda em cartaz todos os integrantes do elenco original, impecáveis, sem grande possibilidade de destaques individuais - apesar da irresistível impetuosidade de Jennifer Damiano e de Aaron Tveit ser apaixonante (e embora Alice Ripley, no papel principal, tenha ganho o Tony de 'melhor atriz em musical' de 2009).
eles defendem com brio o score pop-rock talentoso em narrar dramaticamente (e com envolvente dramaticidade) ao mesmo tempo que empolga em termos musicais, resultando em canções fortes, cativantes e belas.
o 'ensemble' de Just Another Day de início coloca a peça - e o público - no trilho de uma promissora montanha-russa emocional, que não falha em manter o vigor sonoro e o nível absolutamente invulgar da dramaturgia.
I'm Alive costura a narrativa com acordes de empatia imediata, assim como Catch Me I'm Falling e You Don't Know/ I Am The One. Superboy and The Invisible Girl é a música que saimos assobiando do teatro. já Everything Else e My Psycopharmacologist and I são exemplos das pérolas do humor ácido, auto-consciente e resignado que é destilado em pitadas bem medidas.
mas o que fica na memória de forma mais profunda são a tocante sucessão de I Dreamed A Dance colada à contundência delicada de There's A World - um terno convite ao suicídio (que, por contraditório que possa soar, soa bem) - e a fragilidade da mão que se estende já perdendo força em A Light In The Dark.
por fim, a cenografia simbólica organiza-se em três níveis verticais, possibilitando dinamismo, criatividade e eficiência às marcações de cena. note-se que não há sequer um passo de dança no espetáculo, mas a sensação é de constante movimento.
Next To Normal é um musical audacioso em sua concepção, inteligente em seu desenvolvimento e formidável em sua execução. adulto e para adultos, áspero, equilibrado entre a acidez realista do cinismo e a doçura edulcorada (e conturbada) das emoções, é pop e sofisticado ao mesmo tempo.
na marquise, letreiros estampam a citação extraída da crítica de algum jornal: "um entusiasmante salto para dentro das possibilidades do teatro musical".
é isso.
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2 comentários:
Entendi. Quer dizer então que já temos um parâmetro a seguir, certo?
Entendi. Quer dizer então que já temos um parâmetro a seguir, certo?
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