7.12.09

É Proibido Fumar e o Cinema Brasileiro Possível


Alguns adjetivos (ou conceitos) vêem à mente ao se assistir a É Proibido Fumar. O primeiro deles é consistência, seguido de perto por inteligência, coerência, calor. Mas principalmente, é impossível não pensar em precisão.

Anna Muylaert sabe escrever. E como sabe. Seu roteiro é um banho nas atrocidades narrativas que vemos anualmente em nossas telas - falando estritamente dos filmes brasileiros. Os personagens de Anna são palpáveis, multidimensionais. Estar na companhia deles é delicioso porque de uma verdade explosiva. E a verossimilhança, aqui, vem justamente de saber fabular, da observação que transforma em boa dramaturgia as banalidades e os momentos determinantes, os sentimentos mesquinhos, os imediatos, os perenes.

As pessoas pensam e agem nos filmes de Anna Muylaert de forma que não só nos convencem e envolvem, mas, nutrindo-nos de prazer emocional, justificam que estejamos ali as acompanhando. E seu desenrolar dramático não subentende demais nem de menos, não foge à história em prol do “atmosférico” e do “sensorial”, não toma os caminhos fáceis do por demais extra-ordinário. Sabe transformar a vida em filme, enfim.

A fotografia e a montagem, nesse sentido, vão igualmente ao ponto, sem gorduras. Os planos são elegantes e pontuais em mostrar as coisas por um ângulo escolhido – há recorte, outra raridade. As piadas tem a duração certa em não murchar. Os silêncios, as ações ligeiras e as não-ações, e a forma como se sucedem e combinam, garantem com que o filme transcorra em um tempo mais do que correto. Ou seja, há ritmo com uma consciência adequada do que isso seja – outro item difícil de encontrar.

Precisão, em suma.

Precisão que se escora, se potencializa e transborda em cada olhar, gesto, movimento e palavra de Glória Pires, em um papel no cinema a altura de suas muitas capacidades (acompanhada por um elenco praticamente sem falhas).

Ver É Proibido Fumar, portanto, é puro deleite. Nos carros velhos, nas garagens, nos porteiros, nas heranças, nas discussões ao telefone, nos jantares, nas festas de aniversário, nas fraldas sujas, na família, nas churrascarias, nas locadoras de vídeo, nas vitrolas, em Jorge Ben e Chico Buarque, no samba, no cigarro, nos grupos de auto ajuda, em cada detalhe pensado e caprichosamente trabalhado para ser tijolo de uma sólida construção emerge uma classe média que é um retrato fabulosamente sincero de quem somos. Mas que vai além.

Aqui, o objeto narrativo e a linguagem que o engloba não carregam o estigma do que poderia ser imediatamente “atraente”, nem na eleição nem na recusa ao clichê. O tratamento não é estetizante nem parece se preocupar com a inserção em um “padrão internacional de qualidade” (quase sempre generalista) que massacra tantos outros filmes 'bons'.

Pelo contrário, tudo tende ao muito particular – trata-se de quem somos e como somos, ponto. Que isso venha embalado em métodos cinematográficos esmeradamente simples e eficazes colocam É Proibido Fumar num patamar de “Cinema Brasileiro Possível” – ou, antes, “Legítimo”. É um legítimo espelho o que se vê. Um espelho daqueles singelos e despretensiosos, encontráveis em feira (tanto quanto em lojas 'chiques'). Mas que faz seu trabalho como poucos.

(Nisso, há um parentesco com outro filme profundamente subestimado, Bendito Fruto.)


É uma redenção e tanto.

Anna Muylaert, muito obrigado.



PS:

Isso dito, que o filme consiga não se perder (ou se encontrar) entre 2012, Lua Nova, Atividade Paranormal e até mesmo Abraços Partidos, concorrentes de muito peso...

2 comentários:

Tarsila disse...

Rafa, Rafa... é tão bom ler as coisas que você escreve! Como você escreve bem e com coerência... com sinceridade. E sentimento, sempre. Isso nunca te faltou! Adoro.

Realmente o mundo precisa de mais Rafa Gomes, os jornais, as revistas, a mídia, a crítica, precisam de mais Rafa Gomes.

Foi o que eu disse no meu blog um dia... a crítica hoje no Brasil me envergonha. A maioria... ainda bem que existem pessoas como você! :)

Unknown disse...

Gostei muito do filme, mas não conseguia entender assim tão bem o por quê. Lendo seu texto pude ir além. Obrigado por nos oferecer essa leitura tão direta, sincera e profunda.