consumismo. Macy's. mais H&M.
mais um dia de duas peças, então já era hora de ir para a primeira.
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WEST SIDE STORY
há musicais que derivam de filmes (eles também senão propriamente musicais, ao menos com alta dose de música) e oferecem ao espectador basicamente a sensação reconfortante de estar na presença de material familiar, de experimentar "ao vivo" uma magia que já o encantara no cinema (a Disney, por exemplo, descobriu essa mina de ouro com A Bela e a Fera, alcançou pioneirismo criativo com O Rei Leão, fracassou com A Pequena Sereia e agora enche os cofres com Mary Poppins).
mas há musicais que são musicais antes de serem filmes. e, nesses casos, por mais marcante e clássica que a versão cinematográfica resulte, sempre haverá a essência teatral a ser usufruída não como um replay, mas como um prazer arqueológico de volta às origens.
talvez o fato de ter visto somente uma vez o filme de 1961, em uma cópia VHS maltratada, e não tê-lo como um marco cinéfilo particular - apesar de guardar bastante fincadas na memória afetiva três ou quatro canções -, tenha contribuído para o desbunde que foi assistir a esse presente Broadway revival de West Side Story.
dirigida por Arthur Laurents, o libretista da versão original de 1957, essa re-encenação é de beleza hipnotizante e de uma vitalidade teatral que quase não se poderia crer que um material velho conhecido desse calibre ainda pudesse ostentar.
tudo converge.
os elementos de cena são de elegância atemporal. cenários ao mesmo tempo vistosos e detalhistas criam deslumbrantes composições visuais perfeitamente iluminadas. figurinos e caracterizações são tão precisos e narrativos que se abstrai sua presença como pontos de destaque.
o elenco é primoroso em atores e atrizes pertencentes a uma categoria que o teatro musical norte americano sabe cultivar com eficiência, qual seja um admirável exército de grandes performers médios. quer dizer, ninguém exibe reais superlativos em habilidades específicas (ninguém atua sensacionalmente, ou canta, ou dança), mas cada um traz em si um conjunto bom de doer: cantam com potência e alcance, interpretam com a intensidade dramática necessária, dançam muito bem.
vale dizer, no entanto, que Karen Olivo, Tony de 'melhor atriz coadjuvante em musical' de 2009 por sua Anita, é um destaque e é realmente um vulcão: sensual, magnética, arrasadora.
Laurents dirige com mão de mestre, pleno da propriedade que tem sobre o material, e com um frescor estarrecedor para seus 91 anos (talvez ele e Manoel de Oliveira sejam grandes amigos). assim, faz mais do que valer a existência desse revival e deixa tinindo para as novas gerações os trabalhos magistrais de Leonard Bernstein (música), Stephen Sondheim (letras) e Jerome Robbins (coreografia).
para completar, com a inteligência de um artista que sabe ser contemporâneo extraindo só o melhor significado desse maltratado termo, Laurents faz os porto-riquenhos da trama falarem e cantarem em espanhol. sim, naturalmente breves e sutis traduções pipocam aqui e ali, inseridas no contexto, mas há muito dito e cantado que só entende completamente quem entende - que a Broadway saiba que o mundo não fala inglês, não, senhor!
e, como num passe de mágica, Romeu e Julieta está vivo e vibrante, West Side Story está vivo e vibrante, o teatro musical está vivo e vibrante, transbordando de uma pulsão artística tão legítima que enleva o espírito de quem vê, desabona a descrença e delicia como um banho (estético) refrescante e rejuvenescedor.
a reter:
- o Prólogo, com uma coreografia de apresentação e primeiro embate entre os Jets e os Sharks que Robbins faz figurar entre os grandes momentos da dança americana. poderia e deveria (se é que não está) estar sendo dançado pelo American Ballet Theater e pelo New York City Ballet ao redor do mundo (companhias para as quais Robbins, aliás, criou muitas e definitivas peças).
- a passagem de luz que leva Maria em três segundos da loja de noivas ao ginásio, onde o elenco inteiro irrompe lampejante em "Dance at the Gym", para em seguida "Maria" desmontar toda a cena e deixar Tony (figurativamente) nu, à beira do palco, tirando agudos sabe-se deus de onde para repetir e repetir um único simples nome desabrochado em inconsequente amor à primeira vista (e quem já amou que não tenha sido à primeira vista?).
- "Tonight", primeiro em dueto, no delicado e inspirador balcão, e mais tarde em momento de beleza sufocante, no quinteto que sobrepõe tempos e espaços em disposição de palco arrebatadora.
- "America", onde Karen Olivo causa a tempestade de relâmpagos que certamente lhe valeu o Tony.
- The Rumble (e a transformação cênica de ponte e grades descendo), outra pérola de Jerome Robbins, causando um fim de ato soturno e incomum, que em seu minimalismo e peso em nada inspira para a Coca-Cola do intervalo como todos os outros shows dessa indústria quase obrigatoriamente fazem.
- em ironia dramática das mais puras, o reinício de ato primaveril e encantador de "Me Siento Hermosa (I Feel Pretty)", logo desfeito em tragédia - soma de sequências onde a Maria da argentina Josefina Scaglione alcança seu mais verdadeiro momento de heroína.
- "Somewhere" em ambientação etérea, quase mórbida numa possível leitura de lugar além-da-vida.
- a cena The Drugstore, em que Anita é massacrada pelos Jets, onde Karen Olivo volta a brilhar e lembra-nos da instintiva e incessante tensão da violência e da intolerância que destróem o projeto civilizatório do homem (e em algum lugar, Michael Haneke sorri com Código Desconhecido embaixo do braço).
- a cortina descendo em um final desolador, escandalosamente privado de redenção e grandiosidade.
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antes da peça da noite, só há tempo de um breve passeio com meu pai - que não só me acompanhou em West Side como talvez tenha mesmo sido o responsável por nossa ida até ela - e um breve retorno ao hotel para descarregar as compras da manhã.
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WICKED
seria dificílimo para qualquer um(a) seguir o arrebatamento violento de West Side Story. mas Wicked fez o que pôde e não fez pouco.
retoma-se aqui o estilo opulento e majestoso - em termos de staging - de Marry Poppins, com resultados que variam entre o abertamente cafona (na maior parte do tempo) e o belo, mas em todo o tempo bastante impressionante no quesito 'magia de palco'.
por outro lado, na questão dramatúrgica a premissa é arriscada e criativa: fazer uma espécie de "ascendência" de O Mágico de Oz, ou o que os americanos chamariam de "prequel", contando quem é de verdade a Bruxa Má do Oeste. "Muita coisa aconteceu antes de Dorothy chegar", diz a chamada.
e essa manobra bastante delicada é cumprida com uma eficiência surpreendente. Wicked respeita o que tem que respeitar e é desabusadamente criativo onde pode ser, estabelecendo fluente conversa e sutis conexões com a obra de partida, soando estimulante e original.
no desenrolar de sua própria história, há um parâmetro de convencionalidade, sem dúvida, de show que quer (porque economicamente precisa, por assim dizer) ser "familiar" e então toma a estrada segura (dos tijolos amarelos?). mas é um caminho que tem seu brilho, largamente pontuado por um humor de saborosa ironia e organizado em torno de uma contorção sabida e bem cultivada do Maniqueísmo.
ademais, o libelo pró-tolerância e anti-preconceito é especialmente alentador, considerando-se o direcionamento "diversão para a família".
mas a verdadeira diabrura de Wicked não são nem suas ótimas piadas, seu libretto audacioso e sua meia dúzia de canções cativantes e grudentas. ou é exatamente tudo isso, mas erguido à cena pelo talento das duas irrepreensíveis protagonistas.
se é notável a 'fábrica de grandes talentos médios' na formação dos profissionais de teatro dos EUA - conforme já citado acima, acerca de West Side Story - , é ainda mais enlouquecedor pensar que existam tantos intérpretes de qualidades tão potentemente preparadas. e que estejam alguns degraus acima dos, por assim dizer, 'operários da indústria', mas que nem por isso sejam menos 'anônimos'.
ou justamente essa é uma constatação de esclarecedora sensatez, no sentido em que se considera (com altíssimas doses de propriedade) a profissão do ator uma profissão como qualquer outra, em sua signifância laboral, e não uma 'calçada da fama'.
mas fato é que Erin Mackey, como Glinda, e Dee Roscioli, como Elphaba, são banquetes servidos no ponto certo. especialmente essa última, como a bruxa 'má', passeia por expressões e inflexões físicas e vocais que a remetem a uma jovem Natasha Richardson - porém com uma latitude de canto jamais sonhada pela saudosa (e, essa sim, 'superlativa') atriz inglesa.
são as duas bruxas, portanto, que enfeitiçam o espetáculo e arrematam as qualidades tão inebriantes quanto voláteis que Wicked traz em seu suculento recheio.
a reter, o humor desenfreado de What Is This Feeling? e Popular, a sentimentalidade desavergonhada de I'm Not That Girl e For Good, e a grandiloquência incomparável de Defying Gravity.
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voltando para o hotel, às 23:30h da antevéspera do Natal, Nova York era uma cidade fervilhante.
na 5ª Avenida, a GAP aberta 24h ainda me rendeu um cachecol. em frente à St. Patrick's Church, um saxofonista tornava o frio e as luzes uma cena de cinema (e qual não é, aqui?).
e, um quarteirão antes de chegar, a constação de que as vitrines da Bergdorf Goodman, que do lado oposto da rua ostentam uma decoração inspirada em O Fantástico Sr Raposo, do lado por onde eu agora caminho são mesmo uma verdadeira obra de arte.
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