22.12.09

Nova York - dia 3: a luz de Cate Blanchett (em meio à tempestade) ou como viver sem ela?


sábado em Nova York.

Manhattan, 10 am, e só o que se ouve é o anuncio de uma tempestade de inverno que chegaria na tarde do mesmo dia. ir ou não ao Brooklyn?

após o café da manhã, o tempo parece até clarear. ir ao Brooklyn, na verdade, era um compromisso. um compromisso teatral assumido em setembro e planejado desde o início do ano, quando eu primeiro soube que ela estaria lá fazendo aquilo.

então a decisão é: ir ao Brooklyn, desde já.

metrô e passeio por Brooklyn Heights, para ver a tal vista de Manhattan “de fora” – é preciso sair da ilha para vê-la, lembra?

Brooklyn, 12:30 pm, e o vento que já não dava trégua agora traz algumas pequenas partículas de neve. entro no metrô, em direção ao Brooklyn Museum.

1 pm. saio do metrô para encontrar não neve caindo, mas uma verdadeira tempestade. não dá para levantar a cabeça, sob o risco de (muita) neve te deixar literalmente cego. a estação é a 25 passos do museu, felizmente, e percorro-os o mais rápido possível.

BROOKLYN MUSEUM

o Museu do Brooklyn é um mastodonte comumente negligenciado pelos visitantes da cidade. tanto é que suas galerias estão vazias, vazias... ouso dizer “desertas”.

a coleção é grande e abrangente. passo rápido pela Arte da África, do Pacífico, Arte Chinesa, Coreana, Japonesa, Indiana e do Sudoeste da Ásia e Arte do Mundo Islâmico.

chego na ala das Pinturas Européias, organizadas ao redor de um vistoso e belo átrio central, onde dezenas de funcionários preparam um jantar de gala que ocorreria dali a algumas horas. talvez por isso todas as telas tenham incômodos vidros à frente de seus óleos – não se pode correr o risco de um convidado bêbado estragar uma obra-prima, afinal.

em compensação, todos os quadros possuem elucidativas e pontuais apresentações, em breves textos ao lado de seus títulos. em poucas frases, há o que se precisa saber sobre técnica e contexto histórico.

a divisão é temática, começando por Painting Land and Sea. Corot, o pintor de obras diante das quais Paulo Francis dizia poder passar a vida flanando, encanta com seus cinzas e verdes, enquanto Mesdag consegue colocar o observador no centro da tempestade.

os roxos, azuis e delicados laranjas de House of Parliament, Sunlight Effect, de Monet, são mesmerizantes. nem a floricultura improvisada montada diante da tela desencanta seu efeito inebriante. ademais, a visitação como um todo convive com um progressivamente ruidoso vai-e-vem de funcionários preparando o tal evento.

tem mais Monet em The Doge’s Palace, onde as linhas horizontais do rio dissolvem o reflexo vertical do edifício retratado, numa sinuosa e envolvente dança visual.

Sisley em Flood at Moret. Cézanne com formas “blocadas” em The Village at Gardanne. Matisse com Crossroads at Malabai. fechando a seção, Gabrielle Münter em pequenas porções de abstração e cor em Countryside Near Paris e Nightfall in St Cloud.

dentro do recorte Art and Devotion, basicamente pinturas religiosas italianas (e algumas holandesas) do século XV.

em Tracing The Figure, uma bela estrada que começa no intenso naturalismo de Vermeyen pintando Jean de Carondolet e deságua na descontrução total que Picasso empreende em Woman in Gray. no meio do caminho, a pureza e simplicidade de St Joseph With The Flowering Rod, de Jusepe de Ribera, mais Corot em Young Women of Sparta (um inusitado exercício de “teatro” dentro da pintura), as personalidades que emanam de The Critic – por Lajos Tihanyi e Portrait of Thadé Natanson – por Édouard Vuillard – e, por fim, as pequenas proporções de Woman In an Armachair, de Matisse, plenas de curvas e sinuosidades, com o centro da tela em desvio oblíquo exercendo efeito magnético sobre os olhos.

Narratives Large and Small traz Bonnard, paixão antiga e sempre um bálsamo. o langor delicado de The Breakfast Room aparece cercado de delicadezas de outros autores, como Young Womam in Bed, de Vuillard, e Woman With Three Girls, de József Rippi-Rónai.

em The Elder Sister, de William Bouguereau, impressiona o discurso do amparo, cuidado e responsabilidade assumidos (ou aceitos, ou impostos) que emanam do olhar das personagens. Millet é atmosférico e etéreo em The Sheperd Tending His Flock e Delacroix é dramático e cheio de magia lúgubre em The Disciples at Emmaus.

e já que a questão é a “narrativa”, Albrecht de Vriendt entrega-a desde o título opulento, fazendo jus ao figurativismo apresentado em Philip I, the Handsome, Conferring the Order of the Golden Fleece on His Son Charles of Luxembourg.

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seguindo em frente, alguma Arte Egípcia e uma envolvente demonstração de Artes Decorativas dos séculos XVII ao XX, onde as salas são cenografadas – e eventualmente montadas quase como cenários cinematográficos – como interiores e residências das respectivas épocas. tanto o é que, em uma dessas “casas”, duas crianças de pouca idade passam correndo por mim e dizem: “look, there’s our neighbour!”. eu sorrio, como um vizinho rabugento.

nos corredores dedicados à Arte Americana, uma coleção impressionante, mais uma vez apresentada tematicamente. lá, talvez jamais tenha havido pintura mais caudalosa do que Niagara, de Louis Rémy Mignot. diante dela, a desconcertante monumentalidade misteriosa e convidativa de A Storm in The Rocky Mountains, de Albert Biesstadt, e ao lado, o titulo Everlasting Waterfall encerra e amplifica a beleza áspera da tela de Pat Steir.

a reter, ainda, July, de Lany Rivers, a assustadora veracidade pictórica de The Shepperd of Rolleboise, de Daniel Ridgway Knight - que olhada de longe (ou mesmo de perto) confunde-se seriamente com uma fotografia - e o “depósito exposto”, uma sala de reserva técnica que permanece aberta ao público como uma continuação da exibição.

*

eis que se descobre, então, porque o museu tinha estado tão vazio: todas os visitantes concentravam-se na exposição especial Who Shot Rock & Roll, cobrindo a história do gênero musical através de fortes e reveladoras fotografias.

*

Brooklyn, 6 pm, e a tempestade só piorou. metrô até o Harvey Theater, mas é cedo demais para o espetáculo. em meio ao caos, um McDonald’s a alguns passos oferece um café, um assento e uma trilha sonora devidamente natalia. vendo a neve despencar na rua pela vidraça da lanchonete, penso naquelas cenas de filme em que o personagem perdedor desfruta sua solidão e fracasso.

mas minha trajetória, ali, a medir pelas horas que se seguiriam, era sem dúvida vitoriosa.


conta a história que, abandonado em 1968 depois de ter sido um teatro de mais de 1500 lugares, que exibiu de peças shakesperianas a vaudevilles, e posteriormente ter se transformado em um cinema, o Harvey Theater foi comprado pela Brooklyn Academy of Music em 1987, depois que o então presidente da fundação, Harvey Lichtenstein, e o diretor Peter Brook adentraram seus escombros invadindo-o por uma janela de vidro aberta no 2º andar - quando Brook então vislumbrou ali a locação perfeita para abrigar, nos EUA, sua antológica montagem de O Mahabharata.

desde então reformado e restaurado, convertendo-se em um teatro para pouco mais de 850 espectadores, o Harvey tem a beleza de uma casa de espetáculos ancestral, a imponência de uma arena greco-romana e o acolhimento de uma pequena sala de câmara. é, enfim, um espetáculo em si mesmo.

antes de eu descobrir tudo isso, o lobby de entrada, situado sob a sala propriamente dita, já apresentava-se extremamente receptivo, fazendo lembrar o ‘saguão’ improvisado que, no paulistano Sesc Belenzinho, em 2007, recebia os felizardos espectadores de Les Éphèmeres.


UM BONDE CHAMADO DESEJO

12 anos de vida como espectador profissional não podem te preparar para ver Cate Blanchett em cena. especificamente, para ver Cate Blanchett fazer Blanche Dubois, o maior personagem feminino do teatro americano e um dos maiores da história das artes dramáticas.

da mesma forma, não há muitas palavras possíveis para descrever o que ela faz. sua Blanche é um fantasma, um espectro, um anjo, uma bailarina, uma estrela de cinema, um pássaro ferido, tudo ao mesmo tempo, com vigor, intensidade, profunda coerência e uma verdade acima de qualquer parâmetro.

não é exagero dizer que Blanchett multiplica camadas e significados de simples palavras, ao simplesmente proferi-las (e isso foi algo que o New York Times de fato disse sobre sua performance). sua personificação de Blanche traz em seu centro uma precisão inacreditável, uma solidez tão bem fincada que a permite passear em variações com a paupabilidade dos grandes, dos gigantes.

e o humor, ah, o humor... tentando persuadir a irmã a não varrer a casa, para não ser subserviente ao marido, Blanchett arranca a vassoura de sua mão. Stella (Robin McLeavy) então pergunta a ela:

- e quem vai limpar a casa, você?

a resposta é:

- eu?

e nesse “eu?”, largando a vassoura no chão, a atriz leva a platéia às gargalhadas como não se imaginaria possível em montagem de uma peça tão tradicionalmente densa e trágica como essa.

nesse exato momento, com uma pergunta de duas letras e um gesto preciso, Blanchett dá a dimensão e os limites de Blanche, define sua personagem em cena e esclarece para o público, extra-diegeticamente, o que ela está fazendo e o que ainda se pode esperar dela a partir dali.

efeito semelhante do domínio psicológico e físico que tem sobre si mesma – e sobre nós – é o momento em que, logo apos beijar um jovem entregador de jornal, ela manda-o embora dizendo “eu preciso ser correta... não posso mais por as minhas mãos em crianças”.

nada é possível para explicar o que ela faz com a palavra “crianças”.

e é preciso dizer que esse não é um trem com locomotiva vistosa e vagões irrelevantes. o elenco que acompanha Cate Blanchett (Joel Edgerton completa o trio central) é irrepreensível. o destaque absoluto sobre ela, portanto, vem não só de seu ‘star power’, da proeminência que seu nome adquiriu através do cinema. a montagem como um todo é clara em organizar os elementos dramáticos em torno da personagem Blanche Dubois, como se quisesse resgatar, em efeito, um dos títulos provisórios que Tennessee Williams chegou mesmo a dar para o texto (e que a diretora cita no programa): Blanche’s Chair In The Moon.

o olhar delicado e ao mesmo tempo impiedoso dessa direção de Liv Ullman representa, como se não houvesse esforço algum para isso, os personagens como animais, deixando evidente as motivações mais primitivas (ainda que sempre filtradas, ou quase, por suas psiques particulares) em seus atos. são seres humanos legítimos, esses em cena, com sua irracionalidade transbordando de seu auto-controle, tão naturalmente quanto a vida.

e Blanche, a luz ao redor da qual as mariposas voam (e The Moth foi o primeiro título que o autor deu à peça), é lâmpada e inseto, centro governante e objeto descontrolado ao redor de si mesma. em seus impulsos, em seus modos afetados, em sua sinceridade ingênua, no realismo que ela declaradamente recusa, porque prefere 'a mágica' e quer dar isso ao mundo e dele receber de volta, a personagem existe diante de nós como relâmpago de sensatez em meio à tempestade que ela mesma causa. como se, plenamente consciente de si e no controle da situação, ela possa (ou prefira) permitir que as coisas fluam (ou tentem fluir).

e cantando, dançando, vestindo-se, despindo-se, rindo, chorando, brigando, ludibriando, defendendo-se, flutuando sem jamais tirar os pés do chão, agradecendo e requisitando “gentileza”, Cate Blanchett é nunca menos do que esse assombro.

sentado na terceira fila e olhando para ela a uma distância que às vezes não ultrapassava alguns poucos metros, a sensação era a de que se deveria olhá-la para sempre, porque só isso poderia fazer sentido - e preencher o espírito de uma maneira devastadora.

nos últimos segundos, quando a luz se apaga sobre ela gradualmente, deixando escuros seus pés, joelhos, cintura, torso e por último seu rosto, dissolvendo-o como uma aparição, não resta nenhuma dúvida de que se trata de 3 horas das quais se sentir saudades infinitamente.



PS:

- Brooklyn, 11 pm, quase meio metro de neve nas ruas e a inclemência da tempestade ainda em ação. voltar para o hotel é uma aventura – e um preço baixo, diante da maravilha.

- na platéia, uma fila atrás de mim, Alec Baldwin (alo, alo, fãs de 30 Rock!). uma presença que, vamos não esquecer, traz em si labirintos de intertextualidade, já que ele foi Stanley Kowalski num filme para a TV, em 1995, ao lado de Jessica Lange (e deve ser um labirinto intricado, já que o Sr. Baldwin não retornou apos o intervalo – o que eu chamaria muito simplesmente de ‘inveja’).


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