22.2.09

da linguagem, das atuações, do Oscar e do caso Milionário

sábado de Carnaval em São Paulo e o cinema repleto de conhecidos, como se todos tivéssemos sido convidados para a mesma festa.

e esse blog em constante desatualizacão (quem cobrou-a está desde já desafiado a ler até o fim e polemizar ao final.). então vamos lá:


da linguagem


em janeiro, assistir a A Bela Junie e Um Conto de Natal deram uma bela amostragem do que pode ser a linguagem para o cinema francês contemporâneo – e não só o francês. Junie, com seus variados recursos do que poderia ser chamado, muito livremente, de “digressão poética”, sem dúvida leva em frente a carreira de Christophe Honoré e encanta o espectador com sua maleabilidade no trato com a organização dos códigos narrativos contraposta ao rigor do caminho emocional dos personagens - que advém, cremos, um bom tanto da obra literária no qual o filme se baseia. Inácio Araújo, mais atento e inteligente do que esse autor, aponta para a “grandeza nos gestos” dos seres em cena, ao mesmo tempo que chama o filme de um “exercício de liberdade”. é isso.


já o Conto é uma bagunça, quase um caos. alguns detratores não podem vê-lo pela frente, provavelmente crendo-o histérico e esquizofrênico. na experiência intelectual de assisti-lo (que, afinal, é o que conta um bom tanto) uma estranheza levemente repulsiva logo foi substituída por uma atração estranha. de fato a história vem e vai e é superpovoada de dramas e pequenas reviravoltas. mas o excesso, de alguma maneira que não saberei exatamente esmiuçar, vai se encaixando em si próprio, fazendo emanar de dentro de si a sua própria coesão. resumo da ópera: é possível gostar de estar com aqueles personagens (ainda que com ódio) e flutuar na correnteza violenta da narrativa. acima de tudo, me parece fascinante, pois também árdua, a façanha de instituir a desordem como a ordem reinante.

na contramão de um Festa de Família (tornado por infortúnio um paradigma possível de filmes de “famílias acertando contas”) ou do mais próximo (no espaço e no tempo) Feliz Natal, não há aqui um conflito que eclode a partir do encontro. os conflitos já estão na mesa, nas caras, nas cartas, no trato, nos cigarros, nos olhares, explodidos e reais. acontece, então, o estágio seguinte, onde o desajuste é um novo ajuste, o cinismo é um tratamento possível, o ódio é uma forma concreta e aceita de amor.

Catherine Deneuve e Mathieu Amalric, mãe e filho em plácido embate semi carinhoso – pois estabelecido no ódio mútuo como estado simples de ser das coisas – são a demonstração concreta dessa possibilidade, alem de uma lembrança sempre feliz e necessária do inexorável poder dos (bons) atores.


e Domingos Oliveira, em Juventude, tão longe e tão perto desses dois filmes franceses, também possui seus modos peculiares. que já foram quase incriticáveis em Amores e em Separações, que já foram quase inaceitáveis em Carreiras, mas que em Juventude (um pouco como em Feminices) equilibram-se muito bem no fio da navalha (fio esse assumido e quase planejado pelo diretor). suas liberdades de linguagem são lidas também como tosquices, mas diferente dos casos onde incomoda de fato, aqui elas aparecem quase como matéria indissociável do filme em si.

o que nos coloca numa posição incerta entre cobrar dele o que se poderia chamar de mais “rigor”, “capricho”, ou simplesmente um melhor acabamento, e a dúvida se essa “melhoria” não mataria consigo a espontaneidade e a energia vital que dão a tônica de Juventude e o conduzem num caminho crescente de humor incomparável e emotividade das mais sinceras.



das atuações (e também do Oscar)


alguém aí ainda precisa ser convencido do tamanho da proeza que Tony Ramos e Glória Pires REPETEM sem qualquer prejuízo reiterativo em Se Eu Fosse Você 2? sabe quando a gente ama Meryl Streep por se entregar sem pudores a um filme como Mamma Mia, decidindo deixar de lado qualquer seriedade que a acompanhe e enfiar o pé na jaca com propriedade? pois é: esse “despirocamento” com conhecimento de causa e sem medo é o que dá ao casal de atores um lugar eterno entre os mais brilhantes momentos de cinema cômico já produzidos nestas terras. que é cinema popular, sim, do tipo que não ofende, agrada e do qual precisamos, sempre. pois se é o próprio Daniel Filho quem diz “eu faço pizza, mas das boas”, quem vai dizer que não gosta de pizza (e das boas)?


e nessa brincadeira toda de Oscar, talvez fosse digno começar do começo e falar de Angelina Jolie, atriz que em A Troca faz aquilo que se espera de uma atriz fazendo tal papel num filme de Clint Eastwood. confesso uma relação de atração e repulsa com Angelina, que me faz vibrar por sua sensualidade incontrolável em filmes no quais ela empunha armas e salva o mundo (mesmo que eu tenha visto muito poucos desses filmes) e que me faz temer o constrangimento quando ela quer brincar de “atriz séria”. mas é bastante claro que Angelina passa longe desse constrangimento e que pauta o centro nervoso sem o qual este belo filme não existiria – e isso a despeito de sua atuação parecer, sim, gritar “Oscar!” a cada segundo.

ademais, não há hoje na América um narrador clássico e de histórias caprichosamente urdidas e preciosamente morais como Clint Eastwood. a maneira como A Troca vai ficando e ficando na memória só comprovam a infalível validade dessa afirmação.


e como ela até já foi mencionada, tem aquele assombro que é Meryl Streep, essa mulher que se não vendeu a alma pro diabo talvez tenha sido mesmo inventada por ele. Dúvida é uma peça de teatro de vigor (profundamente mal encenada no Brasil, há alguns anos) que precisava apenas manter-se nos limites claros de suas possibilidades para triunfar no cinema. isso significaria não ir muito alem das qualidades dramáticas do texto e recrutar os melhores atores disponíveis para garantir sua vida e força e cozinhar em panela de pressão sua ambigüidade.

já ouvi muitos reclamarem de um final pouco sutil e algo redentor (que de fato está lá), mas é necessário dizer que o filme resultou, felizmente, honestíssimo consigo mesmo. é a lição de casa feita com louvor, preenchendo com competência suas pretensões. o tempo de projeção voa nas mãos dos ótimos Philip Seymour Hoffman e Amy Adams (que talvez tire o Oscar de Penélope Cruz), da desconcertante cena que Viola Davis enfrenta com corpo e alma (mas cuja repercussão certamente é maior do que seu tamanho real), e da magnitude quase impossível da Sra. Streep.

às vezes nós passamos horas com um grupo de bons amigos discutindo idéias ou outras coisas que nos alimentam o espírito e, findo o encontro, nos sentimos satisfeitos pelo tempo gasto falando de coisas que são mais do que veleidades, experimentando uma discussão consistente, uma recompensadora troca de conteúdo (mesmo que não demoremos a esquecer ou suplantar o que foi efetivamente discutido). Dúvida pode ser tão bom como um desses momentos.


e há as conversas cheias de buracos e que vão se revelando francamente desinteressantes e impalpáveis. ter que saber sobre alguém que, com prepotência ingênua ou planejada, não nos soa verdadeiro, porque não dos deixa ver além do verniz e daquilo que é minuciosamente calculado para aparecer – ou parecer.

O Leitor é isso, um filme que não pára de pé. cenas curtas e escritas de modo rasteiro, dando de informação somente o necessário para que se possa passar para a seqüência seguinte. aquela trilha sonora reiterativa com que Stephen Daldry já gostava de nos irritar desde As Horas. um painel histórico oco, um filme que atravessa longo período de tempo sem nos deixar entender ou partilhar dos dramas essenciais que o estão movendo. um exemplo de procedimentos narrativos que se querem sutis ou (argh!) elegantes, mas que são somente incompetentes.

é justo pensar que se O Leitor não tivesse por trás de si o trator de guerra dos produtores Weinstein, e, portanto, não tivesse ganho destaque em indicações ao Oscar, ele passaria francamente despercebido, em lugar de ser irritante. Daldry, o diretor entrando nos sapatos de marionete que um dia foram de Lasse Hallstrom e seus filmes anódinos e oscarizáveis (alguém aí se lembra do “indicado ao Oscar” Regras da Vida (The Cider House Rules)???) feitos para os mesmos irmãos Weinstein, nos brinda com o espetáculo da indiferença. e é uma pena que, nisso, leve com ele Kate Winslet.


dona de perturbadora composição e progressão de personagem em Foi Apenas Um Sonho (filme que, pasmem!, tem crescido com o tempo - ou ao menos em comparação aos que o venceram na corrida por prêmios), ela periga seriamente levar para casa um Oscar por uma atuação que mal consegue existir, aprisionada por um imediatista e superficial modo de narrar.

enfim, pense no filme que, como drama, drama histórico, história de amor, drama de guerra ou o gênero de sua preferência, tenha realmente, mas realmente elevado sua experiência de espectador de cinema, do modo mais profundo possível. provavelmente ele te ajudará a dar a medida do quanto O Leitor é ruim.


mas prêmios – e o Oscar com absoluto destaque entre eles – são mesmo motivo para animar os ânimos de cinéfilos. não resta dúvida que determinadas obras seriam lidas e discutidas e aceitas de modo muito diferente se não fossem por esse adorno. e o Oscar em si é apenas a exemplificação por assim dizer mais sazonal da implacável armadilha da expectativa.


O Casamento de Rachel, cheio de boas recomendações, é um adequado demonstrativo de como esperar algo de um filme (ou do que quer que seja, na verdade) pode ser o veneno que corrói impiedosamente o prazer de usufrui-lo. não me pergunte porque, mas eu entendia na minha cabeça que este tão propalado “retorno à boa forma” de Jonathan Demme seria um desses raros filmes (semi) independentes norte-americanos feito com real inteligência e inquietação. eu queria ver Garotos Incríveis.

agora, isso posto, é (foi) inevitável que um roteiro desigual, que alterna excessiva exposição com pontos sempre demasiadamente inflamados de crise, enquadrados por uma câmera que talvez tentando ser “espontânea” seja quase irritante em seu desregramento, tenha resultado numa experiência frustrante.

nós que já gostávamos de Anne Hathaway não é de hoje continuamos dispostos a aplaudi-la, sim. mas também sentimos saudades do Arnaud Desplechin de Um Conto de Natal (e de seu rigor descontrolado) e do John Cassavetes de Uma Mulher Sob Influência (e de sua espontaneidade tão inescapavelmente poética, tão silenciosamente retumbante) ao ter que encarar mais uma família lidando com a exposição inevitável de seus traumas e ressentimentos, de modo excessivamente “verdadeiro".


O Lutador é o mais equilibrado e (nem por isso, mas também coincidentemente) melhor filme de Darren Aronofsky. mas é tão bom quanto outros bons filmes sobre perdedores que já vimos hoje, ontem e sempre.

o mais admirável sobre Marisa Tomei é que ela não envelhece aos 44 anos, mas se a necessidade era de preencher as vagas ao Oscar de atriz coadjuvante, por que mesmo que ela está aqui e Cate Blanchett, por Benjamin Button (filme que, passados os dias, ficou no mesmo patamar de competência justa sem brilho, com alguma essência capaz de uma sincera emoção reflexiva), não está?

fato é que os holofotes do momento tendem mesmo para Mickey Rourke e histórias de retorno e superação fazem parte do modus vivendi estadunidense, então vale dizer que a grande proeza dele é simplesmente estar aqui. porque se esse é literalmente o papel da vida de Rourke (em tudo que espelha sua própia existência), a disponibilidade de dar-se a esse papel, o que ele faz com inegável entrega física e adequação emocional, é em si sua grande atuação. e esqueça quem diz por aí que o gênio indomável do talento de um grande ator está de volta – isso é conversa pra convencer votante de Academia Cinematográfica.


nessa seara complexa de louvores que criam expectativas que criam decepções ou potencializam paixões, Milk – A Voz Da Igualdade é uma pequena e discreta jóia. se suas algumas soluções fáceis e reiterações tolas são seus pequenos deslizes, eles não ofuscam a leveza e naturalidade com que essa história é contada. Gus Van Sant sabe o que faz e trabalha em razão de uma fluidez narrativa e de um brilho emocional que derivam do e constituem o melhor “cinema comercial” (no sentido de ser, em linguagem, realmente acessível a grandes platéias, diferentemente de Elefante ou Paranoid Park) que se pode ter, nesse caso.

ser um portentoso e feroz libelo político é a grande ameaça que ronda Milk em sua existência primeira como obra cinematográfica coerente e triunfante. e por mais que a sensação de que o discurso esteja sobrepondo-se ao drama ronde a experiência de assisti-lo, o filme chega a seu final sem medo de ser feliz (ou otimistamente triste) e é agradável e satisfatório como a boa companhia de um verdadeiro amigo – aquela que Sean Penn, irrepreensível e irrefreável, faz crer que Harvey Milk possa ter sido.



o caso Milionário



uma pessoa que você conhece numa festa e que possui um tipo específico de ser e agir, alguém cujo padrão de comportamento você reconheça sem muita dificuldade. uma pessoa que é espalhafatosa e grandiloquente, que aparenta um jogo de cena social que provavelmente não encontra muito estofo no dia-a-dia. alguém de gestos amplos, que fala alto, sem medo de ser feliz. mas que é alguém que você claramente reconhece como uma pessoa para a qual você terá paciência por um curto prazo de tempo. com quem você não poderia realmente relacionar-se, porque tudo o que nela soa atraente e divertido no afã de uma festa você também reconhece como francamente irritante ou insuportável.

assim é Quem Quer Ser Um Milionário?. Danny Boyle, um diretor desde sempre irregular, foi esperto. deixando de lado a discussão que necessariamente é pautada pelo estrondoso sucesso do filme no que diz respeito a prêmios e público mundo afora e pelo fato de que ele provavelmente vencerá o Oscar de melhor filme, qual seja a de debater se a obra em questão é fruto da despretensão ou de um apurado cálculo, pensemos no que está na tela.

na base, a esperteza do roteiro, já que a maneira como ele é construído poderia ser apontada como "uma boa sacada" em qualquer pitching sobre a idéia - e não é de se negar que seja mesmo. os expedientes utilizados em seu desenvolvimento, no entanto, são todos aqueles mais básicos e óbvios, ruins a grosso modo, mas utilizados espertamente.

fazendo dele um filme, Boyle usa tudo o que pode – cores ultra trabalhadas, enquadramentos pretensamente estilizados, câmeras soltas e frenéticas, ritmos acelerados por música, edição velocíssima e muitos afins. é um filme desmedido, histérico, ruim. mas se o que conta é mesmo a experiência (intelectual e emotiva), é um filme de um apelo tão básico quanto descontroladamente irresistível.

desigual, começa calcado em uma tensão atraente que se dá pelo estabelecimento de seu esquema (que não tarda a se mostrar esquematismo) narrativo e pela personalidade cativante de seu protagonista, Jamal, convidativamente frágil aos 18 anos, na pele de Dev Patel (por que mesmo ele não está indicado ao Oscar?) e desabusadamente apaixonante através do garoto que o interpreta em sua primeira infância.

todo o bloco do meio, que dá conta de demonstrar os infindáveis sofrimentos pelo qual Jamal passa incólume como um anjo de pureza, roça a chatice. mas a sem vergonhice com que ela é chutada ao final, rumo ao clímax do herói e à catarse coletiva que se ergue a sua volta, é capaz de emocionar de modo assumidamente cafona até os mais renitentes.

(talvez na confissão mais pessoal que esse blog jamais tenha feito, ouso dizer que, sofrendo com as muitas reconhecidas “ruindades” cinematográficas a que Milionário me/nos expôs, meu corpo não se conteve em tremer de leve e quase chorar de verdade durante o tão irreal mas tão corpulento êxtase em torno do qual os elementos do filme revolvem no clímax da trama, criando uma verdade violenta e tão somente cinematográfica em suas mentiras, em sua manipulação fácil e em sua sentimentalidade mais primária no retrato do triunfo da exceção e do “impossível plausível” que são a base mesmo das catarses mais primárias e mais inescapáveis).

gostar de ver Milionário, portanto, é simples como gostar de ver o próprio Show do Milhão na televisão (e de torcer por seus competidores). ou gostar de ver outros programas reconhecidamente ruins, como até mesmo aqueles que vendem centrífugas mágicas ou modeladores de abdômen.

que o filme esteja no Oscar e que arrebate platéias é tão compreensível e normal quanto contos de fadas e suas regras, quanto os entretenimentos populares que com mais ou menos inteligência sempre fizeram a glória do Oscar e do próprio cinema.

Milionário não é nocivo nem justifica ataques tão ferozes. ele é excessivo e desbaratado como o é um Moulin Rouge, por exemplo. excessivo e desbaratado como são determinadas socialites dando entrevistas bêbadas em programas de colunismo social na TV. tão excessivo e desbaratado que termina com uma deslocada (e, em todo esse contexto, pertinente) seqüência musical.

pra que resistir a essa patacoada?





PS:
valendo a pena ecoar e endossando, sobre Milionário, na imprensa norte-americana (em tradução livre):

da New York Magazine
A coisa toda é irresistivelmente ridícula.

do Los Angeles Time
Boyle foi acima de tudo corajoso com esse filme. Ele ousou utilizar elementos cinematográficos veneráveis em quantidade próxima à vertigem, desafiou-nos a dizer que não ficaríamos movidos ou envolvidos, desafiou-nos a dizer que somos escolados demais para cair em truques que são mais velhos do que nós mesmos."

da Slate
Uma estilosa e ingenuamente construída porção de nonsense, uma bugiganga reluzente, um filme que é tão implausível quanto irresistível."

da New Yorker
O que É surpreendente é a energia sem constrangimento que Boyle devota à sua busca pelo óbvio; não há nada errado com o formulaico, aparentemente, desde que você traga a fórmula à ebulição.

9.2.09

toda bêbada canta

(a partir dos 35")

3.2.09

derrocada, mas com sex appeal



o que me parece especialmente relevante em Revolutionary Road (onde, meu deus, foram buscar esse horrendo título de Foi Apenas Um Sonho??!), sem muita reflexão aprofundada sobre o filme e seus efeitos (ou defeitos), é a maneira como, em algum ponto, ele consegue ser ambíguo sobre aquilo que aborda.

além disso, seus atores.

se pensarmos no Sam Mendes que execrou com acidez embrulhada em sarcasmo esperto o subúrbio norte-americano e suas "criaturas" em Beleza Americana, onde a noção de felicidade parecia inevitavelmente inalcançável ou distorcida, esse novo filme abre uma janela para a possibilidade.

é profundamente moral, todavia, e parece deixar a mancha como imagem síntese – há coisas que não se limpam ou negligenciam, ponto. mas é preciso dizer que não são poucos os momentos em que se pode sentir os personagens ou simplesmente satisfeitos com suas vidas ou, o que é bem mais interessante, intensamente em dúvida.

e, correndo o risco de isso dizer mais sobre o espectador do que sobre o filme (como quase sempre, de todo modo), não é ofensivamente explícito que a obra ou seu(s) autor(es) estejam julgando. em certa medida, encampa-se a dúvida, não obstante.

a “vida no subúrbio” ou a “vida familiar” ou a “vida de aceitações” nem sempre possui o peso mortal da “vida de desistências e frustrações”. em breves momentos, frestas apontam para uma oscilação. em outros, a “frustração” deixa de ser frustração na medida em que quase se transforma em uma resignação consciente e capaz de (alguma) plenitude.

permitir que a realidade se sobreponha aos sonhos é o pecado supremo para uma alma esclarecida ou é o jeito mesmo que as coisas são (ou acabam sendo)?

a mim, Sam Mendes parece permitir que a contradição aflore.

nesse caminho, Kate Winslet e Leonardo DiCaprio parecem ter momentos em que são donos completos de suas verdades. no que pese um roteiro que os faz serem sôfregos e dolorosamente óbvios nos pontos chave de encadeamento do conflito central, há cenas ali belas e assustadoras.

(e com os dois, a crise pode ser sempre e também sexy!)

a briga final e definitiva do casal, por exemplo, salta da tela e ressoa como um raio. estarrecedora.

Revolutionary Road não é, definitivamente, um grande filme porque não luta com bravura contra seus defeitos. e são altas as probabilidades de ser esquecido logo. mas, hoje, há ali coisas que ficam na cabeça e pelas quais ele talvez deva ser visto.