25.9.09

o mar

Data: Fri, 25 Sep 2009 00:49:08 -0300
De: Rafael
Para: Thiago Ledier
Assunto: o mar

querido L.,

o mar é uma coisa toda outra. quão ridículo seria eu dizer que entendo Caymmi quando ele canta que "quem vem pra beira do mar nunca mais quer voltar"?

eu chego a Santos e chove. na casa de minha avó, há um outro tempo. há um outro tempo dentro de mim ali, antes de tudo.

uma vez li na epígafe de um (mau) filme que o passado é como um país estrangeiro - lá se fazem as coisas de outro modo.

Alaíde, funcionária de anos (trabalhados e vividos), decide por mim que eu quero pão pullman com presunto e queijo de lanche. ela me faz um café e esquenta leite para que eu tome junto. me incentiva a comer o bolo de fécula de batata (e o que seria, de fato, a fécula da batata?). ela ri do forninho elétrico que eu liguei na tomada mas do qual não virei o botão - ela ri de mim, na verdade. quando na minha vida "normal" eu tomo lanches em forninhos elétricos com café e leite no meio da tarde?! pontualmente às 17h, aliás, porque Alaíde não está pra brincadeira.

ali há pessoas e organização e comida e móveis antigos e quadros que eu adoro e tapetes e lustres e abajures. (há um vaso que eu gostaria de ter, que eu não gostaria que fosse para o Museu D´Orsay caso minha vida fosse aquele filme Horas de Verão - mas, opa!, minha vida é esse filme). todo o interior daquele apartamento é teletransportado da antiga casa, a verdadeira, a original, grande e vasta, hoje duas torres residenciais de alto padrão.

mas a essência está ali. minha avó chega, depois de mim. ela fica a meu lado, na varanda com a vista para o mar de Caymmi onde deve ser doce morrer e do qual não se larga. o mar faz mesmo toda a diferença - e como ele é bonito ressacado. sinto vontade de vir morar em Santos, até.

minha avó respeita o silêncio do meu trabalho "criativo".

quando me mudo para a sala de jantar, atraído pela mesa e pela luz, já que na praia se faz noite, ela se aproxima e conversamos. o assunto é a (minha) dramaturgia, aquela que me esforço para compor em sua casa, nessa cidade, afastado de onde eu estou hoje e tão próximo de quem eu sempre fui. em alguns minutos, ela está me contando uma intrincada trama protagonizada por minha prima que em si é uma lição de enredo.

eu dou risada porque acho realmente engraçado mas acho tudo realmente triste e estranho, no fim das contas. eu ando estranho, no fim das contas.

ela janta na sala ao lado e conversa com Alaíde sobre o agrião. depois me conta sobre as transações imobiliárias de sua funcionária, surpresa com a facilidade com que ela resolve questões que poderiam ser complicadas.

*

eu releio a peça e gosto bastante de várias partes dela.

(...)

olhando o mar no escuro, sinto vontade de terminar a peça. pulsão verdadeira, criativa, determinada. (...) não mais por mim. acho que eu já partiria para outras coisas e deixaria isso de que duvido das qualidades sentado à beira do caminho. mas sinto vontade de terminá-la por você e pelo Vini, que a querem ler e que me incentivam e cobram. e pela Mayara, por quem eu cortaria os pulsos.

o mar, querido L., levou Clarinha e levaria todas as mulheres da família. mas pode trazer várias outras coisas.

um beijo, do seu,

R

2 comentários:

Unknown disse...

O mundo não é chato mesmo, definitivamente.

E viva os Vinis e Lediers da vida, cobrando as coisas necessárias.

Ledier disse...

engraçado reler isso depois de tanto tempo.
e prestes a voltar a encarar esse mar que não devolve os afogados.
e me sentindo pequeno e e triste.
e pronto.