É mais do que sabido o quão inútil é ir à pizzaria e lamentar que lá não se serve sushi.
É inútil ir a “Ninguém Pode Saber”, de Hirokazu Kore-Eda, e a “Um Filme Falado”, de Manoel de Oliveira, esperando “Cruzadas”. Ou esperando qualquer coisa. Nesse caso, vale avisar de antemão: não espere. Saboreie.
São dois mestres, que praticam cinemas formalmente distintos, mas sempre cinema.
Manoel de Oliveira faz um filme em tudo falado, que empreende uma história ilustrada das civilizações em sua primeira metade e traz toda a civilização para dentro de um navio na segunda. Não há uma trama, estrito modo, e sim uma construção simbólica de uma idéia. Oliveira trabalha com camadas de sugestão, enaltecendo um todo grandioso a partir de um pequeno núcleo particular.
Ele trabalha com mitos, todo o tempo, da Bíblia à História (essa de “H” maiúsculo), sugerindo uma reflexão acerca da evolução, das crenças e das fragilidades humanas. Ou, antes, acerca de como a fragilidade humana, aspecto primeiro e elementar de nossa constituição, é e foi escondida, sobreposta ou ressaltada ao longo da história da raça.
De como esse pequeno e vulnerável ser que é o homem construiu o mundo.
Mas “Um Filme Falado” não é palatável a qualquer platéia. Chamá-lo de difícil é subestimar a arte e o público. Melhor seria dizer que ele foge completamente a padrões cinematográficos banais. É prolixo, é bastante falado, de fato, é esteticamente pobre – mas nenhuma dessas afirmações é juízo de valor.
“Um Filme Falado” deve ser visto e aceito não porque Manoel de Oliveira é, ele próprio, um mito, um cineasta inatacável. Sua obra pode também ser frágil. Mas o caso aqui é lançar o olhar sobre a possibilidade, porque cinema é tudo isso, cinema é isso aí. Esse cinema é audaz em sua forma – exatamente por ser simples e nada “audacioso” – e rico em seus significados.
Hirokazu Kore-Eda, por sua vez, é autor de dois filmes magníficos que chegaram aos nossos olhos. “Maborosi” é um filme que registra fotograficamente o tempo – pense em quão deslumbrante isso pode ser. Já “Depois da Vida” faz uma das maiores declarações de amor ao cinema que se pode fazer, misturando sétima arte, vida, morte, luz, olhar e memória.
Se “Maborosi” era um filme operante em uma esfera espiritual e “Depois da Vida” em uma outra metafísica, “Ninguém Pode Saber” mantém os dois pés bem rentes ao chão. É de tons e tema realistas até a medula, mas com uma leveza onírica que deslumbra os olhos e acentua sua dor narrativa.
Construído com planos de uma simplicidade explosivamente tocante, “Ninguém Pode Saber” é uma casinha audiovisual que constrói a si mesma com vagar, beleza, elipses e, sem querer, muita força dramática.
Porque o universo infantil abordado é filmado de forma tão próxima que se fica contagiado de pureza e inocência. E a perda dessa inocência, a crueldade do mundo implodindo o pequeno apartamento e as pequenas vidas dá-se de forma discreta, cadenciada. Não há arroubos de naturalismo documental, não há câmeras trepidantes e diálogos “verdadeiros” no estilo “somos feios, sujos e malvados”.
Kore-Eda filma com elegância e sutileza desnorteantes uma história dura e triste. E nada deixa de ser menos real visto pelo olhar profundamente estético do diretor, como se poderia supor. Sua câmera está sempre próxima e nunca invasiva. O filme adentra o público pela fresta da beleza e comprime-o por dentro, pela agudez do sofrimento. A catarse é plena e bem feita.
Dizem que deus está nos detalhes. Em grande parte, Hirokazu Kore-Eda parece compactuar dessa opinião.
10.5.05
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Um comentário:
"dizem que deus está nos detalhes" - lindo.
2h09 - estou indo dormir. juro.
Postar um comentário