acesso desenfreado de nostalgia, paixões juvenis, Dawson's Creek, uma amiga que eu não tenho mais, MTV, colégio, adolescência, melancolia e movimento, simplicidades complicadas e, no final das contas, a desimportância determinante de um beijo.
28.4.09
27.4.09
tipo especial de metonímia baseada na relação quantitativa entre o significado original da palavra us. e o conteúdo ou referente mentado
Inácio Araújo, em seu blog, sobre Sinédoque, Nova York:
Charlie Kaufman estréia com ares de quem inventou a inteligência.
é isso.
Charlie Kaufman estréia com ares de quem inventou a inteligência.
é isso.
23.4.09
22.4.09
21.4.09
20.4.09
atores, teatro, cinema, teatro, chilenos, Tchekhov, atores, teatro, cinema
Contardo Calligaris, psicanalista, autor da peça “O Homem da Tarja Preta”, respondendo a Bete Coelho, atriz, diretora da peça, na última edição da revista Serafina:
De que maneira uma coisa só é possível no teatro? Para [o crítico francês, 1915- 1980] Roland Barthes, o essencial no teatro é a presença real e física do ator. No teatro, você tem uma relação com o corpo do ator que é...
Erótica?
É. Erótica, no melhor sentido. A gente vive a experiência teatral com uma proximidade que torna algumas pessoas absolutamente fóbicas. Não é por acaso que eu posso assistir a um filme de que não estou gostando sem problema nenhum; enquanto numa peça de que não gosto a dificuldade é enorme. É um mal- estar físico, porque estou envolvido física e eroticamente.
Sobre o assunto, alguns acontecimentos recentes fazem pensar.
Eduardo Coutinho, em Moscou, leva seu cinema a outro nível de articulação. Todo o tão discutido embaralhamento entre real e ficção e teatro e vida, realizado a partir da idéia do que é o “ator”, ou, antes, o próprio "atuar", em vida ou defronte uma câmera, que ele realizara em Jogo de Cena, ganha aqui contornos mais amplos e quiçá mais profundos.
Flertando abertamente com a encenação, Coutinho acompanha a preparação e ensaios que Enrique Diaz comanda junto ao Grupo Galpão da clássica peça As Três Irmãs, de Anton Tchekhov. E se Diaz já desconstruía e resignificava textos fundamentais no teatro, ao lado de sua Cia dos Atores (Ensaio.Hamlet e Gaivota – Tema Para Um Conto Curto), aqui a magia extravasa a esfera do palco e ganha contornos cinematográficos.
Torna-se tênue demais, belo demais, poético demais, claro com a sutileza do sublime o (não)limite entre 1) o ator diante da câmera sendo ele mesmo, 2) o ator sendo seu personagem e 3) o personagem simplesmente existindo num espaço/tempo que é mítico e único à ficção
(a tentar esclarecer: é como se Hamlet, Olga, Macha ou Irina - ou qualquer outro grande personagem - existissem constantemente em algum lugar, um plano contínuo e abstrato das idéias; um ator, quando em cena, reproduz essa vida que nesse outro lugar existe sem cessar; assim, para o público, quando concretizada a mágica do drama durante o instante da encenação, esse ator ocupa ele mesmo esse ser/estar permanente a que as grandes personagens estão eternamente sujeitas; num sentido muito mais amplo do que o truque ou a técnica, portanto, o ator torna-se o personagem, como se desse carne a uma holografia desenhada no espaço).
E esse transitar que as câmeras de Coutinho flagram nos corpos e rostos desses atores, suspensos no texto dramático, é talvez o mais acachapante e sobrenatural feito desse seu novo filme.
Não é o caso de alongar-se em dizer a satisfacão que dá assistir a Moscou, o quanto os intérpretes do Grupo Galpão conseguem ser extra-ordinários, o quanto os diretores afinam-se na precisão em captar a beleza melancólica e ardorosa de uma peça como a de Tchekhov e a forma intensa com que afloram as dores e delícias do ofício de atuar, da arte teatral e de qualquer arte, os mistérios que levam corações e mentes a fascinar-se tão profundamente pela mimese.
Crendo que as qualidades de um documentário podem ser mais ou menos aproveitadas de acordo com as medidas de interesse e identificação do espectador com o objeto abordado, este blog poderia dizer que Moscou foi feito especialmente para seus olhos. O que só reafirma o filme em seu tema e propósito de perpetuar o tal fascínio tão inexplicável e tão poderoso da e pela Arte.
*
Dentro da programação de América em Recortes – o Teatro Chileno em Evidência, que o SESC oferece ao público paulistano, é um choque indescritível descobrir a companhia Teatro en el Blanco e o trabalho que fazem em duas peças, Neva a frente delas.
É daquelas experiências sensoriais, intelectuais, estéticas e emotivas completas, que justificam tudo e qualquer coisa. Daquelas que causam choques violentos de júbilo, que descortinam possibilidades, que chegam a remodelar alguns padrões da arte a que se referem - no caso, a teatral.
Na falta de poder explicar o que se vê, vale reproduzir o programa da peça: “é uma reflexão crítica e sarcástica sobre o teatro, passando pelo drama privado da morte e pelo drama público da violência política”. Mas é muito mais.
Tentar narrar ou elucidar o que fazem Paula Zúñiga e Trinidad González, atrizes tão arrebatadoramente plenas quanto duas atrizes podem ser, é vão. Elas são escudadas pelo também excelente Jorge Eduardo Becker e pela direção e dramaturgia de Guillermo Calderón, e esse pequeno grupo de uma coesão assustadora é capaz de provocar tanto com tão pouco - em 80 minutos, sobre um tablado de 3m x 2m, com uma singela caixa de luz inserida na própria cena - que fazem com que todo e qualquer teatro pirotécnico torne-se, em retrospecto, imediatamente pobre. (É o caso mesmo de a gente ficar pensando por que alguém precisou algum dia de mais do que isso para ser fenomenal.)
Diciembre, uma obra de ficção política ambientada num futuro onde guerras territoriais comandam a América Latina, dispõe de uma estrutura cênica e narrativa essencialmente similar. Três atores fantásticos, múltiplas nuances de interpretação, um quase não cenário fixo, luzes diegéticas e operada em cena, uma capacidade atordoante de naturalismo na farsa/ paródia/ melodrama cômico, transições invisíveis e precisas para a tragédia mais pungente, texto que alterna latejantes dramas individuais com questões sócio-políticas coletivas que se insinuam progressivamente para o contexto privado, levando à sua fatal implosão.
Uma vez mais, as tentativas de explicação não dão conta. Saindo do teatro, o comentário mais simplório e mais honesto que se pôde fazer com amigos foi compartilhar o intenso desejo de que a companhia Teatro en el Blanco pudesse vir mais vezes. Ou se instalasse definitivamente por aqui, expandindo nossos gostos, olhares e reflexões com mais frequência.
*
Danilo Gangheia e Dagoberto Feliz, dois atores bem distantes do comum, apresentaram Palhaços, nesse ultimo sábado, com os corações despedaços pela morte de um amigo querido.
O fato, naturalmente, só foi dito à plateia ao fim da sessão, mas dada a intensidade e majestosidade do que ambos fizeram entre o terceiro sinal e essa revelação, donos poderosos desse tão complexo, artesanal e delicado ofício, é de se acreditar que nenhum público verá performance dessa mesma peça em que o texto de Timochenko Wehbi receba complementariedade tão iminente e avassaladoramente verdadeira.
Ao abrirem-se as cortinas, o artista, instrumento de si mesmo, precisa fazer seu show. Mesmo que com a alma beirando o absoluto abismo.
*
Ainda que com resultados gerais bem distantes daqueles alcançados pelos espetáculos acima, Lilia Cabral enche a colcha de retalhos que é Divã de uma dignidade assombrosa. Faz rir e faz chorar com a desenvoltura do palhaço sensível que conta piada ao andar na corda bamba e narra um conto triste pulando do trapézio.
É realmente de se perguntar porque ela nunca foi atriz mais presente em filmes, com papéis a altura de suas capacidades.
De que maneira uma coisa só é possível no teatro? Para [o crítico francês, 1915- 1980] Roland Barthes, o essencial no teatro é a presença real e física do ator. No teatro, você tem uma relação com o corpo do ator que é...
Erótica?
É. Erótica, no melhor sentido. A gente vive a experiência teatral com uma proximidade que torna algumas pessoas absolutamente fóbicas. Não é por acaso que eu posso assistir a um filme de que não estou gostando sem problema nenhum; enquanto numa peça de que não gosto a dificuldade é enorme. É um mal- estar físico, porque estou envolvido física e eroticamente.
Sobre o assunto, alguns acontecimentos recentes fazem pensar.
Eduardo Coutinho, em Moscou, leva seu cinema a outro nível de articulação. Todo o tão discutido embaralhamento entre real e ficção e teatro e vida, realizado a partir da idéia do que é o “ator”, ou, antes, o próprio "atuar", em vida ou defronte uma câmera, que ele realizara em Jogo de Cena, ganha aqui contornos mais amplos e quiçá mais profundos.
Flertando abertamente com a encenação, Coutinho acompanha a preparação e ensaios que Enrique Diaz comanda junto ao Grupo Galpão da clássica peça As Três Irmãs, de Anton Tchekhov. E se Diaz já desconstruía e resignificava textos fundamentais no teatro, ao lado de sua Cia dos Atores (Ensaio.Hamlet e Gaivota – Tema Para Um Conto Curto), aqui a magia extravasa a esfera do palco e ganha contornos cinematográficos.
Torna-se tênue demais, belo demais, poético demais, claro com a sutileza do sublime o (não)limite entre 1) o ator diante da câmera sendo ele mesmo, 2) o ator sendo seu personagem e 3) o personagem simplesmente existindo num espaço/tempo que é mítico e único à ficção
(a tentar esclarecer: é como se Hamlet, Olga, Macha ou Irina - ou qualquer outro grande personagem - existissem constantemente em algum lugar, um plano contínuo e abstrato das idéias; um ator, quando em cena, reproduz essa vida que nesse outro lugar existe sem cessar; assim, para o público, quando concretizada a mágica do drama durante o instante da encenação, esse ator ocupa ele mesmo esse ser/estar permanente a que as grandes personagens estão eternamente sujeitas; num sentido muito mais amplo do que o truque ou a técnica, portanto, o ator torna-se o personagem, como se desse carne a uma holografia desenhada no espaço).
E esse transitar que as câmeras de Coutinho flagram nos corpos e rostos desses atores, suspensos no texto dramático, é talvez o mais acachapante e sobrenatural feito desse seu novo filme.
Não é o caso de alongar-se em dizer a satisfacão que dá assistir a Moscou, o quanto os intérpretes do Grupo Galpão conseguem ser extra-ordinários, o quanto os diretores afinam-se na precisão em captar a beleza melancólica e ardorosa de uma peça como a de Tchekhov e a forma intensa com que afloram as dores e delícias do ofício de atuar, da arte teatral e de qualquer arte, os mistérios que levam corações e mentes a fascinar-se tão profundamente pela mimese.
Crendo que as qualidades de um documentário podem ser mais ou menos aproveitadas de acordo com as medidas de interesse e identificação do espectador com o objeto abordado, este blog poderia dizer que Moscou foi feito especialmente para seus olhos. O que só reafirma o filme em seu tema e propósito de perpetuar o tal fascínio tão inexplicável e tão poderoso da e pela Arte.
*
Dentro da programação de América em Recortes – o Teatro Chileno em Evidência, que o SESC oferece ao público paulistano, é um choque indescritível descobrir a companhia Teatro en el Blanco e o trabalho que fazem em duas peças, Neva a frente delas.
É daquelas experiências sensoriais, intelectuais, estéticas e emotivas completas, que justificam tudo e qualquer coisa. Daquelas que causam choques violentos de júbilo, que descortinam possibilidades, que chegam a remodelar alguns padrões da arte a que se referem - no caso, a teatral.
Na falta de poder explicar o que se vê, vale reproduzir o programa da peça: “é uma reflexão crítica e sarcástica sobre o teatro, passando pelo drama privado da morte e pelo drama público da violência política”. Mas é muito mais.
Tentar narrar ou elucidar o que fazem Paula Zúñiga e Trinidad González, atrizes tão arrebatadoramente plenas quanto duas atrizes podem ser, é vão. Elas são escudadas pelo também excelente Jorge Eduardo Becker e pela direção e dramaturgia de Guillermo Calderón, e esse pequeno grupo de uma coesão assustadora é capaz de provocar tanto com tão pouco - em 80 minutos, sobre um tablado de 3m x 2m, com uma singela caixa de luz inserida na própria cena - que fazem com que todo e qualquer teatro pirotécnico torne-se, em retrospecto, imediatamente pobre. (É o caso mesmo de a gente ficar pensando por que alguém precisou algum dia de mais do que isso para ser fenomenal.)
Diciembre, uma obra de ficção política ambientada num futuro onde guerras territoriais comandam a América Latina, dispõe de uma estrutura cênica e narrativa essencialmente similar. Três atores fantásticos, múltiplas nuances de interpretação, um quase não cenário fixo, luzes diegéticas e operada em cena, uma capacidade atordoante de naturalismo na farsa/ paródia/ melodrama cômico, transições invisíveis e precisas para a tragédia mais pungente, texto que alterna latejantes dramas individuais com questões sócio-políticas coletivas que se insinuam progressivamente para o contexto privado, levando à sua fatal implosão.
Uma vez mais, as tentativas de explicação não dão conta. Saindo do teatro, o comentário mais simplório e mais honesto que se pôde fazer com amigos foi compartilhar o intenso desejo de que a companhia Teatro en el Blanco pudesse vir mais vezes. Ou se instalasse definitivamente por aqui, expandindo nossos gostos, olhares e reflexões com mais frequência.
*
Danilo Gangheia e Dagoberto Feliz, dois atores bem distantes do comum, apresentaram Palhaços, nesse ultimo sábado, com os corações despedaços pela morte de um amigo querido.
O fato, naturalmente, só foi dito à plateia ao fim da sessão, mas dada a intensidade e majestosidade do que ambos fizeram entre o terceiro sinal e essa revelação, donos poderosos desse tão complexo, artesanal e delicado ofício, é de se acreditar que nenhum público verá performance dessa mesma peça em que o texto de Timochenko Wehbi receba complementariedade tão iminente e avassaladoramente verdadeira.
Ao abrirem-se as cortinas, o artista, instrumento de si mesmo, precisa fazer seu show. Mesmo que com a alma beirando o absoluto abismo.
*
Ainda que com resultados gerais bem distantes daqueles alcançados pelos espetáculos acima, Lilia Cabral enche a colcha de retalhos que é Divã de uma dignidade assombrosa. Faz rir e faz chorar com a desenvoltura do palhaço sensível que conta piada ao andar na corda bamba e narra um conto triste pulando do trapézio.
É realmente de se perguntar porque ela nunca foi atriz mais presente em filmes, com papéis a altura de suas capacidades.
19.4.09
coração secreto (ou postar letra de música é um negócio super brega)
Secret Heart, what are you made of? What are you so afraid of? Could it be three simple words or the fear of being overheard? What's wrong?
Let em' in on your secret heart.
Secret Heart, why so mysterious? Why so sacred, why so serious? Maybe you're just acting tough. Maybe you're just not man enough. What's wrong?
Let em' in on your secret heart.
This very secret that you're trying to conceal is the very same one that You're dying to reveal. Go tell him how you feel.
Secret Heart, come out and share it. This loneliness, few can bear it. Could it have something to do with admitting that you just can't go through it alone?
Let em' in on your secret heart.
18.4.09
Atravesso a noite
A manhã se esfrega nos meus olhos
Danço em falso
Como se fosse o último a saber...
por T.P.
A manhã se esfrega nos meus olhos
Danço em falso
Como se fosse o último a saber...
por T.P.
16.4.09
e você, quem é?
ir a Santos de carona com seu pai, passear com sua mãe, visitar as duas avós, o avô e encontrar com uma porção de tios e primos.
observar as ações pouco gentis do tempo. passar em frente à grande casa onde sua avó morou por quase 30 anos e ver um imenso prédio ser erguido - camadas agressivas de concreto duro onde antes havia jardim.
no fundo da alma, a matriarca de O Jardim das Cerejeiras (comédia dramática em quatro atos de Anton Tchekhov) clama com os sentidos em chama:
Oh, meu belo, maravilhoso e querido jardim! Minha vida... estas janelas... minha juventude... Adeus. Adeus!
*
Em Temporada de Gripe (peça de Will Eno), a personagem que Maria Alice fazia diria em dado momento algo parecido com:
Famílias são apenas grupos de pessoas.
*
A gente escolhe raspar o cabelo, escolhe deixá-lo muito grande ou pintá-lo de cores diferentes, escolhe cortar as unhas ou deixá-las compridas, escolhe cuspir no chão ou assoar o nariz no lenço, escolhe em geral onde depositar nossas excreções (e secreções), escolhe tomar banho, escolhe que desodorante usar, escolhe que roupa vestir, escolhe o que comer, escolhe que carro dirigir, escolhe que livros ler, escolhe o que ver na televisão, escolhe com quem conviver, escolhe que horas dormir, escolhe para onde viajar, escolhe nossa religião, escolhe nosso presidente, escolhe... ih, a gente escolhe tanta coisa...
a gente escolhe ser bonito ou ser feio? a gente escolhe nascer rico ou pobre? a gente escolhe nossa cor preferida? a gente escolhe ser sensível? e ser durão? a gente escolhe quando a gente chora? a gente escolhe nossa matéria preferida na escola? e nosso tipo de filme? e gostar de brócolis? e de chocolate? a gente escolhe gostar de pegar ônibus? e saber dirigir? a gente escolhe a hora de ter sono? e as pessoas de quem gostamos? a gente escolhe nossa profissão? a gente escolhe... a gente escolhe o quê, mesmo?
religião a gente escolhe? e não é curioso que havendo tantas “verdades” religiosas diferentes, há quem ESCOLHA acreditar em UMA verdade absolutista e definitiva? quem está errado, nessa brincadeira? quem está mais certo?
a gente não escolhe ser gay, a gente não escolhe ter fome, a gente não escolhe ser rico, a gente não escolhe o país onde nasce, a gente não escolhe ter ou não irmãos, a gente não escolhe ser circuncidado, a gente não escolhe nascer com síndrome de Down, nem perder um dedo, nem ficar surdo, nem ter miopia, nem ter dentes tortos, nem ter mal hálito, nem ser careca, nem ser negro, nem ser branco, a gente não escolhe ser adotado, a gente não escolhe ter pais bêbados ou violentos, a gente não escolhe nascer, a gente não escolhe ser abusado sexualmente, a gente não escolhe ser roubado, a gente não escolhe ter diabetes ou câncer, a gente não escolhe ter alergia.
por que a gente tem alergia, afinal?
e intolerância? e preconceito?
preconceito contra quem é gay, contra quem é travesti, contra quem é machista, contra quem é misógino, contra quem é pobre, contra quem é muito rico, contra quem é mauricinho, contra quem é hippie, contra quem é caipira, contra quem é nordestino, contra quem gosta de axé, contra quem ouve musica clássica, contra quem é exibido, contra quem é tímido, contra quem é feio, contra quem faz plástica, contra quem é manco, contra quem fala alto, contra quem não fala, contra quem é judeu, muçulmano, budista, evangélico, contra quem é estrangeiro, argentino, oriental, negro, índio, contra quem torce pro Corinthians ou pro Palmeiras ou não torce, contra quem é violento, contra quem é bunda mole, contra quem sonega imposto, contra quem é funcionário público, contra quem é detento, contra quem é advogado, contra quem é brega, contra quem é chique, contra quem é velho, contra quem é adolescente, contra quem é adotado, contra quem não tem filhos, contra quem é suicida, contra quem é depressivo, contra quem é alegre demais, contra quem é político, contra quem tem caspa, contra quem é loiro, contra quem rói a unha, contra quem é alcoólatra, contra quem fuma maconha, contra quem é arrogante, contra quem é esquisito, contra quem é emo, gótico, skinhead, contra quem vê novela, contra quem não vai ao teatro, contra quem faz teatro, contra quem... contra quem mesmo?
quem é você, cara pálida, para não aceitar a natureza do outro? quanto você mesmo realmente escolheu para não aceitar quem ele escolhe ser?
o quanto se divide naturezas e escolhas? e onde começa e termina o respeito por ambas?
ponha o seu preconceito no espelho e entenda, o mais rápido que você puder, que o seu preconceito É você e você É o seu preconceito.
*
de 10/02/2006, relembrando belo texto de Pedro Alexandre Sanches:
a montanha do dar-de-ombros
ei, tu, cara-de-tatu. pega teu preconceito mais recôndito, aquele que mais te incomoda porque, quanto mais tu tentas expeli-lo pelo cuspe, mais ele te corrói por dentro.
ei, você aí. que tal levar seu preconceito para passear um pouquinho?
dê uma volta com ele. passeie pelas calçadas, vá pela sombra. mostre ao seu preconceito os cachorrinhos no pet shop. juntos, façam muxoxos às crianças de 12 anos entupidas de consumismo mórbido de shopping center.
ainda que seja difícil, respeite seu preconceito. pague-lhe um sorvete. evite o marketing nas vitrines, sucumba ao marketing onipresente: carregue o seu preconceito para dentro do cinema, conduza-o a assistir um filmão hollywoodiano cotado para ganhar o oscar. compre um saco grande de pipocas.
pague duas entradas, uma meia para você, uma inteira para o seu preconceito. colabore na campanha benemerente que levará o dramalhão da hollywood mountain a faturar bilhões de dólares mundão pobre a fora e umas estatuetas de marketoscar no ex-epicentro do planeta.
e, bingo!, pegue-se de repente de mãos dadas com seu preconceito, no escurinho do cinema, entre beijos lânguidos (de língua) e fogosos, enquanto "brokeback mountain", de ang lee, se avoluma diante de seus (quatro) olhos.
goste. emocione-se um pouquinho assim, ó. derrube uma lágrima furtiva, mas saia do cinema dando de ombros para o "western gay", por não ter se identificado tanto assim.
então olhe de novo para seu preconceito, veja como ele está mudado. pergunte-lhe se gostou do filme (com jeitinho, para não magoá-lo).
molhe seu preconceito com um copinho d'água gelada (antes, faça um bochecho, tire o sal e os piruás do dente, cuspa). teste seu companheirinho eriçado, umedecendo-o, para descobrir se, depois do filme com que você não se identificou tanto assim, seu preconceito irá proliferar feito gremlins n'água, ou se, pluft!, vai se extinguir feito sal diluído em água doce.
dê soro ao seu preconceito. ele merece.
chuvisque-o de lágrimas, suor, urina, sangue, esperma, sucos vaginais, saliva, catarro. cuspa. engula. aplique um chego, uma chegadinha, um xamego, um bole-bole no seu preconceito.
cuide-se bem, perigos há por toda à parte, e é tão necessário viver. mas cuide do seu preconceito no escuro do seu quarto, à meia-noite, à meia-luz. dispa-o de seu capote "pré", desnude-o, acaricie-o e faça-o gozar feito conceito nu (goze com ele), materializado em pré-pós-conceito, em tudo ao mesmo tempo agora onde tudo se mistura.
mate seu preconceito. deixe-o à míngua de inanição. só então olhe-se despido(a) no espelho e veja-o ali de volta, transmutado feito zelig em sua própria face. repita todo o ritual, moldando-se à sua própria imagem e semelhança como fizera até então com seu preconceito (peça o dinheiro de um dos ingressos de volta na bilheteria).
entenda, com carinhos à farta, que o seu preconceito É você, e que você É o seu preconceito.
observar as ações pouco gentis do tempo. passar em frente à grande casa onde sua avó morou por quase 30 anos e ver um imenso prédio ser erguido - camadas agressivas de concreto duro onde antes havia jardim.
no fundo da alma, a matriarca de O Jardim das Cerejeiras (comédia dramática em quatro atos de Anton Tchekhov) clama com os sentidos em chama:
Oh, meu belo, maravilhoso e querido jardim! Minha vida... estas janelas... minha juventude... Adeus. Adeus!
*
Em Temporada de Gripe (peça de Will Eno), a personagem que Maria Alice fazia diria em dado momento algo parecido com:
Famílias são apenas grupos de pessoas.
*
A gente escolhe raspar o cabelo, escolhe deixá-lo muito grande ou pintá-lo de cores diferentes, escolhe cortar as unhas ou deixá-las compridas, escolhe cuspir no chão ou assoar o nariz no lenço, escolhe em geral onde depositar nossas excreções (e secreções), escolhe tomar banho, escolhe que desodorante usar, escolhe que roupa vestir, escolhe o que comer, escolhe que carro dirigir, escolhe que livros ler, escolhe o que ver na televisão, escolhe com quem conviver, escolhe que horas dormir, escolhe para onde viajar, escolhe nossa religião, escolhe nosso presidente, escolhe... ih, a gente escolhe tanta coisa...
a gente escolhe ser bonito ou ser feio? a gente escolhe nascer rico ou pobre? a gente escolhe nossa cor preferida? a gente escolhe ser sensível? e ser durão? a gente escolhe quando a gente chora? a gente escolhe nossa matéria preferida na escola? e nosso tipo de filme? e gostar de brócolis? e de chocolate? a gente escolhe gostar de pegar ônibus? e saber dirigir? a gente escolhe a hora de ter sono? e as pessoas de quem gostamos? a gente escolhe nossa profissão? a gente escolhe... a gente escolhe o quê, mesmo?
religião a gente escolhe? e não é curioso que havendo tantas “verdades” religiosas diferentes, há quem ESCOLHA acreditar em UMA verdade absolutista e definitiva? quem está errado, nessa brincadeira? quem está mais certo?
a gente não escolhe ser gay, a gente não escolhe ter fome, a gente não escolhe ser rico, a gente não escolhe o país onde nasce, a gente não escolhe ter ou não irmãos, a gente não escolhe ser circuncidado, a gente não escolhe nascer com síndrome de Down, nem perder um dedo, nem ficar surdo, nem ter miopia, nem ter dentes tortos, nem ter mal hálito, nem ser careca, nem ser negro, nem ser branco, a gente não escolhe ser adotado, a gente não escolhe ter pais bêbados ou violentos, a gente não escolhe nascer, a gente não escolhe ser abusado sexualmente, a gente não escolhe ser roubado, a gente não escolhe ter diabetes ou câncer, a gente não escolhe ter alergia.
por que a gente tem alergia, afinal?
e intolerância? e preconceito?
preconceito contra quem é gay, contra quem é travesti, contra quem é machista, contra quem é misógino, contra quem é pobre, contra quem é muito rico, contra quem é mauricinho, contra quem é hippie, contra quem é caipira, contra quem é nordestino, contra quem gosta de axé, contra quem ouve musica clássica, contra quem é exibido, contra quem é tímido, contra quem é feio, contra quem faz plástica, contra quem é manco, contra quem fala alto, contra quem não fala, contra quem é judeu, muçulmano, budista, evangélico, contra quem é estrangeiro, argentino, oriental, negro, índio, contra quem torce pro Corinthians ou pro Palmeiras ou não torce, contra quem é violento, contra quem é bunda mole, contra quem sonega imposto, contra quem é funcionário público, contra quem é detento, contra quem é advogado, contra quem é brega, contra quem é chique, contra quem é velho, contra quem é adolescente, contra quem é adotado, contra quem não tem filhos, contra quem é suicida, contra quem é depressivo, contra quem é alegre demais, contra quem é político, contra quem tem caspa, contra quem é loiro, contra quem rói a unha, contra quem é alcoólatra, contra quem fuma maconha, contra quem é arrogante, contra quem é esquisito, contra quem é emo, gótico, skinhead, contra quem vê novela, contra quem não vai ao teatro, contra quem faz teatro, contra quem... contra quem mesmo?
quem é você, cara pálida, para não aceitar a natureza do outro? quanto você mesmo realmente escolheu para não aceitar quem ele escolhe ser?
o quanto se divide naturezas e escolhas? e onde começa e termina o respeito por ambas?
ponha o seu preconceito no espelho e entenda, o mais rápido que você puder, que o seu preconceito É você e você É o seu preconceito.
*
de 10/02/2006, relembrando belo texto de Pedro Alexandre Sanches:
a montanha do dar-de-ombros
ei, tu, cara-de-tatu. pega teu preconceito mais recôndito, aquele que mais te incomoda porque, quanto mais tu tentas expeli-lo pelo cuspe, mais ele te corrói por dentro.
ei, você aí. que tal levar seu preconceito para passear um pouquinho?
dê uma volta com ele. passeie pelas calçadas, vá pela sombra. mostre ao seu preconceito os cachorrinhos no pet shop. juntos, façam muxoxos às crianças de 12 anos entupidas de consumismo mórbido de shopping center.
ainda que seja difícil, respeite seu preconceito. pague-lhe um sorvete. evite o marketing nas vitrines, sucumba ao marketing onipresente: carregue o seu preconceito para dentro do cinema, conduza-o a assistir um filmão hollywoodiano cotado para ganhar o oscar. compre um saco grande de pipocas.
pague duas entradas, uma meia para você, uma inteira para o seu preconceito. colabore na campanha benemerente que levará o dramalhão da hollywood mountain a faturar bilhões de dólares mundão pobre a fora e umas estatuetas de marketoscar no ex-epicentro do planeta.
e, bingo!, pegue-se de repente de mãos dadas com seu preconceito, no escurinho do cinema, entre beijos lânguidos (de língua) e fogosos, enquanto "brokeback mountain", de ang lee, se avoluma diante de seus (quatro) olhos.
goste. emocione-se um pouquinho assim, ó. derrube uma lágrima furtiva, mas saia do cinema dando de ombros para o "western gay", por não ter se identificado tanto assim.
então olhe de novo para seu preconceito, veja como ele está mudado. pergunte-lhe se gostou do filme (com jeitinho, para não magoá-lo).
molhe seu preconceito com um copinho d'água gelada (antes, faça um bochecho, tire o sal e os piruás do dente, cuspa). teste seu companheirinho eriçado, umedecendo-o, para descobrir se, depois do filme com que você não se identificou tanto assim, seu preconceito irá proliferar feito gremlins n'água, ou se, pluft!, vai se extinguir feito sal diluído em água doce.
dê soro ao seu preconceito. ele merece.
chuvisque-o de lágrimas, suor, urina, sangue, esperma, sucos vaginais, saliva, catarro. cuspa. engula. aplique um chego, uma chegadinha, um xamego, um bole-bole no seu preconceito.
cuide-se bem, perigos há por toda à parte, e é tão necessário viver. mas cuide do seu preconceito no escuro do seu quarto, à meia-noite, à meia-luz. dispa-o de seu capote "pré", desnude-o, acaricie-o e faça-o gozar feito conceito nu (goze com ele), materializado em pré-pós-conceito, em tudo ao mesmo tempo agora onde tudo se mistura.
mate seu preconceito. deixe-o à míngua de inanição. só então olhe-se despido(a) no espelho e veja-o ali de volta, transmutado feito zelig em sua própria face. repita todo o ritual, moldando-se à sua própria imagem e semelhança como fizera até então com seu preconceito (peça o dinheiro de um dos ingressos de volta na bilheteria).
entenda, com carinhos à farta, que o seu preconceito É você, e que você É o seu preconceito.
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