23.7.09

X Moradias

(Ricardo, esse é o presente que você me deu.)



Há cerca de um mês, no intervalo de apenas três dias sequenciais, eu ajudei uma empregada doméstica a passar roupa enquanto a ouvia falar sobre sua carreira no futebol, fui um fantasma, tomei chá em um motorhome, convivi numa sala com 60 pássaros, vesti um colete à prova de balas para fazer uma “guerra pelo amor”, ouvi histórias anônimas saídas de dentro de dois caixões, fui colocado em uma sala escura com gatos enjaulados e uma galinha solta, fui recebido de olhos vendados por uma pessoa que lavou meus pés no edifício Copan, me submeti a um teste para trabalhar como faxineiro de uma atriz transsexual, conversei com integrantes do movimento dos sem teto, me vesti de freira e posei para fotos, conversei em catalão, contei e ouvi histórias de uma garota autista, fui uma garota alemã chamada Ju, testemunhei um corretor de seguros recitar um texto deitado no chão de seu banheiro, vi os escombros do teatro Cultura Artística de muito perto e visitei um apartamento de prostitutas na praça Roosevelt.

Eu fui um dos poucos e privilegiados espectadores que participaram do fenomenal projeto X Moradias, que entre 24 e 27 de junho de 2009 instalou-se nos bairros de Higienópolis, Santa Cecília, Consolação, Bela Vista, República e Vila Buarque, em São Paulo.

Três roteiros feitos a pé, com mapas e direcionamento precisos em mãos, de modo a testemunhar dentro de 7 ou 8 “moradias” diferentes da cidade projetos de ocupação artística – cênica/ performática/ audiovisual/ humana.

E acima de tudo, fazendo do espectador um turista de si mesmo, explorador de seu espaço público habitual e de si próprio tão alheio, visitante-invasor de espaços privados profundamente resignificados pelo signo do teatro e das artes todas que o cercam.


DIA 1 – roteiro 1: Higienópolis/ Santa Cecília

  • Daniela Thomas colocou câmeras num amplo apartamento da avenida Higienópolis, de modo que em cada cômodo assistia-se o que se passava em outro. na sala, a dona da casa espiava os vizinhos com um binóculo, enquanto ensinava seu filho a fazer um bolo, na cozinha. “fiquem à vontade”, disse o assistente da visita. andei pelo apartamento. queria tentar descobrir se havia mais mistérios além dos poucos que eu via que não havia. nem tanto as câmeras, remetendo a Big Brothers como referência mais imediata, me deixavam desconfortável, mas o fato de estar começando toda essa experiência nova. como não se oferecia uma “performance” a ser assistida, por assim dizer, minha não ação predominou em meu desconforto.

  • Alvise Camozzi e Rachel Brumana colocaram Dulcilene Maria de Sousa para receber os visitantes com seu jeito meio amalucado. na sala de estar redecorada com roupas penduradas pelo teto e textos escritos pela parede, ela conta de sua paixão pelo futebol, de sua carreira no esporte, enquanto morava na Europa, da sua admiração pelos artistas, de sua vontade de ser uma artista. mas trata-se de uma atriz? quem é essa mulher com tanta naturalidade esmagando sua timidez? eu passo roupa, porque ela me pede. a dona da casa vem então da cozinha, me chama pelo nome, diz que esperava por mim, me trata como um velho amigo, me dá um copo d’água, oferece algo para comer. um casal feliz, em visível e perfeita harmonia doméstica, recebendo na cozinha seus convidados logo depois da empregada doméstica da casa nos entreter na sala de estar. estou prestes a aceitar algo que cheirava bem em uma espécie de frigideira, mas a assistente da visita me direciona para o elevador. haviam se passado os 10 minutos que limitam todas essas experiências. Dulcilene corre até o elevador que fecha as portas e grita “vocês são felizes?”. não há tempo para responder, mas sinto que aquela casa me deixara à vontade demais com coisas pequenas e práticas e confuso com alguns conceitos mais abstratos.

  • Torsten Michaelsen nos dá ipods com fones de ouvido. eu e minha dupla (as visitas acontecem sempre em dupla) ouvimos coisas diferentes um do outro. a voz feminina e algo etérea me fala sobre vozes voando pelo ar. sobre ruídos, sobre aquilo que se ouve na cidade e nas casas. eu deixo de fora o barulho da avenida Angélica e sigo instruções minuciosas dentro de um apartamento silencioso. a voz no meu ouvido, de mim já tão íntima, desde o primeiro momento tão próxima, me diz para olhar o apartamento. me conta a história de um hóspede daquela moradia que um dia viu um fantasma. me manda ir até a cozinha, me manda sair pela porta dos fundos, fecha-la atrás de mim, olhar as escadas do prédio, bater na porta de onde eu saíra, entrar novamente, me fechar dentro de uma dispensa pequena, subir na pequena escada que estava lá dentro, ver pela fresta do armário meu acompanhante deitado no chão da sala. me manda ir até um corredor, ouvir o som por trás das portas, ouvir o som que vem do chão, por debaixo de uma tábua quebrada, enquanto sinto e sei que sou observado. a voz me guia até a porta de saída, não sem antes esclarecer que o fantasma, ali, tinha sido eu. ela se despede, me jogando de volta aos sons da cidade. envolvido pela atmosfera construída de forma tão simples e eficaz, pela experiência sensorial e intelectual, penso nos fantasmas que habitam todas as residências. penso na ocupação do espaço íntimo e em seus inúmeros fantasmas pessoais. penso em mim mesmo entrando num apartamento que não conheço, não encontrando ninguém, não interagindo senão com uma voz pré-gravada tocando em meus ouvidos - em terminando tudo isso e indo embora já mais atordoado por ter pensado em tantas coisas.

  • Letícia Sekito descasca todas as angústias ao nos receber em um trailer parado em um estacionamento, um motorhome daqueles que vemos em filmes norteamericanos. espaço exíguo no tamanho certo para comportar delicadezas redentoras. um corpo que cabe no espaço, uma voz que te acolhe em tom macio, um chá, um pequeno doce, uma carta de tarô e a oferta tão inusitada quanto hipnotizante de uma dança executada sobre a cama, de joelhos, ao fundo da “moradia”. Sekito suspende por breves e intensos minutos a realidade difusa das ruas e transporta seus convidados com tanta singeleza quanto precisão a um tempo e espaço tão verdadeiros quanto transitórios, mas preenchidos de uma espécie reconfortante de paz.

  • Simone Mina te convida a uma gaiola gigante, ao preencher com 60 pássaros soltos a sala de estar do apartamento. belas canções tocam na vitrola, um vídeo é projetado no teto. trata-se de um “estar”, de posicionar-se de determinada forma dentro daquela proposta estranha e algo “selvagem”. como em qualquer outro caso, a disposição do público de comprar a proposta define a experiência. nesse caso, eu não combinava muito com aquilo ali.

  • ao chegar na porta do apartamento ocupado por Elisa Ohtake, os sons altos e as luzes piscantes eram assustadores. uma assistente traz coletes à prova de balas e a tensão só aumenta, portanto. colocados numa minúscula cozinha, somos recebidos por gritos imperativos de como agir na situação presente de um apartamento ocupado. a batalha vai começar em alguns segundos, precisamos estar prontos. recebemos pequenos revólveres de água. a guerra é pelo amor. “precisamos atirar amor nessa cidade”. soa a sirene que nos leva ao amplo terraço. uma forte luz de holofote nos ilumina. somos incitados a atacar, lançar amor para fora daquele apartamento em direção a São Paulo. no prédio em frente, um helicóptero (não cenográfico) pousa, tornando a cena ainda mais surreal. sons e cores. o casal de “combatentes” nos senta em pontas opostas do terraço e passamos então a somente assisti-los. eles usam armas aquáticas maiores. confetes, pequenos fogos de artifício, serpentinas, artefatos carnavalescos em geral. som e fúria e “amor” atirados daquela ampla varanda daquele pequeno apartamento. será que a cidade está entendendo? será que a cidade está pronta para essa guerra? acalmados os ânimos, somos presenteados com uma coreografia bem humorada de dança. até arroz, no fim das contas, é jogado sobre nós – muitas armas inofensivas numa guerra grandiosa e simbólica. é tudo rápido e intenso, de modo que a incredulidade vai sendo rapidamente sobreposta pelo desenfreado regozijo. tem muita coisa ali sendo dita de uma forma que de tão lúdica é quase inacreditavelmente eficiente. a batalha cessa, eles saem de cena. pasmos e com amplos sorrisos, eu e minha dupla nos encaramos. atiro nele o que resta de munição em minha arma. tomo tiros em retribuição. saímos do apartamento molhados. mas é só amor, no fim das contas.

  • no deslumbrante apartamento de Cibele Forjaz, alguém nos recepciona e manda-no ao último quarto, à direita. “acendam a luz, eles estão esperando”. acendo. um beliche, dois caixões. susto, um certo temor. penso que não quero tomar susto - e se alguma coisa sair desses caixões? em frente a eles, duas cadeiras, com dois fones de ouvido, de cujos fios vem de dentro das peças mortuárias. sentamos, ouvimos. em um deles, pessoas falam para onde estão indo naquele dia. no outro, contam seus maiores desejos. vozes, de dentro de dois caixões, empilhados em um beliche, dentro de um quarto de criança. se o idioma falado fosse mandarim, Rodrigo García já teria se feito entender, pela simples proposição, pela atmosfera que instaura de imediato, pelos efeitos emocionais lentos que alcança na extensão daquela situação. como em um velório cênico, mas de peso bastante verossímil, fica-se ali pelo tempo que a perturbação interna permite.



dia 2 – roteiro 3: Consolação/ Bela Vista


  • Lenise Pinheiro faz a rota começar com toda a leveza e o bom humor que o dia chuvoso e cinza merece. recebe-nos com duas assistentes, as três vestidas (ou semi vestidas) de freiras. conta sua obsessão adolescente pelas tais mulheres religiosas e como isso se converteu em uma espécie de hobby adulto. e nos conta, finalmente, que estamos ali para que nos vistamos de freiras nós mesmos e posemos para sua lente, fotógrafa que é. qualquer constrangimento é dissipado pela acolhida calorosa e pelo absoluto inusitado da proposta, do tipo que te leva adiante por seu próprio fator de improbabilidade. se não for aqui, quando eu viverei essa experiência, afinal? vestido de freira, poso. há muito calor debaixo de todo aquele hábito. me desvisto. ganho um escapulário e mais um pouco da simpatia de Lenise e vou embora.

  • Enrique Díaz faz com que entremos em um casarão suntuoso, tombado pelo patrimônio histórico, literalmente caindo aos pedaços e ocupado por dezenas de famílias de sem tetos. uma das moradoras nos conduz pelos cômodos e nos conta as histórias da ocupação e da vida no local. no fim do tour, nos apresenta a Jamaica, um artista plástico naïf que utiliza os mais variados materiais em suas peças. tudo parece rápido, mas contem o esgarçamento das dimensões humanas do tempo, o tempo de um encontro daquele porte. invadir como convidado uma residência invadida. ouvir um outro que é tão outro em termos da realidade social mais imediata, olhá-lo nos olhos, saber a beleza daquilo que faz Jamaica, apertar sua mão, atentar para seu entusiasmo e deslumbramento diante da Arte, a sua e a do mundo. a culpa burguesa e o eventual espanto por ver de perto condições de vida precárias fica em outro lugar. porque no fundo a constatação tão clichê e tão latente é que somos (fomos ali) tão iguais em todas as nossas diferenças.

  • os atores do Centro de Pesquisa Teatral apresentam uma espécie de peça-in-progress, na medida em que fazem girar com imenso naturalismo uma realidade encenada dentro de uma república de jovens, na qual somos convidados a entrar como visitantes esperados, assistimos, sentados em uma pequena cama, ao trecho de um documentário, repassamos as diretrizes para a nossa “reunião da noite”, lemos um texto e somos despachados depois que uma das garotas, grávida, passa terrivelmente mal. teatro, breve.

  • Ieltxu Martinez Ortueta nos recebe falando catalão. nos comunicamos com gestos, ele pede nossos documentos de identidade. nos dá um ovo, no qual marcamos nossas impressões digitais. nos conduz a um cômodo de paredes brancas escritas a caneta. nos dá uma caneta e pede que escrevamos nossos nomes e dados emotivos e sensoriais sobre a cidade onde nascemos. nos oferece o tal ovo frito com pão e vinho. na saída, nos devolve nossos documentos com uma cópia de seu próprio passaporte e um texto sobre identidade. tudo muito quase banal, mas sinto-me como passado por um brinquedo de parque de diversões que me provoca o intelecto. quase como aquele na Disney onde se toca “It’s a Small World”, mas que usa da originalidade e do incomum para me colocar numa mini jornada acerca da comunicação, dos portos (físicos e metafóricos) de origem e, claro, da identidade, em seus sentidos mais e menos amplos.
(atualização - Ieltxu responde a esse blog dizendo:
Caro Rafael, não era catalão no que me comuniquei com você e sim euskera o a lingua dos bascos. Não sou muito fan da factoria Disney mas agradeço o comentario. Espero que o vinho estivesse bom. Abraço e até quem sabe um proximo encontro. Osasuna, agur!
Perdoo-me pelo erro linguístico e esclareço, portanto, que a comparação com a Disney é justamente para mostrar como algo tão menos tecnológico pode ser mais intenso e tão divertido quanto.)

  • na Academia de Boxe, nada acontece. o local, uma escola do esporte instalada sob o viaduto do Minhocão, é impressionante por si. sabê-lo e estar nele, dentro de todo esse contexto de espaços da cidade, suas sombras, luzes e desdobramentos, é o atrativo.

  • Cássio Santiago e Elisa Band me dão de presente o desarmamento e a vulnerabilidade da atriz Ana Goldenstein, ou ao menos o que ela incorpora em seu ato. em um quarto repleto de copos de plástico cheios d’água, Ana é uma mulher esquisita, retraída e estranhamente disponível, fascinante. ingenuamente, poderia chamá-la de uma garota autista, mas certamente é uma exemplificação redutora. ela me conta uma história sobre uma cobra numa floresta. não sei se é real, mas ela me pede uma história e eu conto outra sobre o mesmo tema, uma que é de verdade. ela grava em seu computador. ela reproduz de seu computador uma voz masculina contando uma história. à distancia de meio metro, ela me olha nos olhos até eu desviar, mas eu não desvio porque ela realmente me instiga. ela desvia. falamos sobre cobras no caminho, metafóricas e reais. falamos sobre venenos e antídotos – metafóricos e reais. eu penso em Marina Lima cantando “Veneno” e tenho vontade de dizer a ela que ela quase se parece com Marina Lima, mas embora aquilo não fosse mentira, certamente era uma invenção circunstancial. ela nos convida a ir embora, há um tempo limitador, mas eu passaria todo o resto da tarde ali. e até agora tenho vontade de reencontrá-la.

  • Estela Lapponi joga coisas pelas escadas, ela no andar de cima, nós no andar de baixo da casa. ela nos pede ajuda para mudar um móvel de lugar, ela atira coisas do ex marido pela janela e nos oferece o mesmo prazer. eu arremesso, com gosto, sapatos na rua. ela está arrumando sua desordem física e emocional e nos quer como testemunhas e como auxiliares. são prazerosos minutos, no fim das contas.

  • Simon Will faz com que Juliane Elting e Aguinaldo de Souza Rocha nos dêem uma das mais sinceras e sutis experiências sentimentais de todo o projeto. eu e minha dupla nos separamos e somos levados a portas diferentes da casa. um celular me é entregue. “Ju” está chamando, eu atendo. é Juliane, a dona da casa. eu agora sou ela, ela me diz, e me guia por seu universo particular. mas eu sou ela, então há coisas que ela não me diz, porque eu sei, afinal somos a mesma pessoa. exploro o andar de cima, os quartos, o banheiro. aprendo sobre um porta-objetos azul que minha mãe me mandou da Alemanha, que é onde eu nasci, meu sotaque não me deixa mentir. ao lado da pia, um calendário mostra uma foto de “Água”, a coreografia brasileira de Pina Bausch. descubro que minha dupla é Gui, meu namorado. nós moramos juntos e eu devo chamá-lo para o andar de cima. eu chamo, Gui vem. ele vai colocar uma música para mim, mas o aparelho de som do quarto não o ajuda. eu faço carinho no cabelo dele, porque o Gui gosta de carinho no cabelo. ele põe a música e eu o olhos nos olhos. vamos até o outro quarto e fechamos os olhos diante da janela, nos damos a mão e abrimos os olhos de volta na contagem de três, quando os telefone são desligados. em um segundo, a cidade fora daquela casa, através da janela, me lembra de que eu não sou a Ju. coisa da qual, durante os últimos minutos, eu havia esquecido completamente.



dia 3 – roteiro 2: República/ Vila Buarque

  • Giselle Beiguelmann e Roberta Dab Dab nos fazem brincar diante de projeções, manipulando objetos e interagindo com as imagens. curioso e divertido.

  • Lucas Bambozzi nos dá uma câmera para que através de seu visor, com o recurso night shot, ou seja, de filmagem no escuro, ligado, nós exploremos um apartamento completamente escuro. nada sabemos sobre o que há lá dentro. há sons perturbadores. gaiolas suspensas do teto. miados. há gatos dentro das gaiolas. o apartamento é muito escuro. onde estão seus limites, suas paredes, seus corredores? isso é o som de uma galinha? meu deus, tem uma galinha ali no chão. presa? não, tá solta. e se ela resolver correr por aí? ela ta enxergando alguma coisa? eu to agoniado com esse lugar. será que tem mais coisas em outro cômodo? ih, esbarrei na gaiola. e se o gato me arranhar?! sério, eu não to enxergando nada, to me sentindo no “Ensaio Sobre a Cegueira”. ver uma realidade invisível através dos olhos tecnológicos de uma câmera - até que ponto o que a gente não vê existe? e de que maneira conseguimos ver as coisas, além das nossas próprias limitações? saio de lá afoito, aflito, reflexivo, para dizer o mínimo.

  • Beto Guilger nos recebe em seu apartamento no alto do edifício Copan. ele tem uma voz firme e abarcadora. apresenta-se como artista plástico, conta um pouco de seu trabalho, fala sobre atividades que desenvolve com cegos, fala sobre sensações e percepções, descreve para nós a sala onde estamos, rememora a importância da cerimônia do “lava-pés” no âmbito religioso e simbólico, conecta-a ao fato de estarmos caminhando pelas ruas da cidade onde vivemos, em um percurso de descobertas. nos dá nas mãos objetos que são moldes de sapateiro, em forma de pés. pergunta de que cor queremos a água com a qual ele lavará nossos pés (“azul”). nos pede para tirarmos o sapato e relaxarmos. nossos pés são lavados e secos. vestimos de volta o calçado e somos conduzidos para fora do apartamento. dentro do elevador, podemos tirar as vendas que nos foram colocadas na nossa chegada. eu subi à residência de Beto Guilger no alto do edifício Copan, eu conheci-o, soube de seu ofício, ele me deixou à vontade e relaxado, lavou meus pés. mas eu jamais o vi. e isso é uma experiência tão fantástica quanto inexplicável, de íntima que se torna.

  • Dellbrügge & De Moll nos levam ao telhado do mesmo edifício Copan, guiados por um amalucado condutor, que nos aponta, lá em cima, as regiões e bairros da cidade. é uma vista e tanto. minutos depois, participamos de uma pequena encenação com um senhor que constrói diligentemente um modelo aeroplano a ser lançado, segundo consta, ainda aquele dia, de lá de cima. as significações arquitetônicas e espaciais são intensas, mas a experiência humana da moradia anterior ainda deixa a percepção turva.

  • Nurkan Erpulat nos leva ao apertadíssimo apartamento de Phedra de Córdoba, sexagenária atriz transsexual. de surpresa, nos vemos em uma entrevista de emprego, irrepreensivelmente conduzida pelo amigo Thiago Ledier, profissional de não sair por um segundo de seu papel, mesmo com tanta proximidade. Phedra fuma sentada em sua cama, tudo ali é exíguo e decadente. a encenação da entrevista transcorre com um bom humor que é contraponto cortante ao incômodo que o local provoca. no fim das contas, devassamos a intimidade de Phedra, testemunhamos uma idéia de intervenção cênica criativa e vivemos um role playing estimulante e divertido.

  • Ariel Davila e o coletivo Bineural Monokultur trazem novamente à baila a questão do movimento dos sem teto. a idéia era que visitássemos um edifício ocupado por centenas de famílias, mas elas foram despejadas dias antes do projeto X Moradias ter início. alojadas agora sob um viaduto, nos contam brevemente, através de fotos, vídeos e relatos pessoais, a trajetória desse despejo e nos introduzem à Frente de Luta Pela Moradia. aqui, o caráter é mais político e generalizante, menos pessoal e humano do que na intervenção de Enrique Díaz. mas a política, afinal, é a política da vida, a da moradia, a da ocupação do espaço urbano em sua essência – o que torna impossível o não envolvimento.

  • poucas coisas poderiam preparar-me para a pedrada que Richard Maxwell nos arremessa na cara. em vários âmbitos. o corretor de seguros Cledson Alcides da Silva nos recebe em seu apartamento e nos senta diante de uma mesa. se apresenta e lê, a sua frente, um texto sobre sua admiração pelo teatro e sua vontade de atuar. levanta-se e vai até a cozinha, senta no chão e lê novos textos sobre paixões encontradas e perdidas e obsessões sexuais. faz o mesmo deitado no chão do banheiro e sobre sua cama. sempre lendo, num tom recitativo incômodo e anti-natural. até ali, a coisa já é de uma estranheza desconcertante. Cledson é um corretor de seguros brincando de ser ator mas sendo de forma tão constrangedora quanto sincera somente um corretor de seguros lendo um texto e emulando a atividade comunicativa de um ator. Cledson parece saído de um filme de Todd Solondz e nos causa repulsa e atração, vergonha e interesse. é um homem com seu terno simples, sua respiração ofegante, dentro de seu espaço doméstico mais comum. tudo dentro do contexto do medíocre, no sentido do mediano. mas aquele homem naquele apartamento está sendo ator, está tentando ser ator, está falando palavras nas quais não prestamos atenção porque não podemos senão ficar absortos com a extra-diegese que o cerca. a verdadeira ficção não é o texto que Cledson profere, mas a situação em que ele mesmo se coloca, uma atordoante realidade mal encenando a ficção dentro do contexto de uma iniciativa maior (o projeto X Moradias) que busca justamente infiltrar o artístico dentro do prosaico. Cledson explode em pequenez cotidiana dentro do artístico e faz de si mesmo um assombroso espetáculo. como se não bastasse, minutos antes de encerrar sua cena, ele escancara as portas da pequena varanda de seu quarto, no sétimo andar do prédio. sua mortificante vista é a visão frontal dos escombros do teatro Cultura Artística, destroços e desolação. o corpo inteiro quer se contrair em choro e angústia, enquanto Cledson não pára de falar atrás de mim. os sentidos quase entram em curto circuito e não há mais como pensar em nada.

  • e Gesine Danckwart fecha esse brilhante ciclo lembrando-nos que a hoje “revitalizada” praça Roosevelt um dia já foi um centro de diversões noturnas mais pesadas do que os teatros e os bares, em um tempo em que os prédios eram parques de diversão sexuais, com livre acesso de visitantes entre os andares onde moravam dezenas e dezenas de garotas de programas e travestis. mais uma vez com fones de ouvidos, somos convidados ao apartamento de uma dessas garotas, que nos conta a dinâmica de funcionamento dos atendimentos, dos clientes, dos espaços. no terraço a que somos convidados a sair, chove e venta. nos espera lá fora um dia horrível num fim de tarde sobre São Paulo, enquanto nos acolhe no interior o aconchegante apartamento de uma personagem prostituta. essa separação dicotômica e complementar, distante e tão próxima entre o de dentro e o de fora, talvez seja a chave mais adequada e sintética com a qual encerrar todo esse X Moradias.


ufa!

2 comentários:

extranjis disse...

Caro Rafael, não era catalão no que me comuniquei com você e sim euskera o a lingua dos bascos. Não sou muito fan da factoria Disney mas agradeço o comentario. Espero que o vinho estivesse bom. Abraço e até quem sabe um proximo encontro. Osasuna, agur!

Ieltxu Martinez Ortueta
www.de-extranjis.blogspot.com

Unknown disse...

Ufa mesmo!

Ricardo nos deu o melhor presente do ano até agora e, suspeito, dará um tão bom quanto ou melhor para quem estiver em SP em setemnbro...