30.6.10

a estrela brilhante


Ela costura, ele escreve.

Ela, o mundo concreto do tato, da precisão do ponto, da obra útil e com valores comerciais.
Ele, o universo abstrato da poesia, a absoluta imaterialidade, a pretensão em alcançar o sublime.

De um para o outro, o mistério, o intangível e a complexa atração instintiva que escapa à sensatez prática e ao intelectualismo estético. O insondável encontro.

Nas imagens enxergadas e (re)produzidas com depuração, nos corpos de Abbie Cornish e Ben Whishaw, a própria invenção do sentimento romântico, tornado Romântico.

No amor entre Fanny Brawne e John Keats, a formulação de uma tese, um experimento científico de (auto)observação sobre algo que nada tem de cartesiano.

Nos sentimentos do espírito, respostas e reflexos do corpo. E no entendimento das sensações físicas, o intelecto conscientizando um desenho que o resguarde, a estratificação de um molde.

Naquele casal de amantes, acontecendo aquilo que chamavam amor no momento mesmo em que a literatura inventava isso que chamamos amor. Sentir encaixar num pré-conceito as vivências que buscamos tais quais aprendidas em arquétipos. A fabricação dos arquétipos, enfim.

Nos labirintos dos desenhos poéticos, a apreensão de uma fôrma precisa como o corte de um vestido.

Na captura de borboletas, entre palavras ao vento, dentro do fascínio da natureza florida ou nevada, diante do doce voar de uma cortina, atrás de paredes de madeira, sob o olhar infantil ou tomados pelo mais genuíno e primário espírito lúdico daquilo que é mesmo um jogo. Na hipérbole da falta, a metonímia dos gestos.

Nas cartas, nas visitas, na dança, no cerimonial da sala de chá, nas viagens, na doença e na morte, o derramamento e a amplificação das dores e delícias, o extravasamento agigantado dos sentidos que carecem de explosão para saberem-se vivos. O sagrado nos afetos do coração.

Um filme Romântico, enfim, sobre um Romantismo que é matéria prima e produto final, realizado com astúcia, perícia, a delicadeza da grande arte e um senso equilibrado de sentimentalidade e rigor estético.

Salve Jane Campion.

12.6.10

o homem do lado


De
: Rafael Gomes
Data: 12 de junho de 2010 19h56min42s GMT-03:00
Para: Thiago Ledier
Assunto: o homem do lado


amor,

"Sideman" é mesmo teatríssimo.

sinto naquele texto o peso da tradição da dramaturgia 'clássica' norte-americana, aquelas peças de O'Neill, Tennessee e Miller, uma maneira de radiografar um período, um grupo, uma sociedade, compondo cenas do simples fluir da vida (como no 1º ato de vocês) e de sua natural derrocada (como no 2º ato de vocês), sem necessariamente uma grande explosão, um grande incidente ou propósito engatilhador de um conflito dramático principal e progressivo. e a moral do perder e ganhar, o ímpeto e a desistência em construir algo.

há beleza de sobra no pequeno drama e nós sabemos disso. e quanta não fervilha na melancolia do jazz (eita música para cortas os pulsos, essa...), no desacerto que é a convivência, na busca por um espaço (para a arte, para si mesmo, para estar, para se esconder). nos escorregadios entremeios dos solos de trompete que conseguimos alcançar, que cansamos de fazer, nos quais não somos creditados.

que maravilha é acompanhar Zé Henrique de Paula (e você ao lado dele), sendo essa coisa tão difícil e exigente que é o encenador. quanto êxito colocando de pé de forma tão competente espetáculos tão díspares como os dos últimos anos e quanto cuidado em se ater ao particular de cada um deles, em não aplicar fórmulas mas empreender de dentro pra fora esse árduo e ardiloso trabalho da direção, erguendo a cena sobre o texto - isso que poderia ser tão básico mas cujo resultado eficaz tão usualmente sequer é esboçado.

que glória são Otávio e Sandra. que glória! atingem a plenitude do arquétipo sem descuidar da individuação.

que bonito é o desnudamento e a coragem de Slaviero em encarar essa 'peçona' literalmente de frente, ele que deve saber-se tão sujeito a pré-conceitos e críticas apressadas, derivados de sua carreira na televisão.

que medo de Eric Lenate, amor. que medo! nunca pensei (naturalmente porque não o conhecia como ator) que ele fosse capaz desse negócio tão difícil que é transcender o naturalismo para tão inteiramente conseguir fincar-se nele, embebedando-se em verdade (e que cena estupenda aquela em que ele é preso!)

que coesão o elenco inteiro, enfim (mas, olha, diz pra Gabriela que ela precisa falar um pouco mais alto).

e cenografia, figurinos, iluminação, sons e todos os afins...

é teatro de se aplaudir de verdade, sabe (porque quantas e quantas vezes aplaudimos protocolarmente, não é?)? e que fenomenal é constatar que pode ter gente capaz de fazer, por exemplo, O Idiota, uma jóia tão fora (e tão dentro, também) de padrões secularmente estabelecidos para essas tais "artes cênicas", e também esse Sideman, tão clássico e tão translumbrante em seu equilíbrio e limpidez, em sua atenção ao padrão e ao convencional (extraindo desses conceitos qualquer carga pejorativa). porque quem consegue fazer teatro "clássico" com essa elegância, esse controle e essa inteligência (emocional, acima de tudo) que atire a primeira crítica.

(quantos parênteses, né? acho que a peça abre parênteses na gente.)

e olha só, não tem nada de "muito longo", não. isso é coisa de gente estúpida que não passa mais de meia hora sem checar iphone ou sem mudar de canal. para eles, os guias de programação agora até possuem toda uma sessão separada para aquelas peças ditas de "Humor".

salve os artistas de teatro!

um beijo


R