16.12.10

diários de NY, parte 3: o tempo cristalizado




Bloody Bloody Andrew Jackson é o melhor novo musical da temporada que não chegará ao fim da temporada (com exaltação absoluta da crítica mas venda fraca de ingressos, não bancará a aposta e sairá de cartaz antes do previsto). Reconta de forma muito livre e 'emo-rock', como se autointitula, a vida do 7º presidente americano, cujo legado enfrenta controvérsias entre o patriotismo democrático e o apoio à escravidão e à chacina indígena. É empolgante por todo o tempo de sua curta duração, conta com um score extremamente vivo (apesar de não emplacar nenhuma canção memorável) e, razão principal de sua força e destaque, trabalha uma dramaturgia que joga o tempo inteiro com a mais esperta e deslavada sátira metalinguística, tão escancaradamente (auto) paródica como no melhor de Corra Que A Polícia Vem Aí (ou, digamos, TV Pirata), por exemplo.
Benjamin Walker é o protagonista carismático à frente de um elenco inteiro afiado. Porque é disso que se trata, na melhor tradição da cena 'contemporânea' (oh, esse pavoroso termo!): um estimulante jogo entre bons intérpretes, respaldado por um texto inteligente e que fala a seu tempo (politica e socialmente), narrando o passado com ironia e sagacidade. E o faz na medida certa, em uma encenação enxuta e pulsante, revestida na melhor embalagem do entretenimento.



Deve ser algum tipo de piada interna o fato de todas as biografias de todos os atores, na seção "Who's Who In The Cast", das Playbills distribuídas antes das peças, conter uma participação em Law & Order.



Basicamente desde sua estreia, qualquer espectador de talento sabe perceber que Conduzindo Miss Daisy é uma peça na melhor das hipóteses agradável. Reencená-la, portanto, me parece nada mais do que somente a oportunidade (ou o oportunismo) de criar um veículo para dois atores veteranos brilharem um pouco e lucrarem bastante. É exatamente o que fazem Vanessa Redgrave e James Earl Jones nessa remontagem bem morninha, que, à parte a competência do par central, não empreende nenhum grande momento dramático. Enquanto Earl Jones veste com impacto e propriedade uma partitura física e vocal que é tão bem desenhada em termos de composição quanto difícil de compreender em termos de prosódia (ao menos para ouvidos estrangeiros), Vanessa, bem, vale dizer algumas coisas sobre ela...
Um monstro, Vanessa Redgrave é daquelas atrizes maiores que a vida. Shakespeariana, mitológica, espectral, carrega uma aura que evoca grandes personagens. De alguma forma - e por mais que sua carreira cinematográfica cheia de curvas esquisitas, altos e baixos prove o contrário -, o pensamento nela nunca vem associado a tipos da vida 'real', ao menos não da vida muito ordinária. Mas eis que Miss Daisy é justamente uma senhora bem ordinária do sul dos Estados Unidos, às voltas com o filho e o motorista. Vanessa, a dama inglesa de Retorno a Howards End, o mago Próspero em A Tempestade, Cleópatra, Hécuba, ela em um papel tão... simploriamente americano?
O caso, em verdade, não é nem a questão da nacionalidade, já que ela brilhou alguns anos atrás nesta mesma Broadway como a matriarca de A Long Day's Journey Into Night, a obra-prima absoluta da dramaturgia desse país. O negócio é que Miss Daisy é um papel quase boboca e Vanessa parece ser, literalmente, de um outro lugar. O papel ela tira de letra, é claro. Na segunda cena, já toma conta tão completamente de tudo que passamos até a esquecer que a peça não é tão boa assim. A sensação de miscast, no entanto, deixa seus gosto. Por algum motivo, o próprio físico de Mrs Redgrave diz que ela não precisaria, por exemplo, mexer no que fez Jessica Tandy, essa sim talhada brilhantemente para o papel que lhe encheu de glórias. Ver Vanessa é, apesar de tudo, sem dúvida um momento especial demais, a se reter com afeto para sempre. (Como disse o crítico do NY Times, esses atores gigantes em extinção devem ser vistos em qualquer coisa. Até mesmo em Conduzindo Miss Daisy.)
(Além disso, vê-la encerra uma trilogia que compreende Cate Blanchett e Judi Dench, testemunhadas ao vivo no teatro em 2009. E uma olhadinha nos projetos fílmicos vindouros de Vanessa denuncia que o panorama é de boas expectativas. Ela estará no shakespeariano Coriolanos, dirigido por Ralph Fiennes, e no curiosíssimo Anonymous, de Roland Emmerich, interpretando Elizabeth I. Que vem a ser o papel que consagrou justamente Cate Blanchett e que deu o Oscar a Judi Dench.)



Brief Encounter é uma adaptação para o teatro do filme homônimo de David Lean, de 1945, misturando a ele elementos da peça original de Noël Coward (Still Life) em que se baseou. Trata-se de um achado teatral, pensado e conduzido com muita sensibilidade, extremo senso de ritmo e ideias e soluções cênicas inventivas, trabalhando a favor da narrativa. Como toque final, adicionou-se à trama um punhado de canções do autor, que embalam e ampliam os sentidos do texto. A produção é importada de Londres, de onde vem o elenco inevitavelmente coeso (e que não participou de nenhum episódio de Law & Order). Sem maiores efeitos sentimentais, trata-se de um espetáculo leve que, na medida de de suas pretensões, resulta em agradável surpresa.



Time Stands Still é o exemplo cristalino do fenômeno da dramaturgia norteamericana. Peça passada inteira na sala de estar de um apartamento nova yoquino, é daquelas que você sente que já viu 30 iguais (porque já viu mesmo, em palcos pelo mundo ou importadas para o Brasil, em cartaz em teatros dentro de hotéis, shoppings ou faculdades caras), mas que em nenhum momento falha em ser arrebatadoramente competente. Descendente de uma tradição, saída de um molde, é arriscada e provocadora sem no entanto correr o risco de tirar os pés do chão firme. Um primoroso feito de escrita, é o resultado concreto de uma cultura que leva a autoria a sério - 'creative writing', aqui, se ensina na escola, e pra valer!
Donald Margulies, cujas Jantar Entre Amigos e Histórias Roubadas efetivamente já figuraram em palcos brasileiros, é esse autor de extrema 'correção': escreve peças a partir do cânone, de condução horizontal, com pouca ou nenhuma ousadia ou invenção maior, mas que não falham em refletir assuntos e seres de seu tempo, em criar grandes personagens, em remexer o mundo moral e mover a engrenagem mais primordial do drama - peças para se estudar na escola, enfim.
Aqui, guerra, exploração humanitária, sucesso e fracasso profissional, bombas, cicatrizes, casamento, escolhas pessoais e o tempo que tudo enquadra e congela e transmuta, mesmo parecendo ficar imóvel. Laura Linney, que em anos de papeis coadjuvantes e algumas fortes protagonistas cinematográficas - além do furacão na recente série televisiva The Big C - há muito já comprovou a que veio, entrega uma sólida e comovente performance. Mais à sombra, Bryan D'Arcy James e Eric Bogosian (sim, Vinicius Calderoni, o autor de subUrbia) impulsionam com discrição e plenitude as mulheres que mandam na cena. Além de Linney, num papel originalmente criado por Alicia Silverstone, está Cristina Ricci, mostrando para quem ainda tinha qualquer dúvida que, sim, atua feito gente grande. É ela basicamente que proporciona o alívio cômico maior da peça e o faz com domínio total de tempo e palco.
Poderosa em sua temática, finamente esculpida em sua técnica dramatúrgica, dirigida com sobriedade e belamente atuada, Time Stands Still é o programa teatral imperdível da cidade. (Que o diga Rodrigo Santoro, ali sentado na plateia.)



E o Globo de Ouro, né? Um sorriso amarelo e um muxoxo. Mas daí você pensa "opa, peraí, Meryl Streep cadê? Será que ela não fez nenhum filme nesse ano?". Não, de fato não fez. Mas vem aí em 2011 (provavelmente dessa vez para GANHAR o Oscar) como Margaret Tatcher. No entanto, o que ela FEZ esse ano foi uma participação hilária no já por si hilário Web Therapy, websérie de Lisa Kudrow. Streep como gênia absoluta da invenção, do controle físico e da inteligência (contracenando com Kudrow, que nunca deixou por menos), pode ser vista aqui.





13.12.10

diários de NY, parte 2: o Mercador e os Pianos

  • Edward Hopper é pintor daquelas telas para as quais se poderia olhar durante uma vida inteira. O Whitney Museum o recorta em Modern Life: Edward Hopper and His Time de maneira interessante, mas também preguiçosa. Segundo consta, há 2.500 obras do artista no acervo da instituição, então por que mostrar ao público pouco mais de uma dúzia? Estão lá as míticas Gas, A Woman In The Sun e Early Sunday Morning, além de maravilhas surpreendentes como South Carolina Morning, The Sheridan Theater e The Barber Shop (essa um quase Vermeer de seu tempo). Na seleção da curadoria, pode-se ler Hopper como um elo entre um Realismo subjetivo (ou um Impressionismo realista) e um Futurismo conservador. Ou o ponto fora da curva do Abstracionismo, simplificando formas sem abandonar o figurativo. Fato é que Hopper desde sempre explode sentidos humanos em suas telas como poucos. Curiosamente, é como se suas pinturas tivessem dramaturgia, como se as ferramentas visuais admiravelmente manejadas existissem para dar sentido emotivo pleno ao quadro, mesmo que se trate de uma paisagem deserta.

  • Al Pacino é um monstro e quase todo mundo sabe disso. No entanto, em sua carreira cinematográfica recente - a não ser por excessões pontuais como a série Angels In America ou, dizem, o telefilme You Don't Know Jack -, o comentário recorrente aponta a facilidade com que ele liga o piloto automático. A experiência de vê-lo ao vivo, nesse sentido, adiciona tempero à discussão ao escancarar um 'método' que pode ser também uma espécie de álibi (para Mr. Pacino, entenda-se). Clarifica-se uma sensação de que para Al Pacino (assim como para talvez qualquer ator largamente experimentado), atuar e viver são estados basicamente indissociáveis, complementares, unos até. Há sempre uma máscara no rosto de Al Pacino e essa máscara pode nem sempre apresentar tantas nuances ou variações, pode muitas vezes focar-se em um repertório que achamos já conhecer bem. O que separa o mergulho definitivo e profundo de Al Pacino de uma certa 'canastrice' determinada por uma abordagem mais 'careteira' e imediata, é, portanto, o número de tijolos com que se ergue o personagem. Porque o corpo é aquele, a técnica é aquela, o homem é o mesmo. Seu Shylock, nesse O Mercador de Veneza que é o ingresso mais difícil e disputado da cidade, é uma baita de uma atuação (em termos de voz, partitura física, prosódia, emissão das palavras, domínio do tempo e, acima de tudo, sentido do texto), mas olhando bem de perto (e a segunda fila é bem de perto!), enxerga-se com extrema transparência a construção, os detalhados pedaços de uma vasta parede. E entende-se que um mau Al Pacino e um Al Pacino fascinante são mesmo dois lados da mesma moeda, variando em cada um deles a quantidade e dificuldade das peças no quebra cabeça.

No mais, trata-se de uma montagem boa e correta, poucas vezes realmente empolgante, mas com competente fluidez na travessia de uma dramaturgia prolixa. Um ótimo ensemble, com destaque absoluto para a protagonista Lily Rabe, um rosto assustadoramente igual ao de Laura Linney, com os timbres roucos da voz de Cate Blanchett. Ela e Pacino, como dizem as manchetes, são 'as performances da temporada'.




  • Three Pianos, uma peça-concerto cômico-musical do New York Theater Workshop, nem estreou oficialmente ainda, correrá em temporada limitadíssima, mas é a atração off-Broadway de que se houve falar. Três músicos que também atuam e compõe e cantam (ou pelo menos é assim que se consegue comprender a hierarquia de suas 'funções') escreveram - ou, mais provavelmente, improvisaram - digressões dramatúrgicas para acompanhar o ciclo Winterreise, de 24 canções de Schubert. Três pianos em cena movimentam-se frequentemente em um cenário combinado entre elementos oníricos e realistas, criando imagens estimulantes tanto quanto repetitivas. A música não aparece em sua plenitude, sendo na maioria das vezes apenas citada. As digressões extrapolam e requerem coesão e os talentos estritamente 'dramáticos' dos três performers tampouco seguram com o brio que se pretende as duas horas inteiras de espetáculo. A premissa de criar uma fantasia teatral ao redor de uma peça da música erudita soa apetitosa e promissora (e foi o que nos levou ao teatro, pra começo de conversa), mas, apesar de no geral proporcionar uma experiência consistente e estar muito longe de se configurar como um desperdício (de tempo e/ou da ideia), tampouco realiza-se por inteiro.
PS: Na bilheteria, a atendente: "carteira de identidade, por favor?". Eu: "identidade?". Ela: "vinho é servido durante a peça". Eu: "mas você acha que nós não temos 21 anos?". Ela: "acho". Isso é felicidade (ou, vá lá, cegueira).

12.12.10

diários de Nova York - parte 1

Algumas notas esparsas, a constar:

  • Danny Boyle afunda 127 Hours na exata mesma lama onde os críticos (não americanos, em sua maioria) acusavam-no de emporcalhar Quem Quer Ser Um Milionário. A diferença é que este último aceitava o emporcalhamento e refestelava-se nele (ou era capaz de conduzir o público a assim o fazer, de toda forma), enquanto o primeiro só exaspera-se para sair do atoleiro. James Franco faz o que pode (seu convite de apresentador do Oscar, dizem, terá dupla serventia) e há, por parte do roteiro e da direção, de fato uma força em segurar um filme inteiro sobre (ou sob) uma situação dramática literalmente muito restrita. Mas quando vai-se desenhando a perspectiva da pieguice destrambelhada e da diluição das boas ideias, o erro já se apresenta sem volta. (As críticas, aqui, são majoritariamente festivas, não obstante.

  • Soa como um provincianismo deslumbrado achar que a grama da metrópole do vizinho é mais verde, suculenta, esperta e cosmopolita do que a sua própria, mas se já é cantiga velha dizer que passou da hora de São Paulo ter sua Time Out, que dizer então do New York Times e sua edição de fim de semana?! Bem, ela é, assim... ela é o jornal que qualquer culturete (deslumbrado?) merece. Em Arts & Leisure, a reportagem sobre o 'novo' disco de Michael Jackson, uma análise acerca do fracasso das peças de cunho histórico da temporada de outono, o novo dos irmãos Coen, uma revisão da carreira de Bernardo Bertolucci, um perfil de Sofia Coppola, uma entrevista com James L Brooks e outra com a dupla John Cameron Mitchell/ Nicole Kidman. Isso tudo num mesmo caderno de cultura. E não é só uma questão de 'as celebridades deles brilham mais do que as nossas' e sim uma questão de o que se pode fazer/ como abordar essas celebridades. Porque não se trata de textos rápidos e 'releasísticos', mas conteúdos substanciais produzidos a partir dos eventos/ personagens/ tópicos da semana. Para coroar, a The New York Times Magazine traz as fotos e o 'making of' de 14 Actors Acting, mais irmãos Coen, uma investigação sobre as estrelas mirins (a propósito de Elle Fanning), 'o que o filme sobre o Facebook falhou em capturar sobre a era digital', e matéria sobre a noção de realidade fílmica entre documentários verdadeiros e falsos e ficções inspiradas na realidade. This is it.

  • La Bohème em montagem do Metropolitan encenada por Franco Zeffirelli é a opulência que se pode esperar, com cenários de grandioso e meticuloso realismo (praça em Paris com centenas de figurantes, neve artificial etc). Joseph Calleja e Fabio Capitanucci destacando-se sobre as colegas Krassimira Stoyanova e Ellie Dehn, competentes porém sem brilho. Mas a efervescência emocional de uma Bohème bem conduzida (em termos musicais e cênicos) é sempre irresistível.