13.12.10

diários de NY, parte 2: o Mercador e os Pianos

  • Edward Hopper é pintor daquelas telas para as quais se poderia olhar durante uma vida inteira. O Whitney Museum o recorta em Modern Life: Edward Hopper and His Time de maneira interessante, mas também preguiçosa. Segundo consta, há 2.500 obras do artista no acervo da instituição, então por que mostrar ao público pouco mais de uma dúzia? Estão lá as míticas Gas, A Woman In The Sun e Early Sunday Morning, além de maravilhas surpreendentes como South Carolina Morning, The Sheridan Theater e The Barber Shop (essa um quase Vermeer de seu tempo). Na seleção da curadoria, pode-se ler Hopper como um elo entre um Realismo subjetivo (ou um Impressionismo realista) e um Futurismo conservador. Ou o ponto fora da curva do Abstracionismo, simplificando formas sem abandonar o figurativo. Fato é que Hopper desde sempre explode sentidos humanos em suas telas como poucos. Curiosamente, é como se suas pinturas tivessem dramaturgia, como se as ferramentas visuais admiravelmente manejadas existissem para dar sentido emotivo pleno ao quadro, mesmo que se trate de uma paisagem deserta.

  • Al Pacino é um monstro e quase todo mundo sabe disso. No entanto, em sua carreira cinematográfica recente - a não ser por excessões pontuais como a série Angels In America ou, dizem, o telefilme You Don't Know Jack -, o comentário recorrente aponta a facilidade com que ele liga o piloto automático. A experiência de vê-lo ao vivo, nesse sentido, adiciona tempero à discussão ao escancarar um 'método' que pode ser também uma espécie de álibi (para Mr. Pacino, entenda-se). Clarifica-se uma sensação de que para Al Pacino (assim como para talvez qualquer ator largamente experimentado), atuar e viver são estados basicamente indissociáveis, complementares, unos até. Há sempre uma máscara no rosto de Al Pacino e essa máscara pode nem sempre apresentar tantas nuances ou variações, pode muitas vezes focar-se em um repertório que achamos já conhecer bem. O que separa o mergulho definitivo e profundo de Al Pacino de uma certa 'canastrice' determinada por uma abordagem mais 'careteira' e imediata, é, portanto, o número de tijolos com que se ergue o personagem. Porque o corpo é aquele, a técnica é aquela, o homem é o mesmo. Seu Shylock, nesse O Mercador de Veneza que é o ingresso mais difícil e disputado da cidade, é uma baita de uma atuação (em termos de voz, partitura física, prosódia, emissão das palavras, domínio do tempo e, acima de tudo, sentido do texto), mas olhando bem de perto (e a segunda fila é bem de perto!), enxerga-se com extrema transparência a construção, os detalhados pedaços de uma vasta parede. E entende-se que um mau Al Pacino e um Al Pacino fascinante são mesmo dois lados da mesma moeda, variando em cada um deles a quantidade e dificuldade das peças no quebra cabeça.

No mais, trata-se de uma montagem boa e correta, poucas vezes realmente empolgante, mas com competente fluidez na travessia de uma dramaturgia prolixa. Um ótimo ensemble, com destaque absoluto para a protagonista Lily Rabe, um rosto assustadoramente igual ao de Laura Linney, com os timbres roucos da voz de Cate Blanchett. Ela e Pacino, como dizem as manchetes, são 'as performances da temporada'.




  • Three Pianos, uma peça-concerto cômico-musical do New York Theater Workshop, nem estreou oficialmente ainda, correrá em temporada limitadíssima, mas é a atração off-Broadway de que se houve falar. Três músicos que também atuam e compõe e cantam (ou pelo menos é assim que se consegue comprender a hierarquia de suas 'funções') escreveram - ou, mais provavelmente, improvisaram - digressões dramatúrgicas para acompanhar o ciclo Winterreise, de 24 canções de Schubert. Três pianos em cena movimentam-se frequentemente em um cenário combinado entre elementos oníricos e realistas, criando imagens estimulantes tanto quanto repetitivas. A música não aparece em sua plenitude, sendo na maioria das vezes apenas citada. As digressões extrapolam e requerem coesão e os talentos estritamente 'dramáticos' dos três performers tampouco seguram com o brio que se pretende as duas horas inteiras de espetáculo. A premissa de criar uma fantasia teatral ao redor de uma peça da música erudita soa apetitosa e promissora (e foi o que nos levou ao teatro, pra começo de conversa), mas, apesar de no geral proporcionar uma experiência consistente e estar muito longe de se configurar como um desperdício (de tempo e/ou da ideia), tampouco realiza-se por inteiro.
PS: Na bilheteria, a atendente: "carteira de identidade, por favor?". Eu: "identidade?". Ela: "vinho é servido durante a peça". Eu: "mas você acha que nós não temos 21 anos?". Ela: "acho". Isso é felicidade (ou, vá lá, cegueira).

Nenhum comentário: