27.1.05

MATEMÁTICAS EMOCIONAIS E CURVAS DO TEMPO - A PEDRO ALEXANDRE SANCHES (uma crítica ao crítico?)

As pessoas que nasceram na década de 80, ao menos aquelas que tomam tempo para pensar em coisas como essa, vivem com a constante sensação de que vieram para um mundo já envelhecido. A atualidade parece jamais poder igualar-se com a grandiosidade dos feitos passados. Verdade ou não, é uma sensação – que somente se acentua quando o assunto são artes. Se acompanhar o presente já anda difícil, o que dizer de manter-se atualizado com o passado?!

Por isso, invariavelmente, acabamos por descobrir alguns feitos e pessoas bastante depois de eles terem sido “atualidade”. O passado é um baú sem fundo a ser remexido e este é, para os curiosos, um processo lento. Em literatura, artes visuais e, primordialmente, cinema e música, passei algum tempo vivendo com a impressão de estar correndo desesperada e ansiosamente atrás de um trem que já passou, mas no qual, apesar de avistar, nunca conseguia subir. Quantas existências, afinal, seriam precisas para ouvir e ver tudo o de extraordinário que já foi realizado em minha ausência?

Por isso, embora sempre ansioso, fico feliz em perceber que deixei muitas coisas me alcançarem, ou perceber que elas tenham simplesmente o feito sem que eu tenha deixado, requerido ou não. É quase como se o trem da história tivesse dado a volta completa e me encontrasse de retardatário. Novamente não é possível acompanhá-lo de todo, mas, a cada nova volta algo sempre vai ficando.

Quando Pedro Alexandre Sanches passou a escrever para a Ilustrada, caderno de cultura da Folha de SP (jornal ao qual sempre fui fiel), eu tinha 11 anos. Não diria que desde então, mas certamente a partir dos 13 iniciei o processo de moldagem de minha personalidade artística. E esse foi um processo que contou com muita ajuda involuntária de estranhos.

Sempre respeitei os críticos. Antes de poder julgar por mim mesmo se eles escreviam abobrinha ou não (alô, alô, Rubens Ewald!), já procurava ouvi-los e ir descobrir se concordava com o que diziam. Mas o mais importante desse relacionamento era ser constantemente apresentado, através deles, a inúmeras velhas novidades, todas aquelas que eu era muito jovem para já ter conhecido. E acho que jamais ouvi tanto alguém quanto Pedro Alexandre Sanches.

Porque ele era diferente e engraçado e inteligente pra caramba e escrevia textos complexos e acessíveis e sabia do que estava falando e era multi-referencial e sempre lançava olhares e análises amplas e convidava o leitor para compartilhar delas ou não e, principalmente, porque ele era (é) apaixonado pelo assunto de que tratava. A primeira vez que fui fisgado por um de seus textos provavelmente ainda não sabia quem o escrevia. O nome foi fixando-se aos poucos e logo a questão deixou de ser “quem foi que escreveu essa crítica bacana” para “o que será que Pedro Alexandre escreveu dessa vez”. A pessoa sobressaía-se.

Quando PAS lançou “Tropicalismo – Decadência Bonita do Samba” eu já era fã. Comprei o livro de imediato. No entanto (vergonha das vergonhas!) nunca o li. Parei na introdução.

Pausa:
Desde “Titânio”, peça apresentada no Festival de Teatro de Curitiba de 2004, eu comecei a descobrir Roberto Carlos. Já conhecia bem o RC quase sobre-humano em sua grandeza monstruosa, ícone de uma nação. Mas o achava brega. E chato. E besta. E desimportante. Um fenômeno sem substância, como tantos outros. Mas Fernando Kinas, com seu “Titânio”, e Mônica Placha, amiga na platéia (porque justiça tem que ser feita), me fizeram começar a desconfiar que havia mais ali do que o cantor de “Mulher de 40”.
Fim da Pausa.

E em 2004 eu conheci Pedro Alexandre Sanches. E de fã de um nome que assinava os melhores caracteres críticos da imprensa brasileira passei a quase-amigo da pessoa que, veja só, existia por trás das letrinhas. E em 2004 Pedro Alexandre Sanches lançou “Como Dois e Dois São Cinco”, um livro sobre... Roberto Carlos!

Pedro, meu caro, que beleza de livro! Mas não sei escrever críticas – esse é o seu trabalho. E temo que, se escrevesse, esse texto não sairia exatamente conforme o desejado. Então vou “destextificá-lo” e escrever em tópicos.

- Li na ordem, certinho, como o autor pede no Prefácio. E melhor que tenha feito deste modo.
- Você conta uma história e tanto e o faz com uma habilidade narrativa que deixa a mim, cineasta, temeroso de um dia enfrentar sua concorrência no cinema. No melhor estilo das grandes tramas dramáticas, o relato é capaz de conter comédia, suspense, horror, tragédia, ridículo, intriga, choro, sucesso, fracasso, reviravolta, morte e amor, muito amor. É absolutamente contagiante e emocionante sua paixão por Roberto Carlos, amor torto como dois e dois são mil.
- A escrita impecável, o bom humor permanente, a clareza no raciocínio, na argumentação e na condução da linha cronológica e evolutiva (ou involutiva) da trajetória do artista, as idéias firmes e fundamentadas e a óbvia inteligência do texto são coisas que não precisam ser ressaltadas. Chega: todo mundo sabe que é assim.
- É admirável a capacidade de dissecar a carreira artística de RC, e de Erasmo e Wanderléa, realizando uma grande reportagem que abarca, através da obra, o essencial da vida pessoal do artista – só e exatamente aquilo que se precisa saber, aquilo que molda, altera e dialoga com a criação musical -, sem resvalar um mínimo sequer para fofocas e futilidades da vida íntima.
- As pausas são uma maravilha. Para nós, nascidos naquele tal mundo envelhecido, elas são, somadas ao corpo principal do livro e a todas as referências que ele traz, quase uma história completa da música brasileira da época. (A pausa Wilson Simonal é a exceção. Mas eu explico isso melhor via e-mail).
- Igualmente, é impressionante como é possível ter não somente um panorama contextual, mas toda uma verdadeira radiografia da história política e social do Brasil no período abordado. Através de Roberto, que é o Brasil, você, de fato, cuida de contar o Brasil inteiro.
- O cuidado informativo. Cada disco comentado é citado com título e ano no rodapé da página e, para nossos protagonistas, ficha completa das canções que constam em cada obra é oferecida, ajudando o leitor a situar-se e, mais ainda, poder voltar a qualquer momento, sem dificuldade, afim de saber qual era mesmo o nome daquela música daquele LP.
- Não há redundância. É obra de fôlego, fato. Não é qualquer um que a atravessa com a devida concentração e dedicação, fato. Mas fato é, também, que os temas recorrem, sem nunca serem reprisados. Quando necessário, nos é dado o fio necessário para voltarmos à costura do raciocínio e da linha evolutiva da história. Mas é com sincronicidade, sempre.

Mas será, então, que não há nenhuma ressalva?

Sim, talvez haja. O melhor de suas reportagens, textos e críticas foi o fato de elas sempre trazerem, em maior ou menor quantidade, um pouquinho de ficção. Portanto, separar a sua ficção da objetividade do relato pode ter sido uma grande tacada, mas as grandes tacadas podem também falhar.

Os capítulos escritos em “letras deitadinhas, fugindo do papel pela direita por medo do lado esquerdo das páginas” apresentam momentos inacreditáveis, lindos, lindos, lindos, como, por exemplo, “O inimitável: nenhum Roberto”. Mas, em alguns outros momentos, caro PAS, soam reprisados como o resto do livro inteiro não é capaz de ser. Ou soam desinteressantes. Igualmente, embora talvez contradiga elogios feitos acima, em algumas passagens, poucas delas, chega a haver um “rebuscamento” que, embora muitas vezes genial, confunde a objetividade. Juízo subjetivo único deste leitor, mas era necessário haver alguma ressalva, não acha?

O que mais, agora? Agora, Pedro, volte ao e-mail. E escreva a minha dedicatória, que falta neste novo exemplar velho trocado.

Porque eu vou reler “Como Dois e Dois São Cinco” – algo me diz que ele fica ainda melhor numa segunda olhada. Ah, e vou correndo percorrer as páginas de “Tropicalismo”, como há quatro anos eu não fui capaz de fazer. É o trem da história me pegando de novo, no contrapé. Como dois e dois são muitos.

Beijo procê.

Rafael.

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