13.5.05

a crítica e a crítica

Literalmente tudo o que eu queria dizer sobre "Casa de Areia" foi publicado hoje (13/05) por José Geraldo Couto na Ilustrada, com enorme lucidez e clareza, num justo exercício de crítica jornalística.

Está tudo lá, sem tirar nem por uma única vírgula.

Então, justiça seja feita e, com a licença do colega, reproduzo o texto abaixo:



Waddington retrata deserto maranhense como labirinto cerrado

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

À primeira vista, "Casa de Areia" é um drama sobre três gerações de mulheres perdidas no fim do mundo -mais precisamente, nos Lençóis Maranhenses, Nordeste brasileiro.
Mas o filme pode ser visto também como um exercício audiovisual sobre a relatividade do tempo e do espaço. Ou sobre a pequenez humana em face da imensidão do cosmo.
Curiosamente, é nesses dois planos mais "complexos" que "Casa de Areia" parece se realizar de modo mais cabal. No plano do drama, é possível que o espectador ache que falta algo e não se sinta plenamente envolvido. Mas quem pode antever a reação dessa entidade abstrata e fugidia chamada "o espectador"?
O fato é que "Casa de Areia" é o filme mais pessoal e corajoso de Andrucha Waddington. Em seus longas anteriores -"Gêmeas", "Eu Tu Eles" e "Viva São João"-, a paisagem era mera moldura para uma encenação mais ou menos televisiva, mais ou menos teatral.
Aqui, o espaço é protagonista, agindo diretamente sobre o destino e o espírito dos personagens. Já as primeiras cenas são eloqüentes: o que se vê antes de tudo é uma vastidão de areia, uma paisagem desértica, lunar, onde a presença humana é prenunciada por ruídos de uma caravana.
Só depois começam a aparecer, como pontos indistintos, entre animais igualmente indistintos, os personagens conduzidos pelo ensandecido Vasco (Ruy Guerra). Entre eles, estão sua mulher grávida, Áurea (Fernanda Torres), e a mãe desta, Maria (Fernanda Montenegro).
É uma abertura esplêndida, que faz lembrar os inícios de filmes de Werner Herzog.
Nas seqüências seguintes, a caravana se dispersará (não convém aqui dizer como) e sobrarão apenas mãe e filha. Da gravidez de Áurea nascerá Maria, e as duas Fernandas passarão a se revezar nos papéis das três gerações de mulheres.
Perto de onde elas se instalam, num casebre condenado a ser soterrado mais cedo ou mais tarde pela areia, há uma comunidade de pescadores negros, descendentes de um quilombo. A ação começa em 1910 e termina em 1969, segundo se deduz de várias informações indiretas.
Pois um dos méritos de "Casa de Areia" é o de não mastigar as coisas para o público. Não há narração em "off", não há letreiros explicativos, não há diálogos redundantes. E sobretudo não há música rebarbativa, indutora de emoções.
Naquele mundo inóspito, imperam a elipse e o silêncio, rompido de quando em quando pelo uivo do vento. Respeita-se, assim, a sensibilidade do espectador, sua capacidade de preencher os espaços vazios com a própria imaginação -coisa rara no atual cinema brasileiro.
Há uma atmosfera de Gabriel García Márquez no destino insólito dessas mulheres. A própria repetição dos nomes Maria e Áurea remete aos Aurelianos e Josés Arcadios de "Cem Anos de Solidão".
Mas o fantástico permanece apenas como possibilidade não realizada. Waddington mantém-se firme na senda do realismo e de uma certa verossimilhança.
Talvez resida aí o calcanhar-de-aquiles do filme: é possível que o espectador contemporâneo resista a acreditar que aquelas mulheres não conseguiam sair daquele buraco -assim como talvez seja difícil acreditar em Luiz Melodia (ótimo no papel do pescador Massu na maturidade) como cônjuge de Fernanda Montenegro, dada a diferença de idade entre o cantor e a atriz.
Se essas coisas são problemas, são problemas menores, mesmo que porventura dificultem o êxito comercial do filme.
Jorge Luis Borges escreveu, num conto, que o deserto é o pior dos labirintos, porque dele não existe saída. É essa idéia que Waddington construiu visualmente: um labirinto horizontal (enfatizado pelo cinemascope), onde "o que não é chão é céu", como diz Fernanda Torres a certa altura, e onde os únicos pontos de referência verticais, não raro ínfimos, são as figuras humanas.
O que dá pleno sentido ao longa-metragem, entrelaçando o drama humano e a especulação filosófica, é a subtrama dos astrônomos que vão aos Lençóis Maranhenses fotografar estrelas durante um eclipse.
O diálogo entre Áurea e o romântico militar que conduz a expedição científica (Enrique Diaz) ecoa na conversa final entre mãe e filha e ilumina retrospectivamente tudo o que vimos: uma talvez defeituosa, mas muito bela, representação da idéia de que cada ser humano é um mundo, mas esse mundo, na escala do universo, é um magnífico nada.

--------------------------------------------------------------------------------
Casa de Areia
***

2 comentários:

Anônimo disse...

atualiaza! atualiza! atualiza!

Anônimo disse...

Olha só, primo, lendo seus antigos posts, percebi que compartilhamos duas preferências por atrizes: Julianne Moore e Emily Watson. Emily é realmente algo... Tento acompanhar sua carreira dês da primeira vez que assisti As Cinzas de Ângela (uma adaptação muito bem feita do livro, por sinal. A Ângela de Emily é até mais interessante que a Ângela de Frank McCourt)mas infelizmente Santos é desprovida dos melhores filmes, logo tenho que fazer longas caçadas na também desprovida Blockbuster,então creio que deixei passar muitos de seus filmes.
Bom... Julianne Moore é... Julienne Moore - ela é uma das poucas atrizes que se auto-explicam.
:)
E, para não deixar o último post passar batido:
Casa de Areia é um filme que me interessou muito, não só pelo elenco, mas o "plot" me soou muito interessante. Vou tentar assistir, se, é claro, as porcarias dos cinemas dessa cidade permitirem.