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Todo mundo, a essas alturas, já sabe que “Manderlay” e “Marcas da Violência” são filmes sobre a sociedade americana. Mas e daí? E depois? E durante?
São dois grandes filmes. Agradem mais ou menos parcelas específicas do público, são obras de força moral, que cavocam, remexem, fazem barulho e sujeira.
“Marcas da Violência” é um Cronemberg um pouco afastado das temáticas ditas “esquisitas” que já marcaram sua obra. É um filme sobre o abismo interno do homem – e o quanto esse abismo pode ser relevado. Cutuca a ferida da violência na sociedade, indaga o quanto há de nós em nós mesmos. Busca saber em que medida o passado pode ser apagado, esquecido. Há mudança possível na personalidade de um homem? A superfície suave esconde por quanto tempo um interior turbulento, afinal?
Muito bem filmado, com atores no ponto certo (de ebulição), Cronemberg faz de seu filme uma pistola com silenciador – há explosão e sangue, mas praticamente não ouvimos nada. O que não quer dizer que essa história que contrói, destrói e remenda verdades e mentiras que rondam a família, a sociedade, os desvão de caráter e a força das escolhas, não possua um poder de combustão que se faça sentir de forma latente.
Cronember forja, diegeticamente falando, uma vida cenográfica perfeita, que ele faz ser corrompida pela inevitabilidade de alguns sentimentos humanos. Num cenário de paz e perfeição, a violência é a pólvora que desestabiliza as relações humanas, relativiza certezas e faz mudar mesmo a noção que se tem do personagem principal – e de todos a sua volta, nesse sentido. Até que ponto podemos ser fiéis às máscaras que inventamos para nós mesmos?
Um amigo diria que um filme deve antes ser um filme, ou seja, ser bem resolvido em seus aspectos dramatúrgicos, pra só depois ser uma tese, ou uma experiência estética e/ou moral. A construção, de acordo com esse raciocínio, deve ser em camadas – por sobre a existência “fílmica” de um aglomerado de imagens é que deve nascer uma rede de simbolismos, teorias, significâncias.
Melhor fica quando tudo se mistura. “Marcas da Violência” é uma tese (aberta), ponto de confluência de (des) equilíbrios morais e éticos, ponto de partida para uma série de leituras simbólicas e uma construção cinematográfica que sabe exatamente do que é capaz a linguagem com que está trabalhando e, por isso mesmo, faz-se trabalhada com rigor e precisão.
Não se deixe distrair somente pelo “entretenimento” que o filme pode oferecer. Entre no jogo e, como a própria trama, olhe um pouco mais embaixo. Há prazeres (ainda que conflituosos) à espera.
(Uma análise das mais equilibradas e sensatas sobre “Marcas da Violência” é a crítica que Manhola Dargis escreveu sobre o filme no “New York Times”. Se o inglês estiver afiado, arrisque-se clicando AQUI).
“Manderlay”, por sua vez, é a segunda parte da trilogia de Lars Von Trier, iniciada com “Dogville”, sobre a sociedade americana. Baixada a poeira da inovação do primeiro filme, e repetindo a dose estétiva, é possível olhar, nesse segundo capítulo, o que existe em trama e narrativa.
Há bastante. Grace, a personagem agora interpretada pela boa Bryce Dallas Howard, está mais complexa. Longe de ser uma mártir aparentemente estúpida que sofre durante duas horas e meia para metralhar seus carrascos ao final, ela agora possui conflitos internos. E esses conflitos acabam por pautar, de forma bem-sucedida, as dualidades que o roteiro apresenta.
Sim, há didatismo. Sim, o espectador pode revoltar-se e odiar determinados dogmas morais que podem ser lidos com maior ou menor clareza. Mas fato é que o método ainda funciona. Concebido de forma absolutamente teatral (e brechtiana), a narrativa, porem é conduzida de forma (cinematográfica) plenamente competente e límpida. Corre com precisão e atinge o alvo – graças às concepções e realização das atuações, fotografia e da mise-en-scene em si.
Lars Von Trier é homem de inflamar ânimos, mas algumas de suas habilidades, como a de exímio narrador, não podem ser negadas. “Manderlay” é filme dialético por excelência, poderoso em seu discurso. Perante sua tese, é somente a disposição e dedicação do espectador em contruir sua anti-tese que fará deste um filme melhor ou pior.
(E, se vale alguma coisa saber, o signatário gostou bastante.)
2.12.05
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3 comentários:
premiação oficial divulgada. aliás, já te falei do novo woody allen?
rafael com links!
Nos dois filmes da trilogia, o Trier está abusando - matando a pau - nas ironias e nos contrasensos. O que causa efeito nos filmes é a definição de uma perspectiva filosófica e/ou filosofante a partir da qual a narrativa é constituída e que é ela mesma uma espécie refinada de teatro do absurdo. Trier é um vasto provocador. Como diabos Manderley não foi proibido?
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