Fim de ano e parece que os distribuidores de filmes para as salas de cinema resolvem correr e estrear, em novembro e dezembro, TUDO o que eles não estrearam em todos os outros meses.
Muitos filmes dignos de nota. Quatro deles, atualmente em cartaz, associam-se, conversam, instigam em dupla.
1.
“Cidade Baixa” e “Cinema, Aspirinas e Urubus” têm sido saudados como um sopro renovador da cinematografia nacional, como nossa reserva de qualidade num ano até então bastante desanimador. Mais: são recebidos como sopros de vida e faíscas autorais num cenário de pasteurização desalentadora.
E nada disso é à toa nem mentira (embora todas as verdades possam ser relativizadas).
A definição é tão vasta quanto precisa: são filmes com alma. Empobrecer essa afirmação é fácil, pois ela é, em si, simples, nada objetiva. Mas “filmes com alma” são indefectíveis. Ao vermos, sabemos, sentimos – ainda que de forma diferente, ou até com filmes diferentes.
Há anseios, desejos, força e energia criativa. Há um sentimento de mundo, ou um sentimento (ou muitos deles) perante o mundo, compartilhado por diretor, atores, técnicos. Chegando mais ou menos perto do alvo pretendido, o caminho é o fim em si, pois feito com gana, com vontade de acerto. Não se está fazendo cinema burocrático, ou com uma preocupação simplista de simplesmente “entreter” (porque o público pensa, sim!).
As imagens que vemos aqui são fruto de anos de trabalho, de obstinação, da pulsão verdadeira de fazer cinema – e um cinema que, em sua essência, pode ser considerado pouco “comercial”, o que torna as dificuldades de viabilização ainda maiores. A história narrada, a linguagem, as opções estéticas, esses dois filmes, enfim, são cinema feito de dentro para fora.
Porque não há pressões “de mercado”. Sergio Machado e Marcelo Gomes, os diretores de “Cidade” e “Aspirinas”, respectivamente, não estão filmando para ganhar dinheiro, não estão filmando pensando quais fatias do público podem ou não comprar o ingresso, não estão filmando sob encomenda de quem quer que seja. Filmam com amor ao que fazem e na tentativa de compartilhar uma história, um sentimento, um conflito, um encontro. Filmam, assim (mas nem só por isso), filmes bons. E o resto é consequência,
“Cidade Baixa” é um filme físico. Três atores, um triângulo amoroso, sangue e lágrimas. Não existe uma trama complexa. O conflito são os sentimentos que brotam dos personagens: o amor dividido, o amor sublimado, o ciúme, a competição, orgulho e sofrimento. A câmera está perto das transpirações, dos olhares, do desejo. E é isso. Alguns podem achar pouco. E alguns entregam-se e deixam-se envolver. Fato é que é bom.
E quando você começa a pensar “ah, não! Lázaro Ramos e Wagner Moura de novo!?”, eis que eles vêm te surpreender com caracterizações de um naturalismo assombroso e de comunicação direta com o público. Morais ou imorais, é de primeira que se gosta desses personagens. E Alice Braga, em composição física e entrega estimulantes, completa o trio.
De modo análogo e completamente diverso, esse é um filme que conversa com o almodovariano “Fale Com Ela”, na medida em que é sobre a relação (não sexual) entre dois homens. Relação de amor e rugas na mesma potência. A prostituta que vêm tumultuar a questão fecha esse quadro, pintado com tintas fortes, das navalhas do desejo.
Se “Cidade Baixa” é uma disputa, “Cinema, Aspirinas e Urubus” é um compartilhar. Olhar generoso no conhecer aos poucos entre dois personagens tão distantes quanto próximos. O alemão foragido da II Guerra e o pernambucano que quer fugir para o Rio de Janeiro, homens com corpo e alma em trânsito, buscam, juntos, uma salvação, uma outra realidade possível.
Outra história da relação (não sexual) entre dois homens, operando, porém, em chave bastante distinta. Aqui não há transpiração, nem sangue. Lágrimas, talvez na platéia. Há, antes, contemplação. Mas nunca um olhar esteticamente vazio. O sertão fotograficamente adulterado de Marcelo Gomes quer chegar no âmago, quer ser claudicante e árido, mas com poesia sincera.
João Miguel, uma explosão de talento, foge de estereótipos, foge do picaresco, como, no mais, todo o resto do filme – esse não é “O Auto da Compadecida” -, e compõe um sertanejo transbordando de dignidade e verossimilhança.
Filme de generosidade, de descoberta, filme de jornada. Filme que busca o outro, estende a mão, quer conhecer e compreender. Filme que quer compartilhar interioridades – de seres rodeados por um exterior pra lá de castigado e castigador. Filme comovente, belo, belo.
28.11.05
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Um comentário:
mutcho bem :)
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