Filmes conversam.
Caché, atualmente em cartaz em São Paulo, bate-papo diretamente com o bastante recente Marcas da Violência, atualmente disponível em DVD.
Ambos versam sobre a inexorabilidade de passados maculados. Homens atormentados por personalidades e acontecimentos de outrora, aos quais preferem sobrepor-se, os quais gostariam de sublimar, esconder.
Em linhas gerais, ambas as produções possuem a mesma história, o mesmo ponto de conflito. E como são dois portentosos filmes, vale a pena descobrir com cuidado os distintos olhares cinematográficos lançados sobre o tema por dois diferentes realizadores.
Michael Haneke já oferecera um magnífico filme fragmentado em torno de uma contundente idéia em Código Desconhecido. Agora oferece mais um excelente estudo sobre chagas sociais refletidas na vida pessoal e vice-versa. Aqui, o indivídio é agente e produto de seu meio. É resultado de tensões externas que o governam mas também responsável pela manutenção dessas tensões.
Como em um bumerangue psicológico, colonização, subjugamento e crimes voltam, vem, voltam. Pousam em cantos obscuros do passado, explodem à superfície em algo tão banal como uma imagem que não mostra nada. Ou que mostra exatamente tudo?
Com a figura impassível de um assombroso Daniel Auteil, protagonista, Haneke monta um jogo meta-cinematográfico, que mistura peças acerca da linguagem narrativa, da superexposição em uma era supervisual e das camadas (visuais) sombrias enjauladas na mente de um homem.
Demiurgo que se coloca em cena, brilhantemente disfarçado, provocando a platéia sobre si mesmo e sobre o papel dela mesma como voyeur de uma vida encenada, o cineasta (e)leva Caché a um nível intelectual dos mais instigantes.
Sem em nenhum momento deixar de fazê-lo evoluir narrativamente, em uma diegese que transita num suspense finamente construído.
Para o que, vale dizer, colabora o indefectível vigor artístico de Juliette Binoche.
Não deixe de observar a conversa entre Caché e Marcas da Violência. E converse com ambos os filmes você mesmo.
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A Concepção pode ser imperfeito, irritante até, para alguns, mas aí reside seu vigor e seu papel na atual cinematografia brasileira. Filme irregular em ritmo e disperso em algumas (boas) idéias - o que não necessariamente é algo ruim - traça um caminho de ousadia que chacoalha a banalidade e a simples inabilidade narrativa que vem assolando algumas produções recentes - o que necessariamente já o torna digno de nota.
A idéia de indivíduos rebelados contra leis sociais, isolando-se em uma comunidade onde façam as coisas a seu próprio modo, uma espécie de paraíso pessoal, é antiga.
Bem-Vindos, A Praia e Os Sonhadores são alguns dos filmes recentes que lidam com esse tema. Neles, grupos maiores ou menores de pessoas buscam um idílio íntimo através do isolamento, da quebra de regras ou da simples construção de novas, supostamente mais adaptadas a seus próprios anseios.
Em todas as histórias, no entanto, a sociedade alternativa rui, abalada por uma brutal invasão do mundo real em suas esferas - invasão essa que aparece em diferentes formas e situações.
Em A Concepção não é diferente. A felicidade coletiva que não encontra barreiras moralistas e castradoras no real, dada sua existência isolada, acaba também implodida.
Fica, portanto, a sensação nostálgica de um paraíso perdido, de um sonho vivido pela metade. E essa idéia, da impossibilidade de lograr um estilo de vida que fuja das normas reinantes, pois acaba ele também sendo subjugado por elas, é consistente. Faz pensar.
E A Concepção transmite com bastante eficiência essa e outras sensações. E abana a poeira em seu formato narrativo, misturando linguagens, técnicas, pontos de vista.
Há, sim, fragilidades, dependendo do que se olhe e por qual perspectiva. Mas há interesse, aqui. Detratores podem estar certos, defensores também. Mas com tantos (aclamados) filmes que têm rigorosamente nada, esse aqui tem alguma coisa.
E conversa, ele também. Converse. Venha bater esse papo.
PS: Se a brincadeira é fazer relações, ouça e perceba o quanto a canção "Além do Horizonte" (Roberto e Erasmo) conversa com as realidades alternativas descritas nos filmes citados acima. E perceba o quanto a jovem "Vilarejo" (Monte/Baby/Brown/Antunes) conversa com sua antecessora musical (né, M.P.?) e, por consequência, também com os filmes.
1.6.06
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