(carta a mim mesmo)
Você,
lembra de Amores Expressos, filme que lançou Wong Kar Wai para o mundo ocidental? era em 1994 e é em 2008 um filme agitado, assimétrico, pulsante. começa com tiros e perseguições, apresenta um personagem que coleciona pêssegos em calda, passa para toda uma nova história misturando um policial, uma comissária de bordo e uma garçonete viciada em Califórnia Dreamin’, a canção.
Wong exultava com a urbanidade, o movimento, a música, sincronicidades e desencontros. seus extra-ordinários dramáticos vinham das pequenas dramaturgias de seres solitários e apaixonados por suas próprias tramas, apaixonados pelo ato de amar.
e, assim, mesmo que do outro lado do mundo e inseridos em uma cultura outra, aqueles personagens nos eram imediatamente queridos e reconhecíveis, porque nos seduziam com a sedução que sofriam pelo jogo romântico, como o chocólatra que vai trabalhar na fábrica de chocolates e passa a achá-la ainda mais atraente por isso. ou nos seduziam justamente por seu exotismo próximo, por serem pedaços de nós do outro lado do mundo.
lembra do amor com prazo de validade, a espera por uma ligação que nunca vem ou que vem na hora errada, uma noite passada com um absoluto desconhecido por quem nos afeiçoamos, a reação físico-química instantânea e fulgurante que é, se for, aquilo que chamam amor, um apartamento que chora de saudade ou de incompletude, uma passagem em branco - eu que posso te levar aonde você quiser ir - e a música?
espelho que é dos espíritos que retrata, Wong embala seu conteúdo em uma sedução estética que é irresistível - especialmente se o público é de alma chocólatra.
aquela coisa toda que a gente já sabe: desacelerações, acelerações, cores, muitas cores, pouca luz, luz recortada, câmeras deslizantes, profundidades de foco. a confeitaria completa.
em suma, Amores Expressos trazia uma história de amor recém terminado, de rejeição mesmo, cuja cicatrização residia na espera e num momento fortuito em que uma desconhecida surge. depois contava uma história oposta, de começo, de convivência e fantasia e expectativa e projeção e ansiedade para uma relação que vai começar de verdade quando o filme acaba.
daí teve Felizes Juntos, e, ah!, você sabe o quanto Felizes Juntos é um dos filmes de minha vida. não foi a princípio em 1997, na sala 2 do Espaço Unibanco, sozinho em uma sexta-feira. mas esse foi o primeiro filme que vi de Wong Kar Wai.
você sabe o que acontece em Felizes Juntos, não sabe? os dois amantes amam-se na primeira cena e destróem-se mutuamente (“pise machucando com jeitinho esse coração que ainda é teu”) durante o resto do filme. porque amar é um ato brutal e a gente nunca sabe mesmo precisar muito bem quantos e quais sentimentos cabem no amplo espectro do “amor” - a repulsa e a disputa por poder e o ódio e o carinho e o arrependimento e a projeção e a (auto) mutilação e tantas outras coisas boas e ruins.
um casal de Hong Kong, perdido em Buenos Aires, o outro lado do planeta, e permanentemente em busca das Cataratas do Iguaçu (que choram ao som de Caetano Veloso). e o fim do mundo ali perto e o tango, as ruas da capital argentina, o exílio, a jornada, o lar, perder-se e achar-se dentro de si mesmo e no ser amado, sangue e lágrimas, mãos enfaixadas, um táxi de madrugada, rio que perde o chão.
(se você soubesse toda a epopéia de Wong pra fazer esse filme... tantas semanas de filmagem, tanta cena feita e descartada, tanto tempo sem saber exatamente o que fazer, com toda uma equipe estrangeira na América do Sul...)
Buenos Aires é o outro lado do mapa em relação a Hong Kong? se abrir um buraco em um lugar, será que saímos no outro? ou um trem nos leva? ou um tapete voador?
Felizes Juntos são as ruínas, simplesmente, mas ainda descobrindo-se ruínas. um fim de relação elástico, que atrai e repele e nunca sabe se é um novo começo ou um repetido fim. com muito pouco de “durante”, de qualquer maneira.
Amor À Flor da Pele desvia o foco pro outro lado e vai pro “antes”. um antes que é nunca, porque existia o casamento (com outras pessoas) que impedia a plenitude dos amantes. mas o que é mesmo isso que faz com que, um dia, no corredor, talvez nos apaixonemos irremediavelmente por uma outra pessoa que não é aquela com quem já estamos? e porque ficamos com alguém, assim de forma tão permanente? e por que não ficaríamos, afinal? mas como se desata laços às vezes tão bem amarrados, sem deixar ou temer que eles levem consigo partes significativas de nós?
quando nos forjamos em conjunto, existimos de verdade sozinhos?
existimos de verdade em conjunto, se somos seres tão sozinhos?
um muro que guarda todos os segredos do mundo, sussurros e chuva, Hong Kong nos anos 60, noodles, relógios, fumaça de cigarros, corredores e quartos de hotel com o nº 2046 e todo um universo movendo-se em câmera lenta.
2046 virou filme quase-continuação, pulando de um antes frustrado para um depois vazio. um homem com várias mulheres diferentes, mais sublimação, o amor perdido que nunca foi realizado, um trem que leva para o futuro e onde faz frio, ópera. perdíamos em coesão e ganhávamos em ambição, ainda derretíamos na cadeira do cinema de satisfação estética e emocional, nós que adoramos ser ludibriados por muito açúcar.
eis que temos Um Beijo Roubado, então?
a gente sabe que Norah Jones não é realmente uma boa atriz, mas que ela nos ganha por sua simplicidade, e salva-se por mover-se do centro para as margens dos acontecimentos dramáticos na maior parte do filme.
a gente sente uma inevitável estranheza ao perder o exótico e ver inserida em uma realidade cinematográfica que a gente conhece muito bem (qual seja os EUA) artifícios que pareciam tão mais verdadeiros em sua artificialidade quando aconteciam em uma terra distante. (porque a América pra nós não é exílio e é de uma proximidade que torna arriscada e quase patética qualquer tentativa de fazerem dela o que sabemos que ela não é.)
mas, veja, temos um Wong que retoma Amores Expressos em sua cadência episódica e que de novo olha para destroços. porque quando Rachel Weisz e David Strathairn se embatem, um violento choque de amor interrompido acomete o ar. porque percebemos de novo a inexorável agressão que esse sentimento pode ser. quando existe, quando finda, quando uma das partes de fato se extingue.
temos em Natalie Portman o espírito livre e meio fora-da-lei que também temos na mulher de peruca loira. e temos em Jude Law o rapaz que espera sem saber direito se está esperando, mas pleno de uma confiança torta. para ele, temos Cat Power em aparição mágica, cadenciando em sua voz rouca e sua expressão enigmática a resignação honesta de um passado superado.
porque ter as chaves não é suficiente para abrir as portas, assim como é possível também abri-las somente com as mãos.
e Norah Jones, de quem passamos a gostar, devora tortas de blueberry e cruza os Estados Unidos inteiro para conseguir limpar o entulho dos desmoronamentos do local de onde partiu. ouve Cassandra Wilson cantando Harvest Moon, música de cortar os pulsos.
e ouvimos Cat Power cantando que uma vez quisera ser a melhor, enquanto a própria Norah nos canta que não sabe como começar, porque essa história já foi contada antes, só para concluir que vai entrar na dança e cantar junto, porque é assim mesmo que acontece.
a lembrança não vivida gravada em videotape ao som de Yumeji’s Theme, que Wong rouba de si mesmo e desloca-o da sensualidade de seu Amor À Flor da Pele para uma lanchonete em Nova York.
cartões postais.
e, de novo e sempre, focos limitados, cores, imagens aceleradas e desaceleradas, trens, vozes over e todo um arsenal muito familiar, para seu melhor ou menos bom resultado.
sim, Wong já foi mais pontiagudo, mais brilhante, mais inédito. mas a verdade é que não resistimos a esse seu filme “leve”, a essa jornada de auto-conhecimento que parece não expor muita auto-importância, mas que se torna determinante aos poucos.
quando o sorvete invade a torta, nós de espírito romântico estamos ganhos. e tentados e seduzidos e saciados ao mesmo tempo que salivamos.
e nos damos conta, enfim, de que existiu um filme inteiro só para que dois personagens pudessem dar um beijo com gosto bom.
e isso é simplesmente bom. entendeu?
um beijo doce,
R
PS:
deu no New York Times, aliás:
“Mas reclamar da evidente artificialidade dessa variação que Wong faz do Grande Road Movie Americano é arriscar perder o ponto central. Não somente porque na América pós-Hollywood, como todo filósofo francês que se preze sabe, o simulacro eclipsou a coisa em si. Mas também porque o Sr. Wong, cujos filmes anteriores ocasionalmente desgarraram-se para lugares tão distantes de sua amada Hong Kong como a América do Sul, nunca esteve especialmente preocupado com a verossimilhança. É até de se suspeitar que ele contrate um diretor de arte para o slide-show de suas férias de verão. Eu estou mais inclinado a crer que em seu trabalho recente o sr. Wong tenha um persistente apetite pela luxúria, em prol de um glamour desavergonhado e livre que pode ser difícil de encontrar nos filmes hoje em dia e que os cinéfilos às vezes sentem-se culpados em desejar. Reivindicar como grande arte a sua sensibilidade de revista de moda é uma maneira de atribuir valor nutritivo a bombons. E por que não? Nós todos precisamos comer e por que não comer doces?”
17.5.08
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4 comentários:
descobri pq eu me afeiçoei tanto a vc.
e fiquei feliz.
saudade, tá?
wong kar wai é wong kar wai... e
essa definição se encerra em si mesma de forma tacita e inexplicavel.
perdão, Rafael, mas eu li sua carta para você. amo esse amor por essas imagens de amor.
eu temia entrar aqui e não encontrar resposta, mas mesmo que não seja... "não pude evitar, tirou meu ar, fiquei sem chão...".
besodulce,
C.
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