E o Oscar esnoba grandes filmes de grandes diretores, como “Marcas da Violência”, de David Cronemberg, “Match Point”, de Woody Allen e “The New World”, de Terrence Mallick. Mas isso já era previsto.
O que não era exatamente previsível, há alguns meses atrás, era a coroação absoluta de “Brokeback Mountain”, que, como a essa altura todo mundo já sabe, é o filme dos “cowboys gays”. Aclamado criticamente e vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza, em agosto, o filme ganhou o que se chama de momentum e foi, progressivamente, tornando-se um acontecimento cultural-midiático. E todos sabemos que é disso mesmo que a Academia gosta.
E, dessa forma, as cabeças e as sociedades mais liberais (como a nossa??) vêm festejando o sucesso de “Brokeback Mountain” na América de Bush como uma resposta liberalizante à insuportável cruzada moral do presidente republicano.
Mas há algo a se observar aí, e com cuidado.
(Sob o risco de saber o final do filme, não leia a continuação desse texto antes de tê-lo assistido.)
“Brokeback Mountain” é um filme muito, muito bonito. Construído com delicadeza e apuro por Ang Lee, é um drama clássico, de grande equilíbrio. As imagens são pensadas de modo a construir um discurso direto - não sobra, nem falta. E a história é narrada com uso muito bem feito dos espaços físicos e temporais ocupados pelos personagens.
Há, aqui e ali, alguns quase-lugares-comuns, mas o espectro maior do filme e de sua trama fazem as pequenas falhas passarem incólumes.
E Heath Ledger, festejadíssimo e com interpretação chamada até de “soberba” por alguns, mostra-se esforçado. Mas não consegue ser maior que os maneirismos que se impõe e seu estofo dramático é poucas vezes mais do que raso, se pensarmos bem. O estoque de verdade e interiorização plenas ficam por conta do subestimado Jake Gylenhall. Ele, sim, é a alma dessa dupla.
E vale notar também o esforço de Michelle Williams, cumprindo um incomum percurso que vai do seriado televisivo adolescente "Dawson’s Creek" para o Oscar – o que certamente está fazendo remoer, nesse exato momento, alguns de seus pares.
Mas, voltando à observação do que se há para observar: "Brokeback Mountain" é um filme de derrota. Retrata uma luta interna e externa pela felicidade de um amor que, por fim, sucumbe. Quem vence, aqui, é exatamente a sociedade castradora, punitiva e completamente intolerante que George W. Bush tão bem representa.
No filme, o outro é inimigo, inventando regras e padrões e bloqueando a liberdade individual e a concretização de um amor que, por qualquer ponto de vista que se olhe, não encontra justificativa lógica para não acontecer.
Porque se os indivíduos soubessem se relacionar, a homossexualidade no ser humano, e tantas outras coisas, da mesma forma, não seriam mais do que meros detalhes, como ter o cabelo comprido ou curto.
Logo, “Brokeback Mountain” é um grito contido, sim, em luta pelo espaço, pela amplidão, pela liberdade plena – exatamente aquela que os cowboys só conseguem alcançar quando estão nas magníficas paisagens da Montanha Brokeback.
Mas é também o retrato claro e sem redenção do sofrimento impingido a quem busca extravasar fronteiras – ainda que essas fronteiras (morais) sejam somente irracionalidades inventadas pelos homens.
A pergunta que fica é: fosse "Brokeback Mountain" um filme em que o amor triunfa por completo, independente do sexo de quem o vive, filme em que dois homens mostrassem para o outro que podem e vão fazer o que bem entenderem, e pobres daqueles que cruzarem seus caminhos, fosse esse o filme, enfim, e não o triunfo da mutilação, como é em sua diegese, seria ele o favorito ao Oscar de melhor filme nos Estados Unidos de 2006?
27.1.06
veja mais uma
Que a projeção digital é uma VERGONHA e desconfigura COMPLETAMENTE a fotografia dos filmes, isso já é sabido por quem aprecia cinema e possui um cérebro.
Se ela possibilita um barateamento dos lançamentos, anulando a ditadura da película, isso não quer dizer que ela deve ser usada sem critério.
Exibir digitalmente um filme captado em mídia digital parece lógico e coerente com a premissa de baixo orçamento que rege a produção nesse formato.
Mas aniquilar a imagem de um filme como FREE ZONE, captado em 35mm, não é justificável sob nenhum ponto de vista. Se não há como lançá-lo em CINEMA, assuma-se, de uma vez por todas, que se está promovendo uma sessão de DVD coletiva.
Sim, porque é disso que se trata uma sala de cinema com projeção digital - com o diferencial que o dvd, no mais das vezes, mantém a qualidade da imagem.
Se não há como retroceder, já que os exibidores fazem-se de cegos e acreditam na qualidade do procedimento, o MÍNIMO que poderia ser feito era avisar CLARAMENTE o público, inclusive em guias de programação de jornais.
E o DIREITO DE CONSUMIDOR, de fato, seria um ingresso mais barato, já que não se trata, mesmo, de uma sessão de CINEMA.
E, depois, não se entende por que a frequencia de público cai e porque as pessoas preferem ficar em casa, vendo dvds em suas televisões gigantes...
Se ela possibilita um barateamento dos lançamentos, anulando a ditadura da película, isso não quer dizer que ela deve ser usada sem critério.
Exibir digitalmente um filme captado em mídia digital parece lógico e coerente com a premissa de baixo orçamento que rege a produção nesse formato.
Mas aniquilar a imagem de um filme como FREE ZONE, captado em 35mm, não é justificável sob nenhum ponto de vista. Se não há como lançá-lo em CINEMA, assuma-se, de uma vez por todas, que se está promovendo uma sessão de DVD coletiva.
Sim, porque é disso que se trata uma sala de cinema com projeção digital - com o diferencial que o dvd, no mais das vezes, mantém a qualidade da imagem.
Se não há como retroceder, já que os exibidores fazem-se de cegos e acreditam na qualidade do procedimento, o MÍNIMO que poderia ser feito era avisar CLARAMENTE o público, inclusive em guias de programação de jornais.
E o DIREITO DE CONSUMIDOR, de fato, seria um ingresso mais barato, já que não se trata, mesmo, de uma sessão de CINEMA.
E, depois, não se entende por que a frequencia de público cai e porque as pessoas preferem ficar em casa, vendo dvds em suas televisões gigantes...
veja só
Que a revista "Veja" pratica jornalismo marrom já é, há um tempo, de conhecimento daqueles que possuem um cérebro.
Mas a resenha sobre "Crime Delicado", publicada na semana passada, ultrapassa os limites da escrotidão.
Num texto absolutamente nojento, Isabela Boscov ignora todos os limites éticos, embaralha pessoal e profissional e consagra ao filme epítetos e comentários assustadoramente equivocados, sob QUALQUER ponto de vista que se queira ver.
Inflama os ânimos, dá medo. É irresponsabilidade em grau máximo, tão perigosa quanto o porte de armas que a revista fez questão de defender.
É tão, mas tão lamentável, que o espírito inquieto e provocado divide-se entre berrar de ódio ou calar-se, acreditando que imposturas tão baixas devem ser ignoradas.
Mas a resenha sobre "Crime Delicado", publicada na semana passada, ultrapassa os limites da escrotidão.
Num texto absolutamente nojento, Isabela Boscov ignora todos os limites éticos, embaralha pessoal e profissional e consagra ao filme epítetos e comentários assustadoramente equivocados, sob QUALQUER ponto de vista que se queira ver.
Inflama os ânimos, dá medo. É irresponsabilidade em grau máximo, tão perigosa quanto o porte de armas que a revista fez questão de defender.
É tão, mas tão lamentável, que o espírito inquieto e provocado divide-se entre berrar de ódio ou calar-se, acreditando que imposturas tão baixas devem ser ignoradas.
aviso
Por hora, até notícia em contrário, este blog assume para si o título de "o diário aberto de R."
E com o pleno consentimento necessário.
E com o pleno consentimento necessário.
20.1.06
música é perfume
5 melhores coisas sobre "Maria Bethânia - Música É Perfume":
1) Faz lembrar o quanto Maria Bethânia existe. E, meu deus, que bênção é saber disso.
2) Faz lembrar o quanto Maria Bethânia, jamais deixando de ser Maria Bethânia, consegue oferecer prazer e beleza.
3) Faz lembrar o quanto Maria Bethânia, sendo figura física distante de qualquer modelo estético, possui uma força magnética e uma luz que tornam seu rosto, em dados momentos, especialmente bonito.
4) A deliciosamente verdadeira afirmação de Maria Bethânia que dá (sub)título ao filme.
5) Duas cenas: o momento em que Chico Buarque abraça Maria Bethânia, havendo, ali, informação para uma vida inteira, e a cena final, que des-endeusa Maria Bethânia e a engrandece ainda mais por fazê-la próxima.
(Porque, no mais, o documentário é, como obra cinematográfica, bastante insosso. Assiste-se com facilidade, mas é superficial em seu objeto central e repleto de imagens paralelas absolutamente sem propósito, que nunca geram discurso algum.)
1) Faz lembrar o quanto Maria Bethânia existe. E, meu deus, que bênção é saber disso.
2) Faz lembrar o quanto Maria Bethânia, jamais deixando de ser Maria Bethânia, consegue oferecer prazer e beleza.
3) Faz lembrar o quanto Maria Bethânia, sendo figura física distante de qualquer modelo estético, possui uma força magnética e uma luz que tornam seu rosto, em dados momentos, especialmente bonito.
4) A deliciosamente verdadeira afirmação de Maria Bethânia que dá (sub)título ao filme.
5) Duas cenas: o momento em que Chico Buarque abraça Maria Bethânia, havendo, ali, informação para uma vida inteira, e a cena final, que des-endeusa Maria Bethânia e a engrandece ainda mais por fazê-la próxima.
(Porque, no mais, o documentário é, como obra cinematográfica, bastante insosso. Assiste-se com facilidade, mas é superficial em seu objeto central e repleto de imagens paralelas absolutamente sem propósito, que nunca geram discurso algum.)
17.1.06
GLOBO DE OURO - uma pausa de mil compassos
Esse blog sente intensamente o calor de São Paulo, sente muito pelas pessoas que ficaram na fila pelo ingresso do U2 e sente prazer em assistir a premiações anuais cinematográficas.
Logo, concede-se o direito à descontração, sente vontade de também enfiar sua colher no brigadeiro e entrega, em cerimônia black tie, os seus próprios Globos:
* Globo de Ouro de MELHOR AMIGO DRAMA
Adipe Neto, pelo conjunto da obra em 2005.
* Globo de Ouro de MELHOR AMIGO COMÉDIA OU MUSICAL
Marco Dutra, pelo conjunto da obra em 2005.
* Globo de Ouro de MELHOR AMIGO COADJUVANTE
Harvey Colli
* Globo de Ouro de MELHOR ROTEIRO ADAPTADO
Juliana Rojas, por seu expressivo trabalho em “Marco Dutra Eh Um Canalha?”, baseado nas admiráveis vida e obra do Sr. Dutra.
* Globo de Ouro de MELHOR FILME DRAMA
Diana Almeida, pelo conjunto da obra em 2005.
* Globo de Ouro de MELHOR PERFORMANCE IN PROGRESS
A bi-campeã Diana Almeida (!!!), pela vida como um todo.
* Globo de Ouro de MELHOR PERFORMANCE MANÍACO-DEPRESSIVA
Marisa Orth, pelo Show do Gongo 2005.
* Globo de Ouro de MELHOR FILME COMÉDIA OU MUSICAL
Empate:
- Marco Barreto, por “Três”;
- “A Outra Filha de Francisco”, da dupla sertaneja Eduardo & Daniel.
* Globo de Ouro de MELHOR FILME (tragi)COMÉDIA OU MUSICAL
Analice Nicolau, pela apresentação do Globo de Ouro 2006.
* Globo de Ouro de MELHOR FOTOGRAFIA
Paula Manzo, pelo conjunto de fotos tiradas de Rafael Gomes.
* Globo de Ouro de MELHOR MONTAGEM
Daniel Ribeiro, pelo volume acumulado de atividades de montador.
* Globo de Ouro de MELHOR TRILHA SONORA
Marcus Preto, pelo conjunto da obra.
* Globo de Ouro de REVELAÇÃO COMÉDIA OU MUSICAL
Tatiana Fujimori, em prêmio triplo por seus roteiros, pela
recém-desabrochada apreciação de Roberto Carlos e por seu xilofone.
* Globo de Ouro de MELHOR COVER DE DREW BARRYMORE
Marcela Arantes
* Globo de Ouro de MELHOR FARSA QUE DEU CERTO
Rubens Ewald Filho
* Globo de Ouro de MELHOR PERDEDOR
Fernando Meirelles
* Globo de Ouro de MELHOR PREMIAÇÃO GAY
Globo de Ouro 2006, dando os prêmios principais a “Brokeback Mountain” (filme, diretor, roteiro), “Capote” (ator) e “Transamérica” (atriz).
e
* Globo de Ouro Especial “TODOS SABEM QUE ELE É HOURS CONCOURS”
Woody Allen
Aos que não foram agraciados com troféus, sentiram-se injustiçados ou simplesmente não concordam com os prêmios concedidos, não desanimem. Afinal, o Oscar vem aí!
Aos demais, meus sinceros parabéns e muito obrigado pela audiência.
Logo, concede-se o direito à descontração, sente vontade de também enfiar sua colher no brigadeiro e entrega, em cerimônia black tie, os seus próprios Globos:
* Globo de Ouro de MELHOR AMIGO DRAMA
Adipe Neto, pelo conjunto da obra em 2005.
* Globo de Ouro de MELHOR AMIGO COMÉDIA OU MUSICAL
Marco Dutra, pelo conjunto da obra em 2005.
* Globo de Ouro de MELHOR AMIGO COADJUVANTE
Harvey Colli
* Globo de Ouro de MELHOR ROTEIRO ADAPTADO
Juliana Rojas, por seu expressivo trabalho em “Marco Dutra Eh Um Canalha?”, baseado nas admiráveis vida e obra do Sr. Dutra.
* Globo de Ouro de MELHOR FILME DRAMA
Diana Almeida, pelo conjunto da obra em 2005.
* Globo de Ouro de MELHOR PERFORMANCE IN PROGRESS
A bi-campeã Diana Almeida (!!!), pela vida como um todo.
* Globo de Ouro de MELHOR PERFORMANCE MANÍACO-DEPRESSIVA
Marisa Orth, pelo Show do Gongo 2005.
* Globo de Ouro de MELHOR FILME COMÉDIA OU MUSICAL
Empate:
- Marco Barreto, por “Três”;
- “A Outra Filha de Francisco”, da dupla sertaneja Eduardo & Daniel.
* Globo de Ouro de MELHOR FILME (tragi)COMÉDIA OU MUSICAL
Analice Nicolau, pela apresentação do Globo de Ouro 2006.
* Globo de Ouro de MELHOR FOTOGRAFIA
Paula Manzo, pelo conjunto de fotos tiradas de Rafael Gomes.
* Globo de Ouro de MELHOR MONTAGEM
Daniel Ribeiro, pelo volume acumulado de atividades de montador.
* Globo de Ouro de MELHOR TRILHA SONORA
Marcus Preto, pelo conjunto da obra.
* Globo de Ouro de REVELAÇÃO COMÉDIA OU MUSICAL
Tatiana Fujimori, em prêmio triplo por seus roteiros, pela
recém-desabrochada apreciação de Roberto Carlos e por seu xilofone.
* Globo de Ouro de MELHOR COVER DE DREW BARRYMORE
Marcela Arantes
* Globo de Ouro de MELHOR FARSA QUE DEU CERTO
Rubens Ewald Filho
* Globo de Ouro de MELHOR PERDEDOR
Fernando Meirelles
* Globo de Ouro de MELHOR PREMIAÇÃO GAY
Globo de Ouro 2006, dando os prêmios principais a “Brokeback Mountain” (filme, diretor, roteiro), “Capote” (ator) e “Transamérica” (atriz).
e
* Globo de Ouro Especial “TODOS SABEM QUE ELE É HOURS CONCOURS”
Woody Allen
Aos que não foram agraciados com troféus, sentiram-se injustiçados ou simplesmente não concordam com os prêmios concedidos, não desanimem. Afinal, o Oscar vem aí!
Aos demais, meus sinceros parabéns e muito obrigado pela audiência.
12.1.06
1, 2 e 3
Ainda certo de que o que passou não passou (ou seja, o post abaixo ainda merece uma visita), o ano começa com uma surpresa e dois filmes revistos.
1.
Nunca pensei que fosse dizer isso, mas “Se Eu Fosse Você”, filme dirigido por Daniel Filho, me fez gargalhar do começo ao fim.
É evidente que se trata de uma obra sem qualquer valor real – trabalha no mais leve dos leves dos entretenimentos, cheio de lugares-comuns.
Mas Glória Pires e Tony Ramos conferem a seus personagens toda a verdade burlesca que o entorno não consegue ter.
Pela publicidade e pelos pré-conceitos, tão normais nesse caso, o que esperar de um filme desse? Uma bomba?
Pode até ser. Mas certamente das mais divertidas.
Tampouco pensei que fosse algum dia dizer isso, mas passei as horas e dias seguintes à projeção lembrando de Tony Ramos e rindo sozinho.
E amigos têm feito o mesmo. O que só pode levar à verdade de que “Se Eu Fosse Você” cumpre o que promete. Ou melhor, entrega aquilo que nunca nem sequer chegou a prometer.
Uma dica? Deixe o cérebro e o senso critico em casa e divirta-se.
2 e 3.
“2046” e “Família Rodante” são tipos de cinema em tudo opostos, mas iguais em excelência.
Retome o cérebro e o senso crítico, traga a sensibilidade e os sentidos. E indague-se como coisas tão diferente podem surgir dos mesmos meios, na mesma arte. E serem experiências tão recompensadoras.
“2046”, do mago Wong Kar-wai, é cinema como explosão sensitiva. Cores, formas, climas, corpos, roupas, lugares, traços, ângulos, câmeras-lentas, vozes, música, vazios e labirintos. Um filme sobre um homem e seus amores, sobre o tempo, sobre vida transformada em ficção, sobre as dores que sentimos e as que gostamos de sentir.
Amor sublimado, adiado, antecipado, perdido no tempo. Sentimentos atrasados e lembranças. Passados irrecuperáveis. Cicatrizes da alma.
Tudo isso na mais espetacular das fotografias, em enquadramentos de equilíbrio cromático e espacial estarrecedores. E com a mais bela e pontual das trilhas sonoras. E com os atores mais enigmáticos e magnetizantes que há – a câmera simplesmente não consegue parar de olhar para a verdade serena de Tony Leung, a insolência apaixonante de Zhang Ziyi e a candura comovente de Faye Wong.
Isso sem falar da sensualidade da mise-en-scéne, já que Kar-wai é capaz de provocar nos olhos uma excitação quase sexual.
É experiência de beleza estética sem par – do tipo que faz o espectador derreter na cadeira de tanto deleite. E é uma jornada emotiva capaz de leveza inebriante, flutuando por cada fotograma e conduzindo-nos por vôos sentimentais, e capaz de dolorida agudeza.
É, enfim, o mundo transformado em cinema, em um espetáculo construído de forma meticulosa para ser como é. E, portanto, delirantemente agradável.
Quem transforma o cinema em mundo, por sua vez, é Pablo Trapero, no seu “Família Rodante”. Aqui, a integridade humana dos personagens é sem fim.
Em estilo cru e documental, sem firulas, Trapero coloca toda uma família dentro de um trailer, numa viagem de 1200 km pelo interior da Argentina. E ali, naquele confinamento, explodem o humor e o drama, entre contratempos comezinhos e grandes crises pessoais.
Um elenco extraordinário cerca a matriarca – que é interpretada pela própria avó do diretor – para traçar um dos mais francos retratos da família que o cinema já viu. Quem são, afinal, essas pessoas às quais estamos ligado por laços tão indissociáveis? Quão amplo pode ser o espectro de amor e ódio, compreensão e intolerância entre mim e um próximo tão próximo?
Em direção a uma cerimônia de casamento, ou seja, de nascimento de uma nova família, esse grupo de pessoas transborda a ternura e as contradições que há em qualquer coletividade, seja ela um núcleo familiar, seja uma cidade ou nação.
Nossa família é o primeiro e mais forte conjunto a que pertencemos. É o nosso inescapável – o que nos gerou e nossa perpetuação, transmissão a outros do legado de nossas misérias. Misérias, vale dizer, que carregam risos, sangue e lágrimas em igual medida.
E é a noção dessa sucessão de corpos e almas sobre a terra, ligados por laços de sangue, e a maneira (cinematográfica) extremamente singela e afetiva através da qual se chega em tão amplo sentimento ético e estético que fazem de “Família Rodante” um filme enorme.
PS: "Há uma necessidade em todos nós em ter um lugar para esconder ou armazenar certas memórias, pensamentos, impulsos, esperanças e sonhos. Essa é uma parte de nossas vidas que não conseguimos resolver, ou achamos melhor não tentar, mas ao mesmo tempo temos medo de alijá-la. Para alguns, este é um lugar físico; para outros, é um espaço mental, e para alguns poucos não é nenhum dos dois."
Wong Kar Wai
1.
Nunca pensei que fosse dizer isso, mas “Se Eu Fosse Você”, filme dirigido por Daniel Filho, me fez gargalhar do começo ao fim.
É evidente que se trata de uma obra sem qualquer valor real – trabalha no mais leve dos leves dos entretenimentos, cheio de lugares-comuns.
Mas Glória Pires e Tony Ramos conferem a seus personagens toda a verdade burlesca que o entorno não consegue ter.
Pela publicidade e pelos pré-conceitos, tão normais nesse caso, o que esperar de um filme desse? Uma bomba?
Pode até ser. Mas certamente das mais divertidas.
Tampouco pensei que fosse algum dia dizer isso, mas passei as horas e dias seguintes à projeção lembrando de Tony Ramos e rindo sozinho.
E amigos têm feito o mesmo. O que só pode levar à verdade de que “Se Eu Fosse Você” cumpre o que promete. Ou melhor, entrega aquilo que nunca nem sequer chegou a prometer.
Uma dica? Deixe o cérebro e o senso critico em casa e divirta-se.
2 e 3.
“2046” e “Família Rodante” são tipos de cinema em tudo opostos, mas iguais em excelência.
Retome o cérebro e o senso crítico, traga a sensibilidade e os sentidos. E indague-se como coisas tão diferente podem surgir dos mesmos meios, na mesma arte. E serem experiências tão recompensadoras.
“2046”, do mago Wong Kar-wai, é cinema como explosão sensitiva. Cores, formas, climas, corpos, roupas, lugares, traços, ângulos, câmeras-lentas, vozes, música, vazios e labirintos. Um filme sobre um homem e seus amores, sobre o tempo, sobre vida transformada em ficção, sobre as dores que sentimos e as que gostamos de sentir.
Amor sublimado, adiado, antecipado, perdido no tempo. Sentimentos atrasados e lembranças. Passados irrecuperáveis. Cicatrizes da alma.
Tudo isso na mais espetacular das fotografias, em enquadramentos de equilíbrio cromático e espacial estarrecedores. E com a mais bela e pontual das trilhas sonoras. E com os atores mais enigmáticos e magnetizantes que há – a câmera simplesmente não consegue parar de olhar para a verdade serena de Tony Leung, a insolência apaixonante de Zhang Ziyi e a candura comovente de Faye Wong.
Isso sem falar da sensualidade da mise-en-scéne, já que Kar-wai é capaz de provocar nos olhos uma excitação quase sexual.
É experiência de beleza estética sem par – do tipo que faz o espectador derreter na cadeira de tanto deleite. E é uma jornada emotiva capaz de leveza inebriante, flutuando por cada fotograma e conduzindo-nos por vôos sentimentais, e capaz de dolorida agudeza.
É, enfim, o mundo transformado em cinema, em um espetáculo construído de forma meticulosa para ser como é. E, portanto, delirantemente agradável.
Quem transforma o cinema em mundo, por sua vez, é Pablo Trapero, no seu “Família Rodante”. Aqui, a integridade humana dos personagens é sem fim.
Em estilo cru e documental, sem firulas, Trapero coloca toda uma família dentro de um trailer, numa viagem de 1200 km pelo interior da Argentina. E ali, naquele confinamento, explodem o humor e o drama, entre contratempos comezinhos e grandes crises pessoais.
Um elenco extraordinário cerca a matriarca – que é interpretada pela própria avó do diretor – para traçar um dos mais francos retratos da família que o cinema já viu. Quem são, afinal, essas pessoas às quais estamos ligado por laços tão indissociáveis? Quão amplo pode ser o espectro de amor e ódio, compreensão e intolerância entre mim e um próximo tão próximo?
Em direção a uma cerimônia de casamento, ou seja, de nascimento de uma nova família, esse grupo de pessoas transborda a ternura e as contradições que há em qualquer coletividade, seja ela um núcleo familiar, seja uma cidade ou nação.
Nossa família é o primeiro e mais forte conjunto a que pertencemos. É o nosso inescapável – o que nos gerou e nossa perpetuação, transmissão a outros do legado de nossas misérias. Misérias, vale dizer, que carregam risos, sangue e lágrimas em igual medida.
E é a noção dessa sucessão de corpos e almas sobre a terra, ligados por laços de sangue, e a maneira (cinematográfica) extremamente singela e afetiva através da qual se chega em tão amplo sentimento ético e estético que fazem de “Família Rodante” um filme enorme.
PS: "Há uma necessidade em todos nós em ter um lugar para esconder ou armazenar certas memórias, pensamentos, impulsos, esperanças e sonhos. Essa é uma parte de nossas vidas que não conseguimos resolver, ou achamos melhor não tentar, mas ao mesmo tempo temos medo de alijá-la. Para alguns, este é um lugar físico; para outros, é um espaço mental, e para alguns poucos não é nenhum dos dois."
Wong Kar Wai
2.1.06
o que passou passou?
Fim (início) de ano, momento de listas.
Nos primeiros momentos de 2005, escrevi assim, em texto encontrável nos porões escuros desse blog e intitulado “Porque retrospectivas são necessárias”:
...eis, enfim, numa ordem de preferência que vale mais ou menos (sempre muda, sempre há de mudar), os 10 filmes prediletos do ano de 2004 em salas de cinema paulistanas.
- Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças
- Passagem Azul
- Encontros e Desencontros
- Elefante
- Kill Bill
- Whisky
- Entreatos
- O Pântano
- Antes do Pôr-do-Sol
- Dogville (porque nós amamos odiar)
e a sensação de que, mais cedo ou mais tarde, A Vila vem pra cá.
Os gostos sempre mudam, sempre hão de mudar. Melhor se forem ampliados, estendidos, alargados além das impressões imediatas. Vista um ano depois, a lista acima continua válida. Apesar de nem todos os filmes terem sido revistos – o que seria necessário para uma afirmação precisa -, continuam sendo, na memória, muito bons. Revisto, re-debatido, “A Vila” definitivamente entrou na lista, diretamente para a primeira posição.
Isso tudo só para dizer, para quem ainda não sabe, que juízos de valor são sempre relativos. Então, sem mais delongas, a uma nova retrospectiva, em bloco: a dos filmes estreados nas salas de cinema paulistanas durante o ano de 2005. Evidentemente, é uma seleção pessoal, guiada por aspectos intelectuais, estéticos, afetivos e tudo o mais que possa influenciar diretamente em um gostar cinematográfico.
5 GRANDES FILMES
Estes cinco exemplares de arte cinematográfica são os filmes irrepreensíveis, dos quais se faz pouquíssima ou nenhuma ressalva. Possuem ética e estética, autoralidade, pulsão moral e poética, força narrativa – cada um a sua maneira. São, enfim, deleites artísticos na mesma medida em que são instrumentos de reflexão do mundo e do ser humano.
Em ordem alfabética:
CINEMA, ASPIRINAS E URUBUS (Marcelo Gomes)
Num sertão sem estereótipos, a paisagem árida acolhe a verdade do encontro entre dois homens. A fuga e a busca de si mesmo, a apreensão e a construção de um determinado habitat, a difícil simplicidade da afetividade. “Cinemas, Aspirinas e Urubus” dessacorrenta a ficção cinematográfica brasileira, transmitindo um olhar livre de fórmulas, convenções, correções e artificialismos.
FAMÍLIA RODANTE (Pablo Trapero)
“Família Rodante” é uma das duas pérolas que nos chegaram de terras argentinas. Um road-movie incomum, que, colocando toda uma família num trailer em direção a um casamento, soma uma sólida camada emocional e bem-humorada à tradição dos filmes de estrada. Um elenco em estado de graça dá conta de um roteiro tragicômico equilibrado entre a simplicidade de seu conflito e a consistência rara de seus personagens. Do simples, nasce, aqui, uma grande história, um grande retrato afetivo, um grande filme.
MENINA DE OURO (Clint Eastwood)
Ao modo quase clássico, uma história com progressão dramática, transformações, conflitos e heróis que transmutam-se ao longo da trama, perseguindo um objetivo. O que poderia ser mais do mesmo é, nas mãos hábeis e serenas de Clint Eastwood, uma luta de boxe, uma sonata de dor e inexorabilidade. Duro e cruel como somente a vida sabe às vezes ser, “Menina de Ouro” é um nocaute cinematográfico, que retumba apoiado em sólidas bases dramáticas e emotivas – no caso, personagens à margem de um mundo feliz e pacífico, que, sabemos, não existe.
A MENINA SANTA (Lucrécia Martel)
A diretora Lucrécia Martel faz com que seus filmes respirem. A afirmação que pode parecer simplória, no entanto, resume a maneira como ela aborda personagens e situações, construindo um universo de ação autônomo e quase sempre perturbador em sua mistura de crueldade e ternura. Dizer que a trama trata de “desajustes” é conceituar apressadamente o que são, por fato e direito, apenas reentrâncias do caráter humano (“caráter”, aqui, em seu amplo e real sentido, e não como simples expressão de correção moral), filmadas com elegância e com uma minuciosidade que revela ao mesmo tempo que deixa subentender. “A Menina Santa” instiga e comove.
NINGUÉM PODE SABER (Hirokazu Kore-Eda)
Hirokazu Kore-Eda trabalha com o sublime. A metafísica, que era força central de seus dois sensacionais longas-metragens anteriores é, aqui, alcançada através do mais banal cotidiano. No dia-a-dia de crianças abandonadas pela mãe, pautado por uma discreta e árdua batalha pela sobrevivência, cristaliza-se um belíssimo e pungente retrato humano, social, politico. Tons e temas realistas são encenados com leveza quase onírica de tão verdadeiros, e filmados por uma câmera deslumbrante. É filme de uma beleza estética espiritual entrando lentamente pelos olhos do espectador e comprimindo-o com a dor e agudeza de sua narrativa.
ELES DEIXAM (QUASE) NADA A DESEJAR
BENDITO FRUTO (Sergio Goldenberg)
No momento da crítica, a comedia é comumente negligenciada, posta no escanteio de um gênero erroneamente apreendido como superficial. Mas, às vezes, é rindo que o cinema retrata o mundo em sua insana complexidade – que o diga Woody Allen. Caso raríssimo em nossa cinematografia, “Bendito Fruto” é uma excelente comédia, com fina carpintaria dramática, ótimos atores e uma direção tão eficiente quanto discreta. Derrubando estereótipos e pré-conceitos, tanto em sua trama quanto em sua existência como produto audiovisual, eis um filme sensacional e subestimado.
CASA VAZIA (Kim Ki Duk)
Uma fábula delicada sobre os lugares que ocupamos no mundo, física e espiritualmente e o quanto estão aí, cruzados, os (des) caminhos do amor. Com cuidado poético, narra-se uma história plena de simbolismos, que avança de forma competente até mesmo quando ensaia-se atabalhoada.
O FIM E O PRINCÍPIO (Eduardo Coutinho)
Eduardo Coutinho leva seu “método” à Paraíba, para retratar velhos sertanejos. Ressente-se da falta de uma unidade que já foi tão avassaladora em ocasiões anteriores, como em sua obra-prima “Santo Forte”. Mas a delicadeza de abordagem e a inevitabilidade da matéria humana garantem um ótimo documentário.
MANDERLAY (Lars Von Trier)
Segundo capítulo da trilogia iniciada por “Dogville”, “Manderlay” leva adiante o didatismo e dogmatismo existentes no filme anterior. A trama, aqui, parece mais repleta de ambiguidades e menos engessada pelo determinismo, o que definitivamente trabalha a seu favor. A encenação brechtiana permanece assombrosamente eficiente e o discurso segue ainda mais dialético – depende do espectador aceitar ou não o convite.
O JARDINEIRO FIEL (Fernando Meirelles)
Um filmaço. O esquema narrativo hollywoodiano não arrefeceu a capacidade de Fernando Meirelles de realizar um cinema pulsante e comovente, pois comovido. As imagens transmitem um sincero entusiasmo e uma emoção – que podem ser para o bem ou para o mal – perante as coisas do mundo. A estética sobressaltada acompanha uma ética genuína, num filme pungente e estimulante, ao ser um thriller politico ou uma história de amor.
A PESSOA É PARA O QUE NASCE (Roberto Berliner)
Nesse documentário revelador, Roberto Berliner oferece-se com generosidade ao prazer e a surpresa de um gostoso encontro, levando-nos junto. Sua abordagem é afetiva e é estética – ele constrói um filme do tamanho de suas personagens, deixando que elas ocupem o centro da cena a que têm pleno direito. Somos apresentados, de forma imaginativa e deliciosamente profunda em sua aparente despretensão, a três seres humanos que, em sua cegueira, ensinam a enxergar. Há humor e muita beleza, sempre com sinceridade de olhar. Para aqueles dispostos a compartilhar, é um deleite inesperado e bastante intenso.
QUESTÃO DE IMAGEM (Agnes Jaoui)
É uma questão de roteiro. Agnes Jaoui é das mais pródigas dramaturgas do cinema atual, capaz de personagens, diálogos e composições dramáticas que remetem ao melhor Woody Allen. Sua chave de ação é, como a do mestre americano, a tragicomédia – as dores do mundo transformadas em risadas ácidas e irônicas. Mais: Jaoui fecha círculos perfeitos abordando temas específicos. Aqui, a questão da imagem – social, física, intelectual, pessoal ou coletiva – é destrinchada em uma narrativa plena de prazeres.
O QUE VEM LOGO ATRÁS
APENAS UM BEIJO (Ken Loach)
A veia política de Ken Loach, aqui, ronda o amor. É a intolerância étnica e religiosa que intromete-se na relação entre um homem e uma mulher. Se há algo de levemente banal na história, é uma banalidade que exala realismo, enchendo de emoção um cinema que, racionalmente, trabalha como um instrumento de reflexão do mundo.
CRASH (Paul Haggis)
Esquemático, mas muito bem esquematizado. Deixando a frieza analítica de lado, é deixar-se entreter por um amplo mosaico do ódio e da intolerância que, apesar de parecer forçado em alguns momentos, não deixa de ser contundente e desafiador. É Hollywood, mas é o que eles podem fazer de melhor.
DESDE QUE OTAR PARTIU (Julie Bertucelli)
Uma personagem central completamente cativante conduz um drama social delicado, que aborda as feridas da pobreza, do desterro, da velhice e morte. É daquele tipo de filme que vai crescendo progressivamente no espectador, depois que acaba.
UM FILME FALADO (Manoel de Oliveira)
Manoel de Oliveira trabalha nos limites, oferecendo uma estrutura narrativa que tem de ousada o que pode ter de aborrecida. Mas se não chega à perfeição de um “Voltando Para Casa”, não é, de forma nenhuma, um filme a se negligenciar, até mesmo pelo que tem de árduo. Trata-se de um filme-ensaio importante, com grande força de discurso.
HORA DE VOLTAR (Zach Braff)
O cinema independente americano sendo arejado pelos ares da originalidade. Personagens ternamente desajustados e bastante palatáveis em suas “esquisitices”, numa recontagem bastante estimulante de uma velha história (volta para casa, descoberta do amor) – pois feita pelo olhar deslavadamente subjetivo e criativo.
OLDBOY (Chan-wook Park)
Um liquidificador visual e temático que deve ser conhecido.
O QUE MAIS VALEU A PENA:
* A qualidade narrativa de um cinema abertamente popular, e sem ter vergonha disso, em 2 FILHOS DE FRANCISCO.
* A visceralidade e a existência corpórea de um filme como CIDADE BAIXA, cinema de sangue, suor e lágrimas e que possui uma deslumbrante cena final.
* O trabalho de câmera de CLEAN, que fascina visualmente enquanto conta uma boa história de perdas e recomeços.
* O cinemão comercial americano levado a sério, com discurso adulto e para adultos – o que é muito raro -, em CLOSER – PERTO DEMAIS, guiado pela mão segura de Mike Nichols que além de ser eficiente em narrativa, tira de Julia Roberts a melhor atuação de sua carreira.
* “A Mão”, o episódio de Wong Kar Wai em EROS, mais uma explosão de beleza, sutileza e emoção.
* A absoluta crueza psicológica que está no realismo devastador de IRMÃOS, mais uma facada emocional de Patrice Chéreau.
* A ausência de ranço e de pré-disposições ruidosas ao abordar o tema do abuso sexual infantil, no sensível MISTÉRIOS DA CARNE.
* Os momentos epifânicos, seja no prazer sensitivo ou na provocação intelectual, oferecidos pela eterna inquietação do gênio de Godard, em NOSSA MÚSICA.
* O cinema francês espanando a poeira que acompanha sua imagem, no vigor narrativo de REIS E RAINHAS.
* O delicado e delicioso senso de episódico que emana de VIDA DE MENINA, que, guiado pela personagem da excelente Ludmila Dayer, pinta um singelo e rico retrato de um tempo e de um lugar, numa espécie de filme que, olhando para o passado histórico a partir do particular, faz-se fundamental para uma cinematografia.
E ESTES AINDA TIVERAM MUITO A OFERECER...
AMOR PARA SEMPRE, que atiça o raciocínio emocional;
O AVIADOR, que é um grande espetáculo e tem Cate Blanchett;
FILHAS DO VENTO, que possui beleza nos apesares de seus defeitos;
REENCARNAÇÃO, que apresenta uma personagem fascinante, num conflito ainda mais fascinante;
SIDEWAYS, que tem grandes atuações e um bom roteiro;
SOBRE CAFÉS E CIGARROS, que é, no mínimo, interessante, e possui dois episódios realmente excelentes;
A VIDA MARINHA COM STEVE ZISSOU, que tem personagens fantásticos – maiores do que a fraca trama –, desde a concepção em roteiro até às interpretações, a cargo de um timaço.
FIM
PS: E por falar em listas, a revista Bravo!, que publicou um texto fraquinho, fraquinho sobre o cinema oriental, em sua edição de novembro, resolveu, para comemorar seu 100º exemplar, fazer listas de "100 melhores", dos últimos 8 anos. Mas é cada absurdo, que o assunto voltará pra cá, logo, logo.
Nos primeiros momentos de 2005, escrevi assim, em texto encontrável nos porões escuros desse blog e intitulado “Porque retrospectivas são necessárias”:
...eis, enfim, numa ordem de preferência que vale mais ou menos (sempre muda, sempre há de mudar), os 10 filmes prediletos do ano de 2004 em salas de cinema paulistanas.
- Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças
- Passagem Azul
- Encontros e Desencontros
- Elefante
- Kill Bill
- Whisky
- Entreatos
- O Pântano
- Antes do Pôr-do-Sol
- Dogville (porque nós amamos odiar)
e a sensação de que, mais cedo ou mais tarde, A Vila vem pra cá.
Os gostos sempre mudam, sempre hão de mudar. Melhor se forem ampliados, estendidos, alargados além das impressões imediatas. Vista um ano depois, a lista acima continua válida. Apesar de nem todos os filmes terem sido revistos – o que seria necessário para uma afirmação precisa -, continuam sendo, na memória, muito bons. Revisto, re-debatido, “A Vila” definitivamente entrou na lista, diretamente para a primeira posição.
Isso tudo só para dizer, para quem ainda não sabe, que juízos de valor são sempre relativos. Então, sem mais delongas, a uma nova retrospectiva, em bloco: a dos filmes estreados nas salas de cinema paulistanas durante o ano de 2005. Evidentemente, é uma seleção pessoal, guiada por aspectos intelectuais, estéticos, afetivos e tudo o mais que possa influenciar diretamente em um gostar cinematográfico.
5 GRANDES FILMES
Estes cinco exemplares de arte cinematográfica são os filmes irrepreensíveis, dos quais se faz pouquíssima ou nenhuma ressalva. Possuem ética e estética, autoralidade, pulsão moral e poética, força narrativa – cada um a sua maneira. São, enfim, deleites artísticos na mesma medida em que são instrumentos de reflexão do mundo e do ser humano.
Em ordem alfabética:
CINEMA, ASPIRINAS E URUBUS (Marcelo Gomes)
Num sertão sem estereótipos, a paisagem árida acolhe a verdade do encontro entre dois homens. A fuga e a busca de si mesmo, a apreensão e a construção de um determinado habitat, a difícil simplicidade da afetividade. “Cinemas, Aspirinas e Urubus” dessacorrenta a ficção cinematográfica brasileira, transmitindo um olhar livre de fórmulas, convenções, correções e artificialismos.
FAMÍLIA RODANTE (Pablo Trapero)
“Família Rodante” é uma das duas pérolas que nos chegaram de terras argentinas. Um road-movie incomum, que, colocando toda uma família num trailer em direção a um casamento, soma uma sólida camada emocional e bem-humorada à tradição dos filmes de estrada. Um elenco em estado de graça dá conta de um roteiro tragicômico equilibrado entre a simplicidade de seu conflito e a consistência rara de seus personagens. Do simples, nasce, aqui, uma grande história, um grande retrato afetivo, um grande filme.
MENINA DE OURO (Clint Eastwood)
Ao modo quase clássico, uma história com progressão dramática, transformações, conflitos e heróis que transmutam-se ao longo da trama, perseguindo um objetivo. O que poderia ser mais do mesmo é, nas mãos hábeis e serenas de Clint Eastwood, uma luta de boxe, uma sonata de dor e inexorabilidade. Duro e cruel como somente a vida sabe às vezes ser, “Menina de Ouro” é um nocaute cinematográfico, que retumba apoiado em sólidas bases dramáticas e emotivas – no caso, personagens à margem de um mundo feliz e pacífico, que, sabemos, não existe.
A MENINA SANTA (Lucrécia Martel)
A diretora Lucrécia Martel faz com que seus filmes respirem. A afirmação que pode parecer simplória, no entanto, resume a maneira como ela aborda personagens e situações, construindo um universo de ação autônomo e quase sempre perturbador em sua mistura de crueldade e ternura. Dizer que a trama trata de “desajustes” é conceituar apressadamente o que são, por fato e direito, apenas reentrâncias do caráter humano (“caráter”, aqui, em seu amplo e real sentido, e não como simples expressão de correção moral), filmadas com elegância e com uma minuciosidade que revela ao mesmo tempo que deixa subentender. “A Menina Santa” instiga e comove.
NINGUÉM PODE SABER (Hirokazu Kore-Eda)
Hirokazu Kore-Eda trabalha com o sublime. A metafísica, que era força central de seus dois sensacionais longas-metragens anteriores é, aqui, alcançada através do mais banal cotidiano. No dia-a-dia de crianças abandonadas pela mãe, pautado por uma discreta e árdua batalha pela sobrevivência, cristaliza-se um belíssimo e pungente retrato humano, social, politico. Tons e temas realistas são encenados com leveza quase onírica de tão verdadeiros, e filmados por uma câmera deslumbrante. É filme de uma beleza estética espiritual entrando lentamente pelos olhos do espectador e comprimindo-o com a dor e agudeza de sua narrativa.
ELES DEIXAM (QUASE) NADA A DESEJAR
BENDITO FRUTO (Sergio Goldenberg)
No momento da crítica, a comedia é comumente negligenciada, posta no escanteio de um gênero erroneamente apreendido como superficial. Mas, às vezes, é rindo que o cinema retrata o mundo em sua insana complexidade – que o diga Woody Allen. Caso raríssimo em nossa cinematografia, “Bendito Fruto” é uma excelente comédia, com fina carpintaria dramática, ótimos atores e uma direção tão eficiente quanto discreta. Derrubando estereótipos e pré-conceitos, tanto em sua trama quanto em sua existência como produto audiovisual, eis um filme sensacional e subestimado.
CASA VAZIA (Kim Ki Duk)
Uma fábula delicada sobre os lugares que ocupamos no mundo, física e espiritualmente e o quanto estão aí, cruzados, os (des) caminhos do amor. Com cuidado poético, narra-se uma história plena de simbolismos, que avança de forma competente até mesmo quando ensaia-se atabalhoada.
O FIM E O PRINCÍPIO (Eduardo Coutinho)
Eduardo Coutinho leva seu “método” à Paraíba, para retratar velhos sertanejos. Ressente-se da falta de uma unidade que já foi tão avassaladora em ocasiões anteriores, como em sua obra-prima “Santo Forte”. Mas a delicadeza de abordagem e a inevitabilidade da matéria humana garantem um ótimo documentário.
MANDERLAY (Lars Von Trier)
Segundo capítulo da trilogia iniciada por “Dogville”, “Manderlay” leva adiante o didatismo e dogmatismo existentes no filme anterior. A trama, aqui, parece mais repleta de ambiguidades e menos engessada pelo determinismo, o que definitivamente trabalha a seu favor. A encenação brechtiana permanece assombrosamente eficiente e o discurso segue ainda mais dialético – depende do espectador aceitar ou não o convite.
O JARDINEIRO FIEL (Fernando Meirelles)
Um filmaço. O esquema narrativo hollywoodiano não arrefeceu a capacidade de Fernando Meirelles de realizar um cinema pulsante e comovente, pois comovido. As imagens transmitem um sincero entusiasmo e uma emoção – que podem ser para o bem ou para o mal – perante as coisas do mundo. A estética sobressaltada acompanha uma ética genuína, num filme pungente e estimulante, ao ser um thriller politico ou uma história de amor.
A PESSOA É PARA O QUE NASCE (Roberto Berliner)
Nesse documentário revelador, Roberto Berliner oferece-se com generosidade ao prazer e a surpresa de um gostoso encontro, levando-nos junto. Sua abordagem é afetiva e é estética – ele constrói um filme do tamanho de suas personagens, deixando que elas ocupem o centro da cena a que têm pleno direito. Somos apresentados, de forma imaginativa e deliciosamente profunda em sua aparente despretensão, a três seres humanos que, em sua cegueira, ensinam a enxergar. Há humor e muita beleza, sempre com sinceridade de olhar. Para aqueles dispostos a compartilhar, é um deleite inesperado e bastante intenso.
QUESTÃO DE IMAGEM (Agnes Jaoui)
É uma questão de roteiro. Agnes Jaoui é das mais pródigas dramaturgas do cinema atual, capaz de personagens, diálogos e composições dramáticas que remetem ao melhor Woody Allen. Sua chave de ação é, como a do mestre americano, a tragicomédia – as dores do mundo transformadas em risadas ácidas e irônicas. Mais: Jaoui fecha círculos perfeitos abordando temas específicos. Aqui, a questão da imagem – social, física, intelectual, pessoal ou coletiva – é destrinchada em uma narrativa plena de prazeres.
O QUE VEM LOGO ATRÁS
APENAS UM BEIJO (Ken Loach)
A veia política de Ken Loach, aqui, ronda o amor. É a intolerância étnica e religiosa que intromete-se na relação entre um homem e uma mulher. Se há algo de levemente banal na história, é uma banalidade que exala realismo, enchendo de emoção um cinema que, racionalmente, trabalha como um instrumento de reflexão do mundo.
CRASH (Paul Haggis)
Esquemático, mas muito bem esquematizado. Deixando a frieza analítica de lado, é deixar-se entreter por um amplo mosaico do ódio e da intolerância que, apesar de parecer forçado em alguns momentos, não deixa de ser contundente e desafiador. É Hollywood, mas é o que eles podem fazer de melhor.
DESDE QUE OTAR PARTIU (Julie Bertucelli)
Uma personagem central completamente cativante conduz um drama social delicado, que aborda as feridas da pobreza, do desterro, da velhice e morte. É daquele tipo de filme que vai crescendo progressivamente no espectador, depois que acaba.
UM FILME FALADO (Manoel de Oliveira)
Manoel de Oliveira trabalha nos limites, oferecendo uma estrutura narrativa que tem de ousada o que pode ter de aborrecida. Mas se não chega à perfeição de um “Voltando Para Casa”, não é, de forma nenhuma, um filme a se negligenciar, até mesmo pelo que tem de árduo. Trata-se de um filme-ensaio importante, com grande força de discurso.
HORA DE VOLTAR (Zach Braff)
O cinema independente americano sendo arejado pelos ares da originalidade. Personagens ternamente desajustados e bastante palatáveis em suas “esquisitices”, numa recontagem bastante estimulante de uma velha história (volta para casa, descoberta do amor) – pois feita pelo olhar deslavadamente subjetivo e criativo.
OLDBOY (Chan-wook Park)
Um liquidificador visual e temático que deve ser conhecido.
O QUE MAIS VALEU A PENA:
* A qualidade narrativa de um cinema abertamente popular, e sem ter vergonha disso, em 2 FILHOS DE FRANCISCO.
* A visceralidade e a existência corpórea de um filme como CIDADE BAIXA, cinema de sangue, suor e lágrimas e que possui uma deslumbrante cena final.
* O trabalho de câmera de CLEAN, que fascina visualmente enquanto conta uma boa história de perdas e recomeços.
* O cinemão comercial americano levado a sério, com discurso adulto e para adultos – o que é muito raro -, em CLOSER – PERTO DEMAIS, guiado pela mão segura de Mike Nichols que além de ser eficiente em narrativa, tira de Julia Roberts a melhor atuação de sua carreira.
* “A Mão”, o episódio de Wong Kar Wai em EROS, mais uma explosão de beleza, sutileza e emoção.
* A absoluta crueza psicológica que está no realismo devastador de IRMÃOS, mais uma facada emocional de Patrice Chéreau.
* A ausência de ranço e de pré-disposições ruidosas ao abordar o tema do abuso sexual infantil, no sensível MISTÉRIOS DA CARNE.
* Os momentos epifânicos, seja no prazer sensitivo ou na provocação intelectual, oferecidos pela eterna inquietação do gênio de Godard, em NOSSA MÚSICA.
* O cinema francês espanando a poeira que acompanha sua imagem, no vigor narrativo de REIS E RAINHAS.
* O delicado e delicioso senso de episódico que emana de VIDA DE MENINA, que, guiado pela personagem da excelente Ludmila Dayer, pinta um singelo e rico retrato de um tempo e de um lugar, numa espécie de filme que, olhando para o passado histórico a partir do particular, faz-se fundamental para uma cinematografia.
E ESTES AINDA TIVERAM MUITO A OFERECER...
AMOR PARA SEMPRE, que atiça o raciocínio emocional;
O AVIADOR, que é um grande espetáculo e tem Cate Blanchett;
FILHAS DO VENTO, que possui beleza nos apesares de seus defeitos;
REENCARNAÇÃO, que apresenta uma personagem fascinante, num conflito ainda mais fascinante;
SIDEWAYS, que tem grandes atuações e um bom roteiro;
SOBRE CAFÉS E CIGARROS, que é, no mínimo, interessante, e possui dois episódios realmente excelentes;
A VIDA MARINHA COM STEVE ZISSOU, que tem personagens fantásticos – maiores do que a fraca trama –, desde a concepção em roteiro até às interpretações, a cargo de um timaço.
FIM
PS: E por falar em listas, a revista Bravo!, que publicou um texto fraquinho, fraquinho sobre o cinema oriental, em sua edição de novembro, resolveu, para comemorar seu 100º exemplar, fazer listas de "100 melhores", dos últimos 8 anos. Mas é cada absurdo, que o assunto voltará pra cá, logo, logo.
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