12.1.06

1, 2 e 3

Ainda certo de que o que passou não passou (ou seja, o post abaixo ainda merece uma visita), o ano começa com uma surpresa e dois filmes revistos.

1.

Nunca pensei que fosse dizer isso, mas “Se Eu Fosse Você”, filme dirigido por Daniel Filho, me fez gargalhar do começo ao fim.

É evidente que se trata de uma obra sem qualquer valor real – trabalha no mais leve dos leves dos entretenimentos, cheio de lugares-comuns.

Mas Glória Pires e Tony Ramos conferem a seus personagens toda a verdade burlesca que o entorno não consegue ter.

Pela publicidade e pelos pré-conceitos, tão normais nesse caso, o que esperar de um filme desse? Uma bomba?

Pode até ser. Mas certamente das mais divertidas.

Tampouco pensei que fosse algum dia dizer isso, mas passei as horas e dias seguintes à projeção lembrando de Tony Ramos e rindo sozinho.

E amigos têm feito o mesmo. O que só pode levar à verdade de que “Se Eu Fosse Você” cumpre o que promete. Ou melhor, entrega aquilo que nunca nem sequer chegou a prometer.

Uma dica? Deixe o cérebro e o senso critico em casa e divirta-se.



2 e 3.

2046” e “Família Rodante” são tipos de cinema em tudo opostos, mas iguais em excelência.

Retome o cérebro e o senso crítico, traga a sensibilidade e os sentidos. E indague-se como coisas tão diferente podem surgir dos mesmos meios, na mesma arte. E serem experiências tão recompensadoras.

“2046”, do mago Wong Kar-wai, é cinema como explosão sensitiva. Cores, formas, climas, corpos, roupas, lugares, traços, ângulos, câmeras-lentas, vozes, música, vazios e labirintos. Um filme sobre um homem e seus amores, sobre o tempo, sobre vida transformada em ficção, sobre as dores que sentimos e as que gostamos de sentir.

Amor sublimado, adiado, antecipado, perdido no tempo. Sentimentos atrasados e lembranças. Passados irrecuperáveis. Cicatrizes da alma.

Tudo isso na mais espetacular das fotografias, em enquadramentos de equilíbrio cromático e espacial estarrecedores. E com a mais bela e pontual das trilhas sonoras. E com os atores mais enigmáticos e magnetizantes que há – a câmera simplesmente não consegue parar de olhar para a verdade serena de Tony Leung, a insolência apaixonante de Zhang Ziyi e a candura comovente de Faye Wong.

Isso sem falar da sensualidade da mise-en-scéne, já que Kar-wai é capaz de provocar nos olhos uma excitação quase sexual.

É experiência de beleza estética sem par – do tipo que faz o espectador derreter na cadeira de tanto deleite. E é uma jornada emotiva capaz de leveza inebriante, flutuando por cada fotograma e conduzindo-nos por vôos sentimentais, e capaz de dolorida agudeza.

É, enfim, o mundo transformado em cinema, em um espetáculo construído de forma meticulosa para ser como é. E, portanto, delirantemente agradável.


Quem transforma o cinema em mundo, por sua vez, é Pablo Trapero, no seu “Família Rodante”. Aqui, a integridade humana dos personagens é sem fim.

Em estilo cru e documental, sem firulas, Trapero coloca toda uma família dentro de um trailer, numa viagem de 1200 km pelo interior da Argentina. E ali, naquele confinamento, explodem o humor e o drama, entre contratempos comezinhos e grandes crises pessoais.

Um elenco extraordinário cerca a matriarca – que é interpretada pela própria avó do diretor – para traçar um dos mais francos retratos da família que o cinema já viu. Quem são, afinal, essas pessoas às quais estamos ligado por laços tão indissociáveis? Quão amplo pode ser o espectro de amor e ódio, compreensão e intolerância entre mim e um próximo tão próximo?

Em direção a uma cerimônia de casamento, ou seja, de nascimento de uma nova família, esse grupo de pessoas transborda a ternura e as contradições que há em qualquer coletividade, seja ela um núcleo familiar, seja uma cidade ou nação.

Nossa família é o primeiro e mais forte conjunto a que pertencemos. É o nosso inescapável – o que nos gerou e nossa perpetuação, transmissão a outros do legado de nossas misérias. Misérias, vale dizer, que carregam risos, sangue e lágrimas em igual medida.

E é a noção dessa sucessão de corpos e almas sobre a terra, ligados por laços de sangue, e a maneira (cinematográfica) extremamente singela e afetiva através da qual se chega em tão amplo sentimento ético e estético que fazem de “Família Rodante” um filme enorme.


PS: "Há uma necessidade em todos nós em ter um lugar para esconder ou armazenar certas memórias, pensamentos, impulsos, esperanças e sonhos. Essa é uma parte de nossas vidas que não conseguimos resolver, ou achamos melhor não tentar, mas ao mesmo tempo temos medo de alijá-la. Para alguns, este é um lugar físico; para outros, é um espaço mental, e para alguns poucos não é nenhum dos dois."
Wong Kar Wai

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