22.2.06

carta apaixonada

Caro Woody Allen,


Obrigado por existir.

E desculpe pela cobrança. É apenas amor.



Sinceramente seu,

Rafael



PS: Por favor, jamais morra.

20.2.06

boa noite, boa sorte

George Clooney estreou na direção de filmes com um filme bastante, bastante interessante, "Confissões de uma Mente Perigosa".

Visualmente elaborado, multi-referencial, espalhafatoso sem ser vazio, pop, "Confissões" era um filme capaz de proporcionar estímulo intelectual e pura diversão.

"Boa noite e Boa Sorte", segunda empreitada de George Clooney do lado de cá da câmera, é uma guinada ao rigor. Visualmente sofisticado e sóbrio, afiadamente contundente em sua ética e brilhantemente atuado pelo protagonista David Strathairn, é um filme muito, muito bom.

Visto numa movimentada e incomodamente gelada sessão na abertura da 29ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro último, por certo merece uma re-olhada. Mas, por enquanto, é necessário dizer que DEVE ser assistido.

12.2.06

mais montanha

Aqui existiu, de 12 a 22 de janeiro, o post abaixo, agora entre parênteses. Mas já que o texto em questão ("névoa") não está mais na capa do blog em questão, ele aparece copiado alí embaixo, já que, simpatizante dos princípios do Creative Commons, o autor permite.


(Não é a primeira vez nem provavelmente será a derradeira que esse blog faz QUESTÃO de empurrar seus dois ou três leitores a páginas amigas.

Pedro Alexandre Sanches aglomera sua voz ao coro dos contentes e lança suas impressões sobre Brokeback Mountain em A MONTANHA DO DAR-DE-OMBROS.

Vá ler AGORA. Sim, o texto é grande e se você for daqueles que se deixa vencer fácil pela preguiça, esforce-se ao menos para ler a primeira parte, "névoa".

Mas não deixe de visitá-lo. E corra, porque já, já, A MONTANHA DO DAR-DE-OMBROS, postado em 10 de fevereiro, já não será o texto-capa do blog.

Foi?



PS: O belíssimo texto de PAS vêm conversar DIRETAMENTE com o PRIMEIRO e com o SEGUNDO textos sobre "O Segredo de Brokeback Mountain" postados nesse blog. E, veja você, bate-papo até mesmo com Simone, o assunto imediatamente anterior.)


A MONTANHA DO DAR DE OMBROS
névoa

ei, tu, cara-de-tatu. pega teu preconceito mais recôndito, aquele que mais te incomoda porque, quanto mais tu tentas expeli-lo pelo cuspe, mais ele te corrói por dentro.

ei, você aí. que tal levar seu preconceito para passear um pouquinho?

dê uma volta com ele. passeie pelas calçadas, vá pela sombra. mostre ao seu preconceito os cachorrinhos no pet shop. juntos, façam muxoxos às crianças de 12 anos entupidas de consumismo mórbido de shopping center.

ainda que seja difícil, respeite seu preconceito. pague-lhe um sorvete. evite o marketing nas vitrines, sucumba ao marketing onipresente: carregue o seu preconceito para dentro do cinema, conduza-o a assistir um filmão hollywoodiano cotado para ganhar o oscar. compre um saco grande de pipocas.

pague duas entradas, uma meia para você, uma inteira para o seu preconceito. colabore na campanha benemerente que levará o dramalhão da hollywood mountain a faturar bilhões de dólares mundão pobre a fora e umas estatuetas de marketoscar no ex-epicentro do planeta.

e, bingo!, pegue-se de repente de mãos dadas com seu preconceito, no escurinho do cinema, entre beijos lânguidos (de língua) e fogosos, enquanto "brokeback mountain", de ang lee, se avoluma diante de seus (quatro) olhos.

goste. emocione-se um pouquinho assim, ó. derrube uma lágrima furtiva, mas saia do cinema dando de ombros para o "western gay", por não ter se identificado tanto assim.

então olhe de novo para seu preconceito, veja como ele está mudado. pergunte-lhe se gostou do filme (com jeitinho, para não magoá-lo).

molhe seu preconceito com um copinho d'água gelada (antes, faça um bochecho, tire o sal e os piruás do dente, cuspa). teste seu companheirinho eriçado, umedecendo-o, para descobrir se, depois do filme com que você não se identificou tanto assim, seu preconceito irá proliferar feito gremlins n'água, ou se, pluft!, vai se extinguir feito sal diluído em água doce.

dê soro ao seu preconceito. ele merece.

chuvisque-o de lágrimas, suor, urina, sangue, esperma, sucos vaginais, saliva, catarro. cuspa. engula. aplique um chego, uma chegadinha, um xamego, um bole-bole no seu preconceito.

cuide-se bem, perigos há por toda à parte, e é tão necessário viver. mas cuide do seu preconceito no escuro do seu quarto, à meia-noite, à meia-luz. dispa-o de seu capote "pré", desnude-o, acaricie-o e faça-o gozar feito conceito nu (goze com ele), materializado em pré-pós-conceito, em tudo ao mesmo tempo agora onde tudo se mistura.

mate seu preconceito. deixe-o à míngua de inanição. só então olhe-se despido(a) no espelho e veja-o ali de volta, transmutado feito zelig em sua própria face. repita todo o ritual, moldando-se à sua própria imagem e semelhança como fizera até então com seu preconceito (peça o dinheiro de um dos ingressos de volta na bilheteria).

entenda, com carinhos à farta, que o seu preconceito É você, e que você É o seu preconceito.

11.2.06

as idéias muito simples...

E eu fui a um show da Simone - coisa que, confesso, até terça-feira passada nunca tinha pensado em fazer. O autor da proeza foi Marcus Preto, que lançou essa isca que eu não resisti em fisgar.

Simone é nome único e definidor. Todos a conhecem, todos já tiveram contato, (quase) todos têm uma idéia formada do que seja a artista. Ela habita a vida musical brasileira há anos, seja em plenos holofotes, seja pelas bordas. Para cada cabeça que ouve o nome, portanto, há uma imagem clara associada.

Simone, não sei precisar exatamente como, faz parte de meu imaginário afetivo infanto-juvenil. Minha avó e seu indefectível aparelho de som, que jamais ficou desligado nas reuniões familiares, certamente leva grande parte dessa culpa. Mas fato é que a voz, o repertório e até mesmo o sotaque dessa cantora arretada está lá, fixado firme num cantinho do cérebro.

Mesmo cantinho que, com o passar dos anos, apregoou ao nome de Simone o rótulo de cafona. E isso, sem nunca sofrer uma análise racional ou mesmo emocionalmente cuidadosa, virou um conceito. Apressado e derivado do senso comum. Logo, o que se chama, grosso modo, de pré-conceito.

É fato que Simone congelou uma persona artística e uma musicalidade - que inclui sua dinâmica de apresentação ao vivo - advinda do estrondoso sucesso que ela fez nos anos 80. Mas é fato também que essa Simone é uma figura das mais legítimas, incrivelmente carismática e dona de bela voz e de talento interpretativo bastante vivo atrás da cafonice.

Zelia Duncan, fazendo participação especial no show de agora há pouco, disse que cantar no palco de Simone é uma daquelas coisas "que não tem preço nem nunca terá". E ir ao show de Simone e deixar-se contagiar por sua popularidade - no sentido de vocação ao popular, esse conceito tão amplo - é sem dúvida delicioso. Porque derrubar pré-conceitos é isso aí.

Minha avó, sem dúvida, ficará orgulhosa.


PS: Durante a apresentação da versão que Zelia Duncan fez para Simone cantar da canção "The Blower´s Daughter", a elegante e circunspecta senhora que comigo dividia a mesa imediatamente agarrou a mão de seu marido, a qual ela permaneceu acariciando durante toda a música. É o que não tem preço nem nunca terá.

7.2.06

cowboys gays

Em coisa de 15 minutos, minha irmã, minha mãe e minha avó, nessa ordem, me deram suas impressões sobre “O Segredo de Brokeback Mountain”.

Minha irmã não gostou de ver cenas de amor homossexual. Achava que “não precisava”, preferia não ter testemunhado. A situação foi piorada, ao que tudo indica, pelo fato de ela estar acompanhada de colegas irracionalmente homofóbicos.

Minha mãe se disse “aflita” pelas mesmas cenas. Pelo que parece, não foi das melhores experiências.

Minha avó, atenção, minha AVÓ, de 72 anos, achou tudo "muito bonito", muito sutil. Chamou de “muito delicada” a “paixão dos dois”. Não pôde deixar de notar que se tratava de um filme “diferente”. Mas incômodo? Nenhum.

Faz sentido, no Brasil de 2006, reacionarismos e bloqueios mentais fabricados, fracos e injustificáveis serem inversamente proporcionais aos anos vividos? Faz sentido que a presença de valores e costumes arcaicos, bem como a fraqueza de caráter perante imposições sociais vergonhosas, seja mais presente na “juventude da internet” do que nas pessoas nascidas em décadas anteriores?

Três gerações de mulheres da família em uma noite de verão rigoroso fazem a cabeça da gente dar algumas voltas...



(texto sobre o filme, em si, já foi publicado, e está em link na coluninha ali da direita ou aqui)

mrs. robinson

Nas artes dramáticas, bons personagens são a alma do negócio. Alguns deles saem tão bons que, eventualmente, ganham vida própria, extravasando a peça, filme ou livro que os gerou e materializando-se de forma definitiva no imaginário coletivo do público.

Mrs. Robinson, a mulher que seduz o namorado da filha em "A Primeira Noite de Um Homem", certamente é um deles. E se ela virou uma figura sedutora por excelência, sensual em sua objetividade algo fria, daquelas que não somos capazes de desgrudar os olhos, isso se deve em grande parte à inteligência cênica de Anne Brancroft, sua intérprete no filme de 1967.

Como então, retomar Mrs. Robinson?

Com Shirley MacLaine, ao que tudo indica.

Depois de ter mostrado-se em ótima forma cômica em "Em Seu Lugar", Madame MacLaine, do alto de seus 72 anos, re-encarna Mrs. Robinson cheia de traquejo, com um humor afiadamente corrosivo e, acredite, com muita sensualidade. O filme é "Dizem Por Aí", mas poderia ser "Mrs Robinson Redux".

É ela quem brilha, é ela quem manda - o filme é dela. Que Shirley MacLaine redesenhe, ainda que pos caminhos enviesados, um personagem tão mítico e tão conhecido do público e ainda extraia dele muita graça e vigor é prova incontestável de compreensão do poder sugestivo e afetivo do cinema.

Porque há de se perceber e entender o que está acontecendo para levar a situação adiante. E a noção da vida diegética de um personagem e do quanto ela pode extravasar os limites do drama é algo delicado. MacLaine, com uma composição viva e delirantemente divertida, vem demonstrar que a idade não chega impunemente. Nem a experiência acumula-se à toa.

3.2.06

um trio

Em mais um notável caso associativo, “Free Zone”, “Paradise Now” e “Munique” chegam juntos aos cinemas paulistanos, todos abordando o interminável conflito entre judeus e palestinos.

Se em “Free Zone” Amos Gitai não é sublime como em “Dia do Perdão”, a responsabilidade é certamente deste segundo, por ser tão bom. O filme mais recente do diretor, que é judeu, concentra numa jornada automobilística as tensões políticas e religiosas e as trajetórias pessoais de 3 mulheres.

Há muita humanidade, inclusive com flashbacks construídos em sobreposição imagética que adensam o personagem de Natalie Portman, há humor e há inevitáveis desentendimentos e quase-tragédias.

Parte-se, aqui, do ponto de vista dos indivíduos, que vivem suas vidas e seus problemas de diferente naturezas apesar do macro-conflito que envolve seu povo. E chega-se ao ponto em que esse conflito interfere diretamente, transformando em seculares questões politicas e étnicas o que, em outro lugar do mundo, poderia ser somente mais uma dívida financeira ou um rompimento amoroso.

Do pequeno, portanto, vai-se ao grande, com planos-sequência de certeiro poder dramático e atrizes capazes de transmitir dores que, quase sem querer, possuem dimensões enormes.

Que é o exato oposto do que vemos em “Munique”, de Steven Spielberg, e seus muito milhões de dólares gastos em reconstituições e magnânimas sequências de ação. Aqui, o campo de batalha determina o soldado e é partindo de marcantes acontecimentos históricos que chegamos à moral do herói.

Spielberg, que é judeu, é diretor de imagens habilíssimo, capaz de construções visuais impressionantes, seja por suntuosidade, seja por pura capacidade de discurso. E não deixa por menos: faz um filme poderoso e ambíguo em sua ética interna e hipnotizante em seus planos mirabolantes e alternância eletrizantes de sequências.

Trata-se de um filme bom. Sim, evidentemente há um esquema narrativo consagrado, e por isso mesmo, às vezes, irritante, e permanece uma sensação, durante a projeção, de que algumas coisas mereciam ser mais sucintas. Além disso, em nome da crueza e da exposição verdadeira da dor e do sangue, ultrapassa-se, em dados momentos, os limites do que seria tolerante na espetacularização da morte e da violência. E pode-se ressaltar, igualmente, que o caráter épico da narrativa, apesar de majestoso, não deixa muito espaço para que a organização dramática da subjetividade do herói ultrapasse uma certa superficialidade.

Mas, não obstante, o sentimento mais amplo – de dor, de completa ambiguidade ética – que se extrai e que ecoa desse contundente jogo de imagens faz as falhas perdoáveis. Chamados a compartilhar o estilhaçamento da moral, das crenças e dos princípios éticos do protagonista, somos confrontados com nossa própria certeza do que sejam os limites e o quanto eles podem ser alargados em determinadas circunstâncias.

E a imagem final, que coloca o World Trade Center - com a discrição que Martin Scorcese em “Gangues de Nova Yorque” não teve -, ao fundo, faz arder em qualquer espectador, independente de suas crenças religiosas ou da história antepassada de sua gente, as chagas de uma ferida tão dolorosa quanto insolucionável.

Por fim, “Paradise Now”, dirigido pelo palestino Hany Abu-Assad, é, da trinca, o filme que melhor articula interior e exterior, (micro) conflitos pessoais com (macro) conflitos repartidos. Na improvável situação de se acompanhar as horas finais de dois palestinos convocados a morrem como homens-bomba, o espectador se descobre estupefacto em perceber a real dimensão e a dura realidade desse chamado.

E isso acontece de forma ainda mais impressionante porque Abu-Assad jamais espetaculariza sua história. Trata-se, portanto, de questões literalmente definitivas, entre vida e morte e das forças e caminhos que regem uma e outra, por escolha ou imposição, tratadas de forma próxima e direta, sem arroubos mas com o suficiente e bem medido estofo dramático.

“Paradise Now” é um grande filme, que traz a História e o Humano para uma situação-limite e a retrata de forma desconcertantemente sincera. Desse trio, é o que joga luz e alça ao protagonismo a questão palestina, mas também o que melhor compreende a inexorabilidade dessa permanente luta. E isso, curiosamente, por não tentar articular discursos, preferindo expor dramas com a devida dignidade narrativa.

É provável que o tempo transforme a visão que se tem desses três filmes. Hoje, no entanto, é importante e recompensador vê-los, para concordar, discordar, tomar ou não partido. Mas também para participar de 3 diferentes e instigantes experiências cinematográficas, que dão ao intelecto e à emoção muito com o que se ocupar.


PS: Não é só em temática que esses filmes são irmãos legítimos. A atriz Hiam Abbass, em participações que diferem em tamanho e importância, está curiosamente presente em todos eles, solidificando ainda mais o elo.

uma dupla

Nesses últimos meses, filmes têm chegado a nós em associações. “Marcas da Violência”, estreado em novembro, e “Caché”, exibido na 29ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, por exemplo, rondam o mesmo assunto e abordam questões semelhantes em histórias e formatos desafiadoramente distintos.

Nesse melhor estilo pares, “Impulsividade”, de Mike Mills, e “O Sol de Cada Manhã”, de Gore Verbinski, versam, como tantos antes deles, sobre o indivíduo (norte-americano) esmagado pela feroz filosofia (primordialmente norte-americana) do sucesso a qualquer preço.

Essa moral formadora do american way of life é matéria antiga na produção dramatúrgica do país, tendo atingido um de seus ápices, em reconhecimento e prestígio, com a peça “A Morte do Caixeiro Viajante”, de Arthur Miller – escrita lá se vai mais de meio século.

Para causar impacto nessa seara, portanto, acaba-se tendo que reciclar muito bem velhos temas, arejando-os, ou usar de forma excepcionalmente competente as fórmulas consagradas.

Nenhum desses dois filmes recentes logra nenhuma das alternativas. “Impulsividade” , acumulando caminhos perigosamente gastos, caminha sobre o terreno pedregoso do filme independente americano, confirmando o que já se espera dele em estética e linguagem – é por demais curioso como a maioria dos filmes aptos a levarem esse rótulo são, quase sempre, admiravelmente parecidos, como se a tentativa de ser novo ou moderno houvesse envelhecido rápido demais e criado um novo clichê.

É palatável, sem dúvida, mas também volátil e esquecível de imediato.

“O Sol de Cada Manhã”, por sua vez, traz Gore Verbinski, que mostrara-se bastante competente no gênero filme de aventura, com “Piratas do Caribe”, para o registro do drama mais intimista. Há um bom elenco, onde até mesmo Nicolas Cage não faz tanta força para ser bom e, por isso, fica melhor. E há uma história bem contada, que possui o grande mérito dramático de abordar o fracasso subjetivo de seu protagonista.

Em lugar de subúrbios de grandes cidades e vidas financeiramente periclitantes, estamos, aqui, numa agitada Chicago, com um personagem dono de um emprego para muitos invejável. O fracasso, desse modo, por não estar no terreno material, deixa de ser objetivo e passa a ser relativizável. Baseia-se na incapacidade de realização individual, do malogro em alcançar e manter posições internamente significativas, em todos os âmbitos. Assistimos, portanto, ao momento de efetiva nudez do rei, embora os olhares que o cercam tenham motivos de sobra para enxergar nele roupas suntuosas. Os conceitos de felicidade e sucesso, aqui, são descascados.

É pena que o filme não aposte por completo nas boas idéias que tem. O que poderia ser uma obra afiada e contundente esvai-se em redenção agridoce. Para quem promete muito, fica a falta.