23.10.07

diário da Mostra - dia 3

21/10 – domingo
(cotações de * a *****)



Sonhando Acordado (La Science dês Rêves), de Michel Gondry
FRANÇA/ ITÁLIA
* * * *
Com um atraso inexplicável, finalmente pôde ser visto em nossas telas o filme que Michel Gondry realizou depois de sua obra-prima pop, Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças. Aqui, como lá, há muita fantasia interferindo na realidade e moldando-a, numa via de mão-dupla. O que varia é a forma e o grau de organização e progressão narrativas. Em Brilho Eterno, a história, ainda que de forma não cronológica, era preocupada em contar-se, majoritariamente. Nesse Sonhando Acordado, em acordo com a matéria dramática do filme (centrada em um rapaz que mistura sonho e realidade), há uma maior liberdade associativa conduzindo a trama. Trama essa que vem repleta da inventividade que é marca de seu diretor e também de um carinho enorme que ele parece nutrir por seus personagens. O casal central parece tão livre em cena quanto o filme em si, e tão adorável também. Gondry faz mais um filme em que o amor é a palavra de ordem (e toda a loucura e a fantasia e o onírico associado a ele), e no qual o sentimento é tão claramente vívido porque o cineasta (também roteirista), não cria personagens para levantar teses ou cumprir objetivos, mas sim para que eles existam. E, como demiúrgo, gosta de sua criação e trata-a com todo carinho e desvelo.

De Volta À Normandia (Retour En Normandie), de Nicolas Philibert
FRANÇA
* * *
Na linha de duas obras-primas documentais de nossa cinematografia, Cabra Marcado Para Morrer e Santiago, em que os autores não só colocam-se integralmente em suas obras, mas, antes, utilizam-nas para revisitar seus passados, Philibert, do aclamado Ser e Ter, retorna ao primeiro longa de ficção em que trabalhou, retomando a história passada por trás da realização do filme e a vida presente dos atores não-profissionais que trabalharam nele, então. Acompanha-se tudo com certo interesse, mas tudo quase resvala no desinteressante. Eu disse quase. Porque Philibert sabe conduzir sua jornada e torná-la digna de acompanhamento, mas deixa na tela uma sensação de promessa não cumprida de epifanias (de qualquer tipo, principalmente as mais simples e cotidianas, sempre as melhores). E isso pode ser um problema do filme tanto quanto do espectador.


SOS Saúde (Sicko), de Michael Moore
EUA
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A essas alturas, depois do constrangedor Farenheit 11/09, todos sabemos os problemas do cinema de Michael Moore, sendo que o maior deles é o de utilizar-se de recursos éticos e estéticos que não o tornam aceitável, pelo dito “cânone”, como descendente da tradição do documentário cinematográfico. Seja ou não moralmente digno, seja ou não “verdadeiro”, seja um programa de televisão feito para passar no cinema (e aqui já entramos numa briga que não há tempo nem espaço de levar adiante), a verdade é que ninguém pode negar a inteligência de Moore. E seu talento para a narrativa (ainda que manipuladora) e, principalmente, para a comédia. Radiografando as agruras do sistema de saúde norte-americano, Michael Moore torna-se piegas, sim, manipulador, sim, panfletário, sempre. Mas é também a pessoa que cutuca a ferida (para o bem ou para o mal), que escancara o humor que existe no(s) absurdo(s) cotidiano e que, quando não escorrega em demasia, nos entretém como ninguém (ou justamente como o grande showman que é), ainda que com assuntos trágicos. É refletir rindo, ou rir sem refletir, ou rir para aceitar o inaceitável. É para ser ambíguo como só ele sabe. É o homem que amamos odiar – ou que adoramos amar e ponto.



À Prova de Morte (Death Proof), de Quentin Tarantino
EUA
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Todo mundo sabe que ele domina a câmera e a linguagem como poucos. A serviço de quê Tarantino coloca sua maestria é que se torna a questão, filme após filme. Em Kill Bill ele engendrava uma verdadeira ópera pop, repleto de referências e, principalmente, com personagens e uma trama capazes de tornar irresistíveis as maiores banalidades e as mais temerosas mortes. Agora, o “cinema de gênero”, que sempre foi a menina de seus olhos e que sempre se fez presente tangenciando as bordas e os centros de seus filmes, assume o centro da cena. Tarantino trabalha com a recriação mais detalhista, enxuga história. Tudo se passa em pouquíssimas seqüências, com tempo interno bem próximo ao real. Personagens, apesar de manter aquela assombrosa chama vital que parece tão própria de seu cinema, agora são mais “funcionais”. Estamos a serviço dos carros – e do mistério e da tensão e da faiscante adrenalina que eles imprimem a espetaculares cenas de ação (será que é assim mesmo que devemos chamar?) e ao filme como um todo. Pessoalmente, Tarantino me atinge com mais exatidão quando, em seu cinema-sobre-o-cinema deixa existir mais vida (ainda que ela venha sempre inevitavelmente manchada de sangue) e menos cinema (pelo simples cinema). Aqui é cinema pelo cinema. (“Eu sou um homem de armas, e um humanista. E essa combinação é difícil em qualquer século.”, diria Mauricio de Nassau em Calabar, de Ruy Guerra e Chico Buarque.) Fãs de cinema (e fãs do Tarantino esteta e referencial, “homem de armas”) podem delirar. Mas fãs de cinema (e fãs do Tarantino que inventa personagens e tramas como ninguém, “humanista”) podem torcer o nariz. É possível, também, como eu, talvez, ficar no meio do caminho.


PS:
Passados 4 dias, amo o filme e acho que Eduardo Valente disse aquilo que eu não soube, AQUI.

Um comentário:

pm disse...

queria tanto ter visto o gondry...