28.2.05

Beleza Americana

O Oscar, ah, o Oscar...

Quando a gente baixa a guarda, não é que ele contra-ataca (hem, Clint Eastwood?!) Quando havia muito já se cessara crer nessa premiação assim tão longa e assim tão cafona e assim tão mercadológica e assim tão injusta que todos simplesmente amam odiar, eis que ela surpreende.

Ao que interessa, então:

"Menina de Ouro" consagradíssimo, premiadíssimo. E isso é, vejam só, justíssimo. Ou, para não dizer que não se respeita opiniões, ao menos mais do que justificável. Porque "Menina de Ouro" é bom pra caramba; é um filme de apogeu de Clint Eastwood - como ator, como narrador, como ser humano. Sim, como ser humano porque este filme é uma angustiante e belíssima sonata sombria, um retrato do mundo sem maquiagem e sem subterfúgios, que vai às últimas consequências porque, acreditem os incrédulos, a vida muitas vezes vai até as últimas consequências. E arde de tanto doer e é injusta (e onde está o que se poderia chamar de verdadeira justiça?) e cria corações mortos de tanto sangrar como os do personagem central. Ou que sangram até a morte, como o da personagem central. E só mesmo um homem com determinada visão de mundo ou com determinada vivência é capaz de um filme dessa brutalidade com essa sutileza. E Clint Eastwood foi, é, aqui, esse homem - e não há piscadinha da adversária que estrague o que ele alcançou (hem, Isabel?!).

Logo, que Hollywood conceda sua honra anual máxima a um filme dessa natureza não deixa de ser espantoso. Será um reconhecimento de uma indústria que produz entretenimento, ou seja, que supostamente produz momentos felizes, de que o mundo não anda (porque não é) assim tão feliz? Terá isso alguma coisa a ver com George Bush?? Blargh... não vamos ser políticos! Porque "Menina de Ouro" é humano demais para misturarmos com determinadas circunstâncias.

Pois bem, há mais "justiça" nessa fornada. Porque Hillary Swank ganhou mais um Oscar, assim, em seguidinha do primeiro (alguém sabe mencionar algum filme que ela tenha feito entre "Meninos Não Choram" e esse?). E Morgan Freeman, aquele poço de verdade, foi reconhecido também.

E Cate Blanchett, ah, Cate Blanchett... (Não é preciso dizer mais nada. Até porque já disse em "Sobre o assombro de ser Cate Blanchett" e em "Sobre o assombro de Cate ser Kate").

E Clint Eastwood, uma vez mais, foi reconhecido o melhor diretor. E Martin Scorcese que desculpe, mas era ele, não tinha como não ser. Desde "Os Imperdoáveis", seu Oscar anterior, Clint adquiriu um complexo hábito de só fazer filmes bons - e alguns esplêndidos, como "Sobre Meninos e Lobos" e esse aqui.

Também é bom dizer que "Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças", filme acachapante, e "Sideways", filme belo, tiveram seus roteiros reconhecidos. E muito "justamente".

No mais, o mais. A canção de "Diários de Motocicleta", primeira em espanhol a ser indicada ao Oscar, venceu. E seu autor, não convidado a cantá-la na cerimônia de premiação, agradeceu cantando-a. Justo, belo, comovente.

Por fim, descobri, depois de pelo menos 11 anos de acompanhamento fiel do Oscar, que assisti-lo fazendo apostas é muito mais divertido. Muito mais.


PS: Para não dizer que tudo aqui é muito sério, um pouco de futilidades. Na categoria "mulher mais bonita da noite", Kate Winslet era candidata fortíssima, estava quase ganhando. Até aparecer Giselle. Ah, Giselle... Será que essa mulher existe de verdade?

22.2.05

A ILHA DESCONHECIDA

(para dar um tempo no papo-sério-sobre-cinema... do fundo do bau:)

Quem sabe um dia
Eu vou te buscar nessa ilha.
Tentar encontrar o lugar
Onde você, qual tesouro,
Enterrou meu coração.
E marcou com um “x”,
No mapa que eu mesmo fiz,
A indicação desse rico ouro
Que valioso não é senão pra mim,
Por se tratar do fim
Que deu início a tudo isso.

Quem sabe quando eu desembarcar,
Depois de enfrentar ruidosos mares,
De quase naufragar nessa imensa tempestade,
De vencer todos os lugares
Reais ou imaginários
Que há depois dessa cidade,
Depois de derrotar o calendário
E aí chegar no tempo preciso,
Quando tempo nem houver mais,
Quando todo o desconhecido dessa ilha que ainda jaz
Intocada no oceano for revelado,
Quem sabe então ao meu lado
Estarão os duendes e as fadas,
Todas as criaturas encantadas,
Ou sem encanto,
Todos os sorrisos e os prantos
Dos mestres, deuses, vilões e heróis,
Todos me ajudando a desatar os nós
Que amarram essa história complicada
E que bloqueiam as estradas
E os caminhos...

Quem sabe eu não deva ir sozinho
Bater à porta do seu castelo,
Quebrar feitiços e mistérios,
Tomar essa ilha de assalto,
Subir ao alto da torre
Onde você é prisioneira,
Acordar-te do sono de uma vida inteira,
Virar o príncipe modesto, mortal e imperfeito
Que eu sei ser,
Capaz de um resto de magia
Nas agonias do seu peito.

Quem sabe não é assim
Que a história chega ao fim.
Nós dois em uma ilha desconhecida,
Esquecida e renegada por toda a humanidade,
Flutuando à deriva pelo mar da minha saudade.
Uma ilhinha alegre, brilhante, cheia de cor.
A ilha completamente desconhecida
Do nosso amor

18.2.05

Sobre o assombro de Cate ser Kate (Cate Blanchett, mais uma vez ela.)

Cate Blanchett assombra quando é boa, mortifica quando é ótima e embaralha quando não se sabe bem ao certo o que ela está fazendo. Lê-se, atualmente, na imprensa brasileira, comentários que chamam sua atuação em “O Aviador”, de Martin Scorcese, de “exagerada”, assim como de “inebriante”. O que será? Já que a bola está no ar, mais uma vez instigado pela amiga Mariana resolvi entrar no jogo.

Cate Blanchett interpreta Katherine Hepburn. E então, o que fazer? Atores têm capacidade admirável de personificar outras figuras notórias. Angela Basset já fez Tina Turner, Jamie Fozz atualmente faz Ray Charles – a lista é longa. Mas como um ator interpreta um ator? E quando esse outro ator é Katherine Hepburn, das mais lendárias figuras de Hollywood, poço de prêmios e consagrações?

Difícil, de fato. Cate Blanchett opta pelo evidente. Ela “atua”, no sentido mais óbvio da palavra. É exagerada sim, maneirista sim. Sua primeira cena, quando conhece Howard Hughes (personagem que Leonardo DiCaprio defende com dignidade) em um campo de golfe, é um nocaute. Ela entra feito um furacão e desnorteia. Mas seu modo afetado e pomposo de falar e suas expressões engrandecidas vão crescentemente incomodando aqueles tão acostumados à agigantada verdade que Cate sempre demonstrou.

Por que, enfim, fazer Katherine Hepburn, como se ela, a personagem, estivesse constantemente atuando (mal)?

Mas eis que em sua última cena surge a dica de esclarecimento, justamente calcada na questão acima. Passamos a entender, então, que Cate fizera Kate, até aquele momento, como uma “atriz”. Ou seja, Cate, atriz, interpretava, Kate, atriz, como se a personagem, em sua vida real, fora dos personagens que a consagraram, fosse constantemente uma atriz, ou seja, uma pessoa enfraquecida demais no campo pessoal para desfazer-se do manto de estrela, “interpretando” sua vida cotidiana como quem romantiza o ato da existência, como quem veste um véu de personagem perante o mundo, sempre.

Quantas camadas há aí?

Será que Blanchett e Scorcese optaram conscientemente por esta leitura ou a atriz caricaturou mesmo e eis nós aqui, fãs, inventado subterfúgios?

A considerar que “O Aviador” é um filme sobre o cinema, constantemente inebriado pelo fazer cinematográfico e suas possibilidades, dentro e fora da história, e que Scorcese é um cinéfilo apaixonado que faz cinema, aqui, como uma forma contínua de homenagem ao cinema (como se dissesse, em cada fotograma, “ah, que maravilha fazer cinema, que sensacional as possibilidades dessa arte”), a primeira opção parece mais cabível.

Mas é lícito, ainda assim, incomodar-se com Cate Blanchett, nesse filme. Só não desvalorizá-la. A mulher é endiabrada: quando você pensa que ela errou, ela pode na verdade estar fazendo algo que o intelecto não capta de primeira, dando um golpe de mestre que pega suas expectativas, as achata e reconstrói, devolvendo-as a você chacoalhadas. Atenção aí.

Ah, e sobre “O Aviador”?

Sim, é extremamente bem feito, de competência ímpar. Mas não tem como negar que chateia a dada altura. E se é filme cambaio em narrativa, também não arremata potentes idéias uma vez baixada a poeira, como “Gangues de Nova York”, por exemplo, fazia. “O Aviador” é um grande filme, mas não necessariamente é um filme muito bom.

13.2.05

OURO DE TOLO ou O ESPLENDOR DE CLINT EASTWOOD

Se você ainda não viu “Menina de Ouro”, PARE AGORA DE LER ESSE TEXTO. É sério, é verdade, é para o seu próprio bem: se você ainda não viu “Menina de Ouro”, NÃO PERCORRA MAIS AS LINHAS ABAIXO. Se você ainda não viu “Menina de Ouro”, NÃO LEIA MAIS UMA PALAVRA SEQUER, volte depois. E se você ainda não viu “Menina de Ouro”, por favor, vá logo ver.


Faço cinema porque sou cinéfilo. E vou ao teatro e leio livros e ouço música e assisto à óperas e balés e freqüento (menos do que gostaria) exposições de artes. Porque um filme pode ser uma ópera e um livro pode ser cinema (né, não, Paul Auster?) e um quadro pode ser um balé e o cinema pode ser música. E é tudo bem melhor e bem mais rico quando tudo é tudo.

Mas eu faço cinema. Então, na hora de fazer cinema, qual cinema fazer? Mas por que a pergunta, se não é necessário seguir modelos, e sim convicções?! Mas quase todo grande cineasta tem aquilo que, na falta de melhor palavra, chamamos de “estilo”, não tem? E como admirar tão ardorosamente “estilos” tão diferentes, a ponto de querer fazer filmes completamente diferentes uns dos outros?

Admiro doentiamente, por exemplo, a elegância plástica (filmes-pinturas?), os movimentos de câmera belíssimos e sincopados (filme-balé?) e a trilha sonora conduzindo trama de poucas palavras e muito signo abstrato (filme-sinfonia?) dos filmes de Wong Kar-Wai, como já disse aqui.

Mas também sou capaz de explodir de gostar de certos filmes de Clint Eastwood. E Clint Eastwood faz filmes-livros. Porque não se vê esplendor visual, nem originalidade esplendorosa de linguagem. Mas se vê a boa e velha narrativa. Como um Philip Roth das imagens, Eastwood conta histórias. Cheias de carga moral, leituras sociológicas, políticas e afins, e guiadas por personagens mais do que complexos.

“Menina de Ouro” é o esplendor narrativo de Clint Eastwood.

Round 1
Três personagens brilhantes em suas dores passadas, seus fardos, seus sonhos e aspirações, seus auto-julgamentos, suas vidas. É humanidade a perder de vista.

Round 2
Atores, porque sem eles tais personagens não passariam de descrições vazias. Hilary Swank confirma e Morgan Freeman reafirma um talento calcado no maior dos talentos interpretativos: a simplicidade e a verdade como base. Basta olharmos para o personagem de Freeman, sem que ele abra a boca, e já entendemos tudo. Ah, e Clint Eastwood dilacera a pose de durão (“tough ain’t enough”) para expor-se de maneira inédita em toda a sua carreira.

Round 3
Uma história que vai sendo conduzida de maneira empolgante e crescente opera uma metalinguagem narrativa desnorteante e aplica um nocaute nas projeções e expectativas dramáticas do espectador ao mesmo tempo em que faz isso também com sua personagem principal, diegeticamente falando.

Fim da luta.

Porque a metáfora, óbvia mas não pobre, é que a vida é uma luta de boxe. Há sangue, há feridas, há passes errados, guarda baixa, socos certeiros, vitória por pontos ou nocaute. E há derrotas, naturalmente.

“No boxe, tudo acontece às avessas.”

Sim, e cá na realidade também. Tudo pode dar inacreditavelmente certo ou irremediavelmente errado. Sejamos cristãos, judeus, budistas, pretos, brancos, ricos ou pobres. As cartas podem sempre voltar, a Igreja pode ser um paliativo sem propósito, a teimosia pode nos privar de um campeão como pode nos poupar uma perda. Mas o curso dos acontecimentos não abriga o “se” (alô, alô, Esmir!). O fluxo é continuo.

É um monte de obviedades, sim, que até já fazem o signatário se alongar sem motivo, sim. Mas o importante a dizer é que Clint Eastwood sabe que a vida dói. E nos faz lembrar disso com um filme enorme – história bela, às avessas, de purgação do passado e aceitação dos fracassos. Dói horrendamente, sendo um livro, sendo música, sendo cinema à moda clássica, e mais do que nunca cinema. Sem dogmas, sem gessos, sem originalidades. Simples e bom, como o bom cinema deve (pode) ser.

9.2.05

DIÁLOGOS

PAI

- Pai, pai! Vem aqui ver: eu tô voando!!

- Rafael, como você foi parar aí em cima?

- Pensei coisas alegres, pai!

- Rafael, cuidado que você vai estragar o teto.

- Pai, não me desconcentra que eu caio.


MÃE

- Rafael, o que você está fazendo em pé na janela?

- Eu vou voar, mãe.

- Meu filho, você vai conseguir?

- Claro, mãe. É só pensar coisas alegres. Eu já aprendi.

- Então voa aqui perto da janela que eu quero tirar uma foto.


IRMÃ

- Rafael, a mamãe falou que você estava voando. Me ensina?

- É só pensar coisas alegres. Não dá pra ensinar.

- Não tô conseguindo. Posso ir com você?

- Não dá. A gente ia cair.

- Você tá me chamando de gorda?

6.2.05

CINEMATOGRÁFICAS 2

_1_

De volta a Cate Blanchett, mas não só: é “Sobre Café e Cigarros”.

De como Jim Jarmusch trabalha o imaginário desses dois mitos já foi dito. Café e cigarro, a dupla, abarca cultura cinematográfica, sensualidade, solidão, depressão, êxtase, conversa, muita conversa.

São 11 curtas. Naturalmente, há o melhor e o menos bom. Episódios primos, “Primas” e “Primos?” são, sem dúvida, o ponto alto. Identidades bipartidas, atrizes bipartidas atuando consigo mesmas (ah, Cate Blanchett...), relações familiares, profissionais e estranhamentos. Tudo aqui, em duas cenas muito bem sacadas e de humor sutil e certeiro.


_2_

“O Grito” assusta.

Mas é tão ruinzinho....


_3_

“Sideways” não é necessariamente progressão na carreira de Alexander Payne. Baseado em uma primeira olhada, ainda gosto mais de seus filmes anteriores, “Eleição” e “As Confissões de Schmidt”. Mas esse é bom, bom, bom sem dúvida. Vemos cada vez menos filmes que tratam dores humanas com tanta verdade e tão bom humor. E que fazem observações agudas sobre o “american way of life” escrachando o que ele tem de patético e enternecendo o que ele tem de bonito.

Uma elegia ao fracasso, ou um grito contra a (de) pressão do sucesso a qualquer preço, temas em que este “Sideways” é variação dos longas anteriores do diretor. Mas quem disse que não se pode ser bom durante toda uma carreira trabalhando sempre no mesmo registro, ou sobre o mesmo tema??


_4_

“Em Busca da Terra do Nunca” é simpático. Trilha sonora em abundância, ilustrando momentos de grandiloqüência ou de redenção, toques (ingênuos demais) de magia, na medida para agradar às crianças-dentro-dos-adultos-consumidores-da-cultura-de-massa. Infância, morte, amor e cachorros: quase impossível não cativar.

Hollywood sempre foi boa em fórmulas. Eis mais um filme formulaico, feito para ser bom, com o verniz de “sério” na medida para agradar em cheio votantes do Oscar e pessoas com coração mais distraído e menos preocupadas com as possibilidades artísticas do cinema.

Marc Forster, diretor de “A Última Ceia”, involuindo, fazendo em grande estilo sua celebração de cooptação pelo sistemão.

Diversão de primeira. Mas só isso.

4.2.05

Da necessidade de haver Separações

Já se vão dois anos desde que Domingos Oliveira lançou “Separações” nos cinemas. Agora, chegando tardiamente ao DVD, o filme merece o público que ainda não pôde ter.

Porque Domingos Oliveira é detentor, hoje, de um tipo de humor absolutamente próprio, e que, apesar de bater bola com Woody Allen, está longe de ser uma cópia ou uma “brasileirização” do mestre americano.

Porque esse humor de Domingos Oliveira mora na persona fílmica de Domingos Oliveira, já exposta em “Amores”, seu longa-metragem anterior. Que é a de um carioca de meia idade, dramaturgo, escritor, teatrólogo, roteirista – enfim, Domingos Oliveira –, de prosódia única e delirantemente engraçada, linguagem corporal vacilante entre o tímido e o, digamos, vacilante, às voltas com sua filha, amigos e mulheres. Enfim, Domingos Oliveira. E ninguém interpreta Domingos Oliveira melhor do que Domingos Oliveira.

Porque “Separações” pega o rastro de “Amores”, solta a câmera em fotografia digital na maior parte das vezes bastante cuidadosa e eficiente, apruma o senso de humor e traz o drama, na atuação transbordante da mais absoluta verdade melodramática de Domingos e na sensibilidade elegante de Priscila Rozembaum.

Porque separações ocorrem. E “Separações” é a vida e é doída e é bonita.

Porque só Domingos Oliveira escreve e interpreta as tiradas de Domingos Oliveira da maneira mais deliciosa e arrebatadora que se há para fazer humor.

Porque há uma cena shakesperiana, antológica, em que a tragédia e a comédia travam encontro inesquecível. E não é nem preciso dizer qual é (mas pense na bebedeira como potencializadora de um encontro desses). E pense em quantos outros atores poderiam olhar nos olhos do inimigo e disparar um “Cães!” com tamanha dignidade.

Porque é uma comédia-tragédia romântica das melhores, com um roteiro invejável em estrutura, diálogos, consistência dramática e capacidade narrativa.

Porque são atores bons pra burro (salvo pequena exceção que não chega a comprometer).

Porque é um filme bom pra caramba.

Vá ver.

Rápido.

Escritos esparsos 1

Ouvir que o telefone não toca. É assim que se sente a falta?

1.2.05

Porque retrospectivas são necessárias

Com um mês de atraso, balanço – pessoal, naturalmente – do ano cinematográfico de 2004 nos cinemas brasileiros.

Em bloco, sem expressão, a princípio, de ordem de preferência.

ARGENTINA (porque somos irmãos, ora bolas)

Repete-se o já dito: em bloco, a Argentina foi o país que melhores produções enviou a nós. Houve o terno e subaproveitado “Valentin”, de Alejandro Agresti, o contundente “Do Outro Lado da Lei”, de Pablo Trapero. Houve “Histórias Mínimas”, de Carlos Sorin, que juram ser excelente, mas que pegou o resenhista num dia de muito sono e inquietude de espírito. “Lugares Comuns”, de Adolfo Aristarain, é proliiiiixo, mas forte. “O Abraço Partido” não se iguala à obra anterior de Daniel Burman, o sensacional “Esperando o Messias”, mas cumpre muito bem o prometido, com humor de prumo e sentimentalismo bem medido. Mas o campeão é mesmo “O Pântano”, vigorisíssima e chacoalhante visão de Lucrecia Martel sobre a família, sobre a Argentina, sobre o seu mundo, enfim.


BRASIL (meu brasil brasileiro)

Lento, morno, arrastado ano. Repetir o repetido? Sim, houve os documentários (Juram que “Prisioneiro da Grade de Ferro”, de Paulo Sacramento é muito bom – falha nossa não ter visto.). Mas, o que mais, mesmo? “Narradores de Javé”, de Eliane Café, não é o grande filme que está salvando a pátria, como se quer fazer crer por aí. É bom, mas tem lenga-lenga demais. Quem salva, então? “Benjamim”, de Monique Gardenberg, e “O Outro Lado da Rua”, de Marcos Bernstein, têm, cada um a seu modo, e apesar das limitações, qualidades gritantes. E têm personalidade e alma e faíscas de talento. Beleza, leveza, beleza, um estranhamento cativante, beleza, no caso do primeiro. Humor, atores, delicadeza, atores, no caso do segundo.

Ah, claro, e há os documentários. “Entreatos”, de João Moreira Salles, é espetacular retrato do circo do poder, do circo da mídia, do circo das aparências, do circo das qualidades (e desqualidades) humanas. Aquele método Eduardo Coutinho de proximidade do objeto de documentação? Moreira Salles aprendeu como ninguém e melhor: adaptou-o a si próprio. “Peões”, do mestre em pessoa, é desconcertante exposição de vidas paralelas, o melhor enredo hollywoodiano feito verdade, e feito com verdade: de como dois (ou mais) amigos reunidos por determinada circunstância traçam caminhos distintos, que leva um à aposentadoria humilde e outro à presidência da República. Opa!

Há de haver PSs:
PS1: “Redentor”, de Cláudio Torres, é digno de nota. Porque incomoda alguns, agrada a outros, faz barulho. Pode-se ver picaretagem ou originalidade, desperdício de dinheiro ou pulsão criativa real, mas deve-se ver.
PS2: No caderno das decepções, “Nina”, de Heitor Dhalia, reina. Equívoco, equívoco, equívoco!


AMÉRICA (do norte) – Loco por ti...

Bem, bem...
- “21 Gramas”, de Alejandro González Iñarritu, é instigante, pra dizer o mínimo. E tem Sean Penn.
- “Peixe Grande” é fascinante, pra dizer o justo. E é Tim Burton.
- “Encontros e Desencontros”, de Sofia Coppola, é melodia agradavelmente comedida, exposta nas frestas, cadência de solidão e conexão, desterro e crise existencial. Não é filme de trama, é de sentimentos, com sentimentos. É bom, é bom, é bom (Pra não dizer que não falei da força feminina – Caroline, Gabriela, Marcela, Mariana, Isabel, estão ouvindo??)
- “Dogville”, de Lars Von Trier, é ambíguo. Porque é possível, no mesmo dia, a mesma pessoa convencer-se de que é lixo repugnante, blefe de um pessimista compulsivo. Ou recriação genial, tacada mestra de linguagem e enredo de um inventor angustiado. Pra ficar na dúvida.
- “Elefante”, de Gus Van Sant, é mesmerizante. Porque põe cinematografia de elegância desconcertante para retratar violência desconcertante. É o elefante na loja de porcelanas, mesmo. E é filme político, infanto-juvenil, seríssimo, sanguinário. É mal de uma nação, é piolho social, é o lado mais obscuro da lua. Pra ficar na brutalidade.
- “Colateral”, de Michael Mann, passa longe de “O Informante”, obra anterior de mesmo autor, mas é, como disse alguém, na essência, sobre dois homens que precisam manter seus empregos. E há uma fenomenal seqüência de abertura. Pra não dizer que Hollywood não está viva.
- “Shrek 2”, de Andrew Adamson, Kelly Asbury e Conrad Vernon, é engraçado, engraçado, engraçado. Pra não dizer que Hollywood não tem senso de humor.
- “A Vila”, de M. Night Shyamalan, porque as opiniões mudam e os amigos fazem-nos ver algumas coisas (angústia da influência?). Cenas sensacionais, inversões súbitas, subversões. Conto de fadas pra adultos: Sejamos o lobo do lobo do homem/Lobo do lobo do lobo do homem. Pra crianças grandes e espertas.
- “O Agente da Estação”, de Thomas McCarthy, é o que há de sincero e belo por baixo do rótulo do “cinema independente americano” – pra constar.
- “Anti-Herói Americano”, de Shari Springer Berman e Robert Pulcini, é o que há de vivo e original por baixo do rótulo do “cinema independente americano” – pra constar, de novo.
- “De Corpo e Alma” é o que anda produzindo de bom, muito bom, o eterno independente (Pedro Alexandre, você tá aí?) Robert Altman. Porque cinema e dança se misturam, são irmãos, são iguais. Porque a gente adora quando tudo se mistura (sai, Pedro Alexandre!).
- “Na Captura dos Friedman”, de Andrew Jarecki, faz no documentário o jogo de espelhos que “Má Educação” faz na ficção. São espelhos um do outro. Põe em cheque o valor das imagens, o teatro da vida, a construção da ficção. Tudo é falso e, assim, intensamente verdadeiro. Pra confundir.
- “Kill Bill”, de Quentin Tarantino, é filme do mais pop e mais cinéfilo e mais multi-referencial e mais americano dos cineastas da atualidade. E ele filma bem pra burro. E é capaz, num mesmo filme, da mais deslavada ação e sanguinolência e da mais deliciosamente perspicaz e estilosa (seja lá o que isso quer dizer) construção de personagens do cinema recente. E os filmes dele tem personalidade, vai!? (seja lá o que isso quer dizer). Pra não negar o óbvio.
- “Brilho Eterno de um Mente Sem Lembranças”, de Michel Gondry, é uma espécie de “Annie Hall” dos anos 2000, o mais velho dos assuntos na mais renovada das formas. Porque, pela primeira vez, Charlie Kauffman é capaz de real substância dramática e sentimental em um roteiro não menos escandalosamente inventivo que os antecessores. Porque Gondry mostrou o coração mole por trás do homem das tecnologias que sempre foi. Porque Kate Winslet está fantástica. Porque dói, dói, dói, mas afaga, agulhando. Porque dá vontade de chorar. Porque é um filmaço. Porque o melhor fica para o fim.

PS1: Michael Moore conseguiu: transformou-se em um irritante babaca gritalhão – manipula usando as mais francamente idiotas e óbvias técnicas cinematográficas, e não diz nada, quase nada, de interessante. “Fahrenheit 11 de Setembro” é uma bosta. Pra o resenhista extravasar a raiva.


MULTI-CULTURALISMO (porque ovelhas desgarradas sempre há)

- “Diários de Motocicleta”, de Walter Salles, é filho monetário de muitos pais – atenção, atenção, NÃO É FILME BRASILEIRO. E é bom, apesar de “la puta nadada asmática” (Gabriela, na escuta?)
- “Whisky”, de Juan Pablo Rebella e Pablo Stoll, é humanidade em estado bruto, drama de construção irrepreensível, comédia de inteligência tão simples quanto fascinante. Obrigatório!
- “Passagem Azul”, de Yee Chih-yen, é delicadeza em estado bruto, é fotografia de arrombar as retinas e narrativa com contenção de recursos e explosão de recato e sensibilidade. Bonito demais.
- “Má Educação”, de Pedro Almodóvar, faz na ficção o jogo de espelhos que “A Captura dos Friedman” faz no documentário. São espelhos um do outro. Põe em cheque o valor das imagens, o teatro da vida, a construção da ficção. Tudo é falso e, assim, intensamente verdadeiro.
- “Antes do Pôr-do-Sol”, de Richard Linklater, não existiria sem “Antes do Amanhecer” e não só o supera como leva adiante as questões do filme anterior com maturidade e pontualidade. E tem um final arrasador.
- “Código 46” é um dos filmes de Michal Winterbotton que puderam ser vistos ao mesmo tempo em São Paulo. Juram que “Neste Mundo” é muito bom, mas pegou o resenhista no contrapé do tempo. Uma história de amor que é ficção científica que é história de amor, em um mundo onde tudo é estranhamente circular, sempre. Estranhamento e lirismo, lirismo do estranhamento.


Findo o texto-livro, eis, enfim, numa ordem de preferência que vale mais ou menos (sempre muda, sempre há de mudar), os 10 filmes prediletos do ano de 2004 em salas de cinema paulistanas.
- Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças
- Passagem Azul
- Encontros e Desencontros
- Elefante
- Kill Bill
- Whisky
- Entreatos
- O Pântano
- Na Captura dos Friedman
- Dogville (porque nós amamos odiar)

e a sensação de que, mais cedo ou mais tarde, A Vila vem pra cá.

Colegas e espelhos (colegas são espelhos?)

A mais do que querida Mariana, sempre ela, fez observações reveladoras, que torno públicas não por vaidade, mas por serem, justamente, reveladoras. É bom reconhecer em outros a nossa personalidade artística, principalmente quando nós mesmos ainda não sabemos direito qual é, e ainda que esteja absolutamente em formação – e, tomara, em constante renovação.

Eis trecho de do e-mail da amiga:

“Não sei exatamente qual foi a sensação que senti quando passavam na imensa tela a minha frente os créditos finais de "Closer". A primeira fileira é ingrata, mas sinceramente, não fez a menor diferença neste caso. A reação era única.

Fui sabendo que assistiria um bom filme, mas duvidava se o acharia excelente. O poster anunciava Julia and Jude, um casal "água com açucar" de marca maior. Sem atentar para talentos interpretativos o que eu tinha em mente era apenas o caminho filmográfico de tijolos amarelos ($) que ambos resolveram traçar. Tinha lá suas poucas ressalvas.
Mas público é espelho e reflete de imediato o que recebe quando o filme começa. Dê-lhes a chance de sentir e vão. A de pensar e vão. A de julgar e vão. Closer me deu o que é dado a todo mundo todos os dias, como já sabia Roberto Carlos: o amor que rima com a dor, simples assim. Vida, o filme. Gostei demais. Não olhei no relógio.

Mas ali estava também uma outra percepção. Uma semelhança esquisita e bem vinda com um amigo meu. Um filme de pessoas, diálogos e situações, de sentimentos e reflexões simples, espertas e caprichadas. Sem truques. Sem atalhos. Com influência considerável do teatro.

Um pensar despretensioso sobre cada indivíduo que forma uma sociedade. Cada um cada um, desde que juntos.

Meu amigo também fazia coisas assim. Era como ver que havia ganho um edital milionário e ido ao exterior fazer seu primeiro filme bem pago e para uma platéia mundial.

Ali, ao meu ver, estava um longa metragem a "la Rafael Gomes". Um pouco escrito e um pouco dirigido por ele. Com tudo aquilo que ele discursa sobre e reafirma em alguns textos e roteiros ainda privilégios de uma pequena audiência. "Alice" também era um pouco daquilo.

Mike Nichols e Patrick Marber, em Closer, têm juntos um filho bastardo. Eu apresentaria meu amigo a eles assim. Um filho, não um irmão, porque o potencial está ali mas ainda falta o tempo de fazê-lo amadurecer.

Enfim, é como eu havia dito numa daquelas tardes agradáveis em Cajaíba: quando estamos sozinhos eu e você, somos três. Eu, você e a imagem que eu tenho de você.

E se esta estiver errada, saiba que ao menos é positiva.”

Bem, acho que preciso até rever “Closer”. Mas, de qualquer forma, já gosto mais dele.