18.2.05

Sobre o assombro de Cate ser Kate (Cate Blanchett, mais uma vez ela.)

Cate Blanchett assombra quando é boa, mortifica quando é ótima e embaralha quando não se sabe bem ao certo o que ela está fazendo. Lê-se, atualmente, na imprensa brasileira, comentários que chamam sua atuação em “O Aviador”, de Martin Scorcese, de “exagerada”, assim como de “inebriante”. O que será? Já que a bola está no ar, mais uma vez instigado pela amiga Mariana resolvi entrar no jogo.

Cate Blanchett interpreta Katherine Hepburn. E então, o que fazer? Atores têm capacidade admirável de personificar outras figuras notórias. Angela Basset já fez Tina Turner, Jamie Fozz atualmente faz Ray Charles – a lista é longa. Mas como um ator interpreta um ator? E quando esse outro ator é Katherine Hepburn, das mais lendárias figuras de Hollywood, poço de prêmios e consagrações?

Difícil, de fato. Cate Blanchett opta pelo evidente. Ela “atua”, no sentido mais óbvio da palavra. É exagerada sim, maneirista sim. Sua primeira cena, quando conhece Howard Hughes (personagem que Leonardo DiCaprio defende com dignidade) em um campo de golfe, é um nocaute. Ela entra feito um furacão e desnorteia. Mas seu modo afetado e pomposo de falar e suas expressões engrandecidas vão crescentemente incomodando aqueles tão acostumados à agigantada verdade que Cate sempre demonstrou.

Por que, enfim, fazer Katherine Hepburn, como se ela, a personagem, estivesse constantemente atuando (mal)?

Mas eis que em sua última cena surge a dica de esclarecimento, justamente calcada na questão acima. Passamos a entender, então, que Cate fizera Kate, até aquele momento, como uma “atriz”. Ou seja, Cate, atriz, interpretava, Kate, atriz, como se a personagem, em sua vida real, fora dos personagens que a consagraram, fosse constantemente uma atriz, ou seja, uma pessoa enfraquecida demais no campo pessoal para desfazer-se do manto de estrela, “interpretando” sua vida cotidiana como quem romantiza o ato da existência, como quem veste um véu de personagem perante o mundo, sempre.

Quantas camadas há aí?

Será que Blanchett e Scorcese optaram conscientemente por esta leitura ou a atriz caricaturou mesmo e eis nós aqui, fãs, inventado subterfúgios?

A considerar que “O Aviador” é um filme sobre o cinema, constantemente inebriado pelo fazer cinematográfico e suas possibilidades, dentro e fora da história, e que Scorcese é um cinéfilo apaixonado que faz cinema, aqui, como uma forma contínua de homenagem ao cinema (como se dissesse, em cada fotograma, “ah, que maravilha fazer cinema, que sensacional as possibilidades dessa arte”), a primeira opção parece mais cabível.

Mas é lícito, ainda assim, incomodar-se com Cate Blanchett, nesse filme. Só não desvalorizá-la. A mulher é endiabrada: quando você pensa que ela errou, ela pode na verdade estar fazendo algo que o intelecto não capta de primeira, dando um golpe de mestre que pega suas expectativas, as achata e reconstrói, devolvendo-as a você chacoalhadas. Atenção aí.

Ah, e sobre “O Aviador”?

Sim, é extremamente bem feito, de competência ímpar. Mas não tem como negar que chateia a dada altura. E se é filme cambaio em narrativa, também não arremata potentes idéias uma vez baixada a poeira, como “Gangues de Nova York”, por exemplo, fazia. “O Aviador” é um grande filme, mas não necessariamente é um filme muito bom.

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