2.1.06

o que passou passou?

Fim (início) de ano, momento de listas.

Nos primeiros momentos de 2005, escrevi assim, em texto encontrável nos porões escuros desse blog e intitulado “Porque retrospectivas são necessárias”:

...eis, enfim, numa ordem de preferência que vale mais ou menos (sempre muda, sempre há de mudar), os 10 filmes prediletos do ano de 2004 em salas de cinema paulistanas.
- Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças
- Passagem Azul
- Encontros e Desencontros
- Elefante
- Kill Bill
- Whisky
- Entreatos
- O Pântano
- Antes do Pôr-do-Sol
- Dogville (porque nós amamos odiar)
e a sensação de que, mais cedo ou mais tarde, A Vila vem pra cá.


Os gostos sempre mudam, sempre hão de mudar. Melhor se forem ampliados, estendidos, alargados além das impressões imediatas. Vista um ano depois, a lista acima continua válida. Apesar de nem todos os filmes terem sido revistos – o que seria necessário para uma afirmação precisa -, continuam sendo, na memória, muito bons. Revisto, re-debatido, “A Vila” definitivamente entrou na lista, diretamente para a primeira posição.

Isso tudo só para dizer, para quem ainda não sabe, que juízos de valor são sempre relativos. Então, sem mais delongas, a uma nova retrospectiva, em bloco: a dos filmes estreados nas salas de cinema paulistanas durante o ano de 2005. Evidentemente, é uma seleção pessoal, guiada por aspectos intelectuais, estéticos, afetivos e tudo o mais que possa influenciar diretamente em um gostar cinematográfico.


5 GRANDES FILMES

Estes cinco exemplares de arte cinematográfica são os filmes irrepreensíveis, dos quais se faz pouquíssima ou nenhuma ressalva. Possuem ética e estética, autoralidade, pulsão moral e poética, força narrativa – cada um a sua maneira. São, enfim, deleites artísticos na mesma medida em que são instrumentos de reflexão do mundo e do ser humano.
Em ordem alfabética:

CINEMA, ASPIRINAS E URUBUS (Marcelo Gomes)
Num sertão sem estereótipos, a paisagem árida acolhe a verdade do encontro entre dois homens. A fuga e a busca de si mesmo, a apreensão e a construção de um determinado habitat, a difícil simplicidade da afetividade. “Cinemas, Aspirinas e Urubus” dessacorrenta a ficção cinematográfica brasileira, transmitindo um olhar livre de fórmulas, convenções, correções e artificialismos.

FAMÍLIA RODANTE (Pablo Trapero)
“Família Rodante” é uma das duas pérolas que nos chegaram de terras argentinas. Um road-movie incomum, que, colocando toda uma família num trailer em direção a um casamento, soma uma sólida camada emocional e bem-humorada à tradição dos filmes de estrada. Um elenco em estado de graça dá conta de um roteiro tragicômico equilibrado entre a simplicidade de seu conflito e a consistência rara de seus personagens. Do simples, nasce, aqui, uma grande história, um grande retrato afetivo, um grande filme.

MENINA DE OURO (Clint Eastwood)
Ao modo quase clássico, uma história com progressão dramática, transformações, conflitos e heróis que transmutam-se ao longo da trama, perseguindo um objetivo. O que poderia ser mais do mesmo é, nas mãos hábeis e serenas de Clint Eastwood, uma luta de boxe, uma sonata de dor e inexorabilidade. Duro e cruel como somente a vida sabe às vezes ser, “Menina de Ouro” é um nocaute cinematográfico, que retumba apoiado em sólidas bases dramáticas e emotivas – no caso, personagens à margem de um mundo feliz e pacífico, que, sabemos, não existe.

A MENINA SANTA (Lucrécia Martel)
A diretora Lucrécia Martel faz com que seus filmes respirem. A afirmação que pode parecer simplória, no entanto, resume a maneira como ela aborda personagens e situações, construindo um universo de ação autônomo e quase sempre perturbador em sua mistura de crueldade e ternura. Dizer que a trama trata de “desajustes” é conceituar apressadamente o que são, por fato e direito, apenas reentrâncias do caráter humano (“caráter”, aqui, em seu amplo e real sentido, e não como simples expressão de correção moral), filmadas com elegância e com uma minuciosidade que revela ao mesmo tempo que deixa subentender. “A Menina Santa” instiga e comove.

NINGUÉM PODE SABER (Hirokazu Kore-Eda)
Hirokazu Kore-Eda trabalha com o sublime. A metafísica, que era força central de seus dois sensacionais longas-metragens anteriores é, aqui, alcançada através do mais banal cotidiano. No dia-a-dia de crianças abandonadas pela mãe, pautado por uma discreta e árdua batalha pela sobrevivência, cristaliza-se um belíssimo e pungente retrato humano, social, politico. Tons e temas realistas são encenados com leveza quase onírica de tão verdadeiros, e filmados por uma câmera deslumbrante. É filme de uma beleza estética espiritual entrando lentamente pelos olhos do espectador e comprimindo-o com a dor e agudeza de sua narrativa.


ELES DEIXAM (QUASE) NADA A DESEJAR

BENDITO FRUTO (Sergio Goldenberg)
No momento da crítica, a comedia é comumente negligenciada, posta no escanteio de um gênero erroneamente apreendido como superficial. Mas, às vezes, é rindo que o cinema retrata o mundo em sua insana complexidade – que o diga Woody Allen. Caso raríssimo em nossa cinematografia, “Bendito Fruto” é uma excelente comédia, com fina carpintaria dramática, ótimos atores e uma direção tão eficiente quanto discreta. Derrubando estereótipos e pré-conceitos, tanto em sua trama quanto em sua existência como produto audiovisual, eis um filme sensacional e subestimado.

CASA VAZIA (Kim Ki Duk)
Uma fábula delicada sobre os lugares que ocupamos no mundo, física e espiritualmente e o quanto estão aí, cruzados, os (des) caminhos do amor. Com cuidado poético, narra-se uma história plena de simbolismos, que avança de forma competente até mesmo quando ensaia-se atabalhoada.

O FIM E O PRINCÍPIO (Eduardo Coutinho)
Eduardo Coutinho leva seu “método” à Paraíba, para retratar velhos sertanejos. Ressente-se da falta de uma unidade que já foi tão avassaladora em ocasiões anteriores, como em sua obra-prima “Santo Forte”. Mas a delicadeza de abordagem e a inevitabilidade da matéria humana garantem um ótimo documentário.

MANDERLAY (Lars Von Trier)
Segundo capítulo da trilogia iniciada por “Dogville”, “Manderlay” leva adiante o didatismo e dogmatismo existentes no filme anterior. A trama, aqui, parece mais repleta de ambiguidades e menos engessada pelo determinismo, o que definitivamente trabalha a seu favor. A encenação brechtiana permanece assombrosamente eficiente e o discurso segue ainda mais dialético – depende do espectador aceitar ou não o convite.

O JARDINEIRO FIEL (Fernando Meirelles)
Um filmaço. O esquema narrativo hollywoodiano não arrefeceu a capacidade de Fernando Meirelles de realizar um cinema pulsante e comovente, pois comovido. As imagens transmitem um sincero entusiasmo e uma emoção – que podem ser para o bem ou para o mal – perante as coisas do mundo. A estética sobressaltada acompanha uma ética genuína, num filme pungente e estimulante, ao ser um thriller politico ou uma história de amor.

A PESSOA É PARA O QUE NASCE (Roberto Berliner)
Nesse documentário revelador, Roberto Berliner oferece-se com generosidade ao prazer e a surpresa de um gostoso encontro, levando-nos junto. Sua abordagem é afetiva e é estética – ele constrói um filme do tamanho de suas personagens, deixando que elas ocupem o centro da cena a que têm pleno direito. Somos apresentados, de forma imaginativa e deliciosamente profunda em sua aparente despretensão, a três seres humanos que, em sua cegueira, ensinam a enxergar. Há humor e muita beleza, sempre com sinceridade de olhar. Para aqueles dispostos a compartilhar, é um deleite inesperado e bastante intenso.

QUESTÃO DE IMAGEM (Agnes Jaoui)
É uma questão de roteiro. Agnes Jaoui é das mais pródigas dramaturgas do cinema atual, capaz de personagens, diálogos e composições dramáticas que remetem ao melhor Woody Allen. Sua chave de ação é, como a do mestre americano, a tragicomédia – as dores do mundo transformadas em risadas ácidas e irônicas. Mais: Jaoui fecha círculos perfeitos abordando temas específicos. Aqui, a questão da imagem – social, física, intelectual, pessoal ou coletiva – é destrinchada em uma narrativa plena de prazeres.


O QUE VEM LOGO ATRÁS


APENAS UM BEIJO (Ken Loach)
A veia política de Ken Loach, aqui, ronda o amor. É a intolerância étnica e religiosa que intromete-se na relação entre um homem e uma mulher. Se há algo de levemente banal na história, é uma banalidade que exala realismo, enchendo de emoção um cinema que, racionalmente, trabalha como um instrumento de reflexão do mundo.

CRASH (Paul Haggis)
Esquemático, mas muito bem esquematizado. Deixando a frieza analítica de lado, é deixar-se entreter por um amplo mosaico do ódio e da intolerância que, apesar de parecer forçado em alguns momentos, não deixa de ser contundente e desafiador. É Hollywood, mas é o que eles podem fazer de melhor.

DESDE QUE OTAR PARTIU (Julie Bertucelli)
Uma personagem central completamente cativante conduz um drama social delicado, que aborda as feridas da pobreza, do desterro, da velhice e morte. É daquele tipo de filme que vai crescendo progressivamente no espectador, depois que acaba.

UM FILME FALADO (Manoel de Oliveira)
Manoel de Oliveira trabalha nos limites, oferecendo uma estrutura narrativa que tem de ousada o que pode ter de aborrecida. Mas se não chega à perfeição de um “Voltando Para Casa”, não é, de forma nenhuma, um filme a se negligenciar, até mesmo pelo que tem de árduo. Trata-se de um filme-ensaio importante, com grande força de discurso.

HORA DE VOLTAR (Zach Braff)
O cinema independente americano sendo arejado pelos ares da originalidade. Personagens ternamente desajustados e bastante palatáveis em suas “esquisitices”, numa recontagem bastante estimulante de uma velha história (volta para casa, descoberta do amor) – pois feita pelo olhar deslavadamente subjetivo e criativo.

OLDBOY (Chan-wook Park)
Um liquidificador visual e temático que deve ser conhecido.


O QUE MAIS VALEU A PENA
:

* A qualidade narrativa de um cinema abertamente popular, e sem ter vergonha disso, em 2 FILHOS DE FRANCISCO.

* A visceralidade e a existência corpórea de um filme como CIDADE BAIXA, cinema de sangue, suor e lágrimas e que possui uma deslumbrante cena final.

* O trabalho de câmera de CLEAN, que fascina visualmente enquanto conta uma boa história de perdas e recomeços.

* O cinemão comercial americano levado a sério, com discurso adulto e para adultos – o que é muito raro -, em CLOSER – PERTO DEMAIS, guiado pela mão segura de Mike Nichols que além de ser eficiente em narrativa, tira de Julia Roberts a melhor atuação de sua carreira.

* “A Mão”, o episódio de Wong Kar Wai em EROS, mais uma explosão de beleza, sutileza e emoção.

* A absoluta crueza psicológica que está no realismo devastador de IRMÃOS, mais uma facada emocional de Patrice Chéreau.

* A ausência de ranço e de pré-disposições ruidosas ao abordar o tema do abuso sexual infantil, no sensível MISTÉRIOS DA CARNE.

* Os momentos epifânicos, seja no prazer sensitivo ou na provocação intelectual, oferecidos pela eterna inquietação do gênio de Godard, em NOSSA MÚSICA.

* O cinema francês espanando a poeira que acompanha sua imagem, no vigor narrativo de REIS E RAINHAS.

* O delicado e delicioso senso de episódico que emana de VIDA DE MENINA, que, guiado pela personagem da excelente Ludmila Dayer, pinta um singelo e rico retrato de um tempo e de um lugar, numa espécie de filme que, olhando para o passado histórico a partir do particular, faz-se fundamental para uma cinematografia.



E ESTES AINDA TIVERAM MUITO A OFERECER...


AMOR PARA SEMPRE, que atiça o raciocínio emocional;
O AVIADOR, que é um grande espetáculo e tem Cate Blanchett;
FILHAS DO VENTO, que possui beleza nos apesares de seus defeitos;
REENCARNAÇÃO, que apresenta uma personagem fascinante, num conflito ainda mais fascinante;
SIDEWAYS, que tem grandes atuações e um bom roteiro;
SOBRE CAFÉS E CIGARROS, que é, no mínimo, interessante, e possui dois episódios realmente excelentes;
A VIDA MARINHA COM STEVE ZISSOU, que tem personagens fantásticos – maiores do que a fraca trama –, desde a concepção em roteiro até às interpretações, a cargo de um timaço.


FIM


PS: E por falar em listas, a revista Bravo!, que publicou um texto fraquinho, fraquinho sobre o cinema oriental, em sua edição de novembro, resolveu, para comemorar seu 100º exemplar, fazer listas de "100 melhores", dos últimos 8 anos. Mas é cada absurdo, que o assunto voltará pra cá, logo, logo.

3 comentários:

paula manzo disse...

rafa escrevendo cada vez melhor. quero ver a hora em que te descobrirem....

Anônimo disse...

Caramba, Rafael, acabei de descobrir este seu espaço e vejo que teriamos MUITO a conversar sobre os filmes de 2005, ainda que provavelmente nunca o façamos. Bem, existem sempre os Decálogos restantes...
Você é muito bem articulado, uau.

Anônimo disse...

mutcho bem!