1.2.05

Porque retrospectivas são necessárias

Com um mês de atraso, balanço – pessoal, naturalmente – do ano cinematográfico de 2004 nos cinemas brasileiros.

Em bloco, sem expressão, a princípio, de ordem de preferência.

ARGENTINA (porque somos irmãos, ora bolas)

Repete-se o já dito: em bloco, a Argentina foi o país que melhores produções enviou a nós. Houve o terno e subaproveitado “Valentin”, de Alejandro Agresti, o contundente “Do Outro Lado da Lei”, de Pablo Trapero. Houve “Histórias Mínimas”, de Carlos Sorin, que juram ser excelente, mas que pegou o resenhista num dia de muito sono e inquietude de espírito. “Lugares Comuns”, de Adolfo Aristarain, é proliiiiixo, mas forte. “O Abraço Partido” não se iguala à obra anterior de Daniel Burman, o sensacional “Esperando o Messias”, mas cumpre muito bem o prometido, com humor de prumo e sentimentalismo bem medido. Mas o campeão é mesmo “O Pântano”, vigorisíssima e chacoalhante visão de Lucrecia Martel sobre a família, sobre a Argentina, sobre o seu mundo, enfim.


BRASIL (meu brasil brasileiro)

Lento, morno, arrastado ano. Repetir o repetido? Sim, houve os documentários (Juram que “Prisioneiro da Grade de Ferro”, de Paulo Sacramento é muito bom – falha nossa não ter visto.). Mas, o que mais, mesmo? “Narradores de Javé”, de Eliane Café, não é o grande filme que está salvando a pátria, como se quer fazer crer por aí. É bom, mas tem lenga-lenga demais. Quem salva, então? “Benjamim”, de Monique Gardenberg, e “O Outro Lado da Rua”, de Marcos Bernstein, têm, cada um a seu modo, e apesar das limitações, qualidades gritantes. E têm personalidade e alma e faíscas de talento. Beleza, leveza, beleza, um estranhamento cativante, beleza, no caso do primeiro. Humor, atores, delicadeza, atores, no caso do segundo.

Ah, claro, e há os documentários. “Entreatos”, de João Moreira Salles, é espetacular retrato do circo do poder, do circo da mídia, do circo das aparências, do circo das qualidades (e desqualidades) humanas. Aquele método Eduardo Coutinho de proximidade do objeto de documentação? Moreira Salles aprendeu como ninguém e melhor: adaptou-o a si próprio. “Peões”, do mestre em pessoa, é desconcertante exposição de vidas paralelas, o melhor enredo hollywoodiano feito verdade, e feito com verdade: de como dois (ou mais) amigos reunidos por determinada circunstância traçam caminhos distintos, que leva um à aposentadoria humilde e outro à presidência da República. Opa!

Há de haver PSs:
PS1: “Redentor”, de Cláudio Torres, é digno de nota. Porque incomoda alguns, agrada a outros, faz barulho. Pode-se ver picaretagem ou originalidade, desperdício de dinheiro ou pulsão criativa real, mas deve-se ver.
PS2: No caderno das decepções, “Nina”, de Heitor Dhalia, reina. Equívoco, equívoco, equívoco!


AMÉRICA (do norte) – Loco por ti...

Bem, bem...
- “21 Gramas”, de Alejandro González Iñarritu, é instigante, pra dizer o mínimo. E tem Sean Penn.
- “Peixe Grande” é fascinante, pra dizer o justo. E é Tim Burton.
- “Encontros e Desencontros”, de Sofia Coppola, é melodia agradavelmente comedida, exposta nas frestas, cadência de solidão e conexão, desterro e crise existencial. Não é filme de trama, é de sentimentos, com sentimentos. É bom, é bom, é bom (Pra não dizer que não falei da força feminina – Caroline, Gabriela, Marcela, Mariana, Isabel, estão ouvindo??)
- “Dogville”, de Lars Von Trier, é ambíguo. Porque é possível, no mesmo dia, a mesma pessoa convencer-se de que é lixo repugnante, blefe de um pessimista compulsivo. Ou recriação genial, tacada mestra de linguagem e enredo de um inventor angustiado. Pra ficar na dúvida.
- “Elefante”, de Gus Van Sant, é mesmerizante. Porque põe cinematografia de elegância desconcertante para retratar violência desconcertante. É o elefante na loja de porcelanas, mesmo. E é filme político, infanto-juvenil, seríssimo, sanguinário. É mal de uma nação, é piolho social, é o lado mais obscuro da lua. Pra ficar na brutalidade.
- “Colateral”, de Michael Mann, passa longe de “O Informante”, obra anterior de mesmo autor, mas é, como disse alguém, na essência, sobre dois homens que precisam manter seus empregos. E há uma fenomenal seqüência de abertura. Pra não dizer que Hollywood não está viva.
- “Shrek 2”, de Andrew Adamson, Kelly Asbury e Conrad Vernon, é engraçado, engraçado, engraçado. Pra não dizer que Hollywood não tem senso de humor.
- “A Vila”, de M. Night Shyamalan, porque as opiniões mudam e os amigos fazem-nos ver algumas coisas (angústia da influência?). Cenas sensacionais, inversões súbitas, subversões. Conto de fadas pra adultos: Sejamos o lobo do lobo do homem/Lobo do lobo do lobo do homem. Pra crianças grandes e espertas.
- “O Agente da Estação”, de Thomas McCarthy, é o que há de sincero e belo por baixo do rótulo do “cinema independente americano” – pra constar.
- “Anti-Herói Americano”, de Shari Springer Berman e Robert Pulcini, é o que há de vivo e original por baixo do rótulo do “cinema independente americano” – pra constar, de novo.
- “De Corpo e Alma” é o que anda produzindo de bom, muito bom, o eterno independente (Pedro Alexandre, você tá aí?) Robert Altman. Porque cinema e dança se misturam, são irmãos, são iguais. Porque a gente adora quando tudo se mistura (sai, Pedro Alexandre!).
- “Na Captura dos Friedman”, de Andrew Jarecki, faz no documentário o jogo de espelhos que “Má Educação” faz na ficção. São espelhos um do outro. Põe em cheque o valor das imagens, o teatro da vida, a construção da ficção. Tudo é falso e, assim, intensamente verdadeiro. Pra confundir.
- “Kill Bill”, de Quentin Tarantino, é filme do mais pop e mais cinéfilo e mais multi-referencial e mais americano dos cineastas da atualidade. E ele filma bem pra burro. E é capaz, num mesmo filme, da mais deslavada ação e sanguinolência e da mais deliciosamente perspicaz e estilosa (seja lá o que isso quer dizer) construção de personagens do cinema recente. E os filmes dele tem personalidade, vai!? (seja lá o que isso quer dizer). Pra não negar o óbvio.
- “Brilho Eterno de um Mente Sem Lembranças”, de Michel Gondry, é uma espécie de “Annie Hall” dos anos 2000, o mais velho dos assuntos na mais renovada das formas. Porque, pela primeira vez, Charlie Kauffman é capaz de real substância dramática e sentimental em um roteiro não menos escandalosamente inventivo que os antecessores. Porque Gondry mostrou o coração mole por trás do homem das tecnologias que sempre foi. Porque Kate Winslet está fantástica. Porque dói, dói, dói, mas afaga, agulhando. Porque dá vontade de chorar. Porque é um filmaço. Porque o melhor fica para o fim.

PS1: Michael Moore conseguiu: transformou-se em um irritante babaca gritalhão – manipula usando as mais francamente idiotas e óbvias técnicas cinematográficas, e não diz nada, quase nada, de interessante. “Fahrenheit 11 de Setembro” é uma bosta. Pra o resenhista extravasar a raiva.


MULTI-CULTURALISMO (porque ovelhas desgarradas sempre há)

- “Diários de Motocicleta”, de Walter Salles, é filho monetário de muitos pais – atenção, atenção, NÃO É FILME BRASILEIRO. E é bom, apesar de “la puta nadada asmática” (Gabriela, na escuta?)
- “Whisky”, de Juan Pablo Rebella e Pablo Stoll, é humanidade em estado bruto, drama de construção irrepreensível, comédia de inteligência tão simples quanto fascinante. Obrigatório!
- “Passagem Azul”, de Yee Chih-yen, é delicadeza em estado bruto, é fotografia de arrombar as retinas e narrativa com contenção de recursos e explosão de recato e sensibilidade. Bonito demais.
- “Má Educação”, de Pedro Almodóvar, faz na ficção o jogo de espelhos que “A Captura dos Friedman” faz no documentário. São espelhos um do outro. Põe em cheque o valor das imagens, o teatro da vida, a construção da ficção. Tudo é falso e, assim, intensamente verdadeiro.
- “Antes do Pôr-do-Sol”, de Richard Linklater, não existiria sem “Antes do Amanhecer” e não só o supera como leva adiante as questões do filme anterior com maturidade e pontualidade. E tem um final arrasador.
- “Código 46” é um dos filmes de Michal Winterbotton que puderam ser vistos ao mesmo tempo em São Paulo. Juram que “Neste Mundo” é muito bom, mas pegou o resenhista no contrapé do tempo. Uma história de amor que é ficção científica que é história de amor, em um mundo onde tudo é estranhamente circular, sempre. Estranhamento e lirismo, lirismo do estranhamento.


Findo o texto-livro, eis, enfim, numa ordem de preferência que vale mais ou menos (sempre muda, sempre há de mudar), os 10 filmes prediletos do ano de 2004 em salas de cinema paulistanas.
- Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças
- Passagem Azul
- Encontros e Desencontros
- Elefante
- Kill Bill
- Whisky
- Entreatos
- O Pântano
- Na Captura dos Friedman
- Dogville (porque nós amamos odiar)

e a sensação de que, mais cedo ou mais tarde, A Vila vem pra cá.

2 comentários:

paula manzo disse...

nada a ver com o assunto, mas para que eu não me esqueça: depois de (re) descobrir o roberto carlos, faça-me o favor de descobrir clara nunes. é uma sequencia e tanto.

bj

Anônimo disse...

A-HA!
Não o grupo, é claro.
Apenas uma vírgula, indignada e bem humorada, entre a lista.
"Porque Gondry mostrou o coração mole por trás do homem das tecnologias que sempre foi" ?
Soa como provocação. Obviamente, em tempos de busca mundial por PAZ, não iniciarei qualquer ataque.
A verdade é que se você tivesse assistido àquele DVD que passou alguns meses na sua casa, teria uma outra opinião. Antes de mais nada, essa é a minha sugestão. Ainda te dou mais uma chance de pegá-lo aqui em casa e quase me sinto na obrigação de convencê-lo.
Porque depois disso você, provavelmente, vai sentir que Michel Gondry é um homem com cara de quem foi muito esquisitinho quando pequeno, especial de certa forma. Daqueles que em vez de chupar o pirulito estilo Blockbuster ficava olhando as cores pra ver quantas voltas elas davam, onde se juntavam e como era muito mais interessante o pirulito inteiro, colorido, que o gosto que ele provia.
E vai saber que hoje, já bem crescido, ele coloca a mãe querida, uma senhorinha pianista meio gagá (sim, porque ela se perde entre as próprias histórias e não lembra de muitas) e meiga ao seu lado, no sofá de casa, para contar para um mundo de modernosos, histórias bobas sobre sua infância terna, incomum, apaixonante e que, como sabemos, deu origem a um ser com potencial criativo sem fim (com trilha da mesma).
E que é um cara que perde muitos minutos falando sobre seu pai, visivel e ingenuamente ainda herói, embora falecido. Tamanha paixão que fez MG prometer a si mesmo, ainda pequeno, que jamais seria medíocre no que resolvesse seguir profissionalmente! Parabéns, papai.
Um cara que veste as camisetas que a namorada faz e ela as que ele faz. Que experimenta tudo, desde que seja para tentar o bom e velho "novo". Que dirigiu Human Nature, sem quaisquer truques tecnológicos e que só usou a tecnologia para produzir o que já na idéia é sensacional e sem dúvida, frutos de um coração derretido. Onde nao?
Amante da tecnologia ou não, incrível antes. Quem daria vida aos próprios sapatinhos de um jeito tão sutil e fascinante, usando duas linhas de barbante? E quem faria experimentos no apartamento de Bjork, manchando todas as paredes, para tentar fazer com a câmera um jogo de pinturas baseado nas imagens que seu brinquedinho de criança produzia? Quem é sensível o suficiente para fazer um clipe de abrir qualquer boca, usando 10 pessoas em fila e um cenário de escadas, onde cada um deles representa um instrumento e nada mais? Poucos, bem poucos.
E que ele é um cara que, apesar de apontar na direção contrária, resolveu fazer um dvd muito simples, em vídeo, no jardim de casa e que, absolutamente, apesar de muito ser, não tem qualquer síndrome de astro.
Enfim, entre outras coisas, talvez você sinta que não é que Gondry tenha mostrado o coração mole em "Brilho Eterno". Mas que Gondry é o próprio "amor aos pedaços" em cada delícia audiovisual que produz.
Assiste agora?
No mais, "closer" friend, interessante a sua lista.
Beijos daquela já de praxe, a-ha,
Mari Bastos