7.5.09

Londres - dia 4

Dois adendos válidos sobre Billy Elliot:

- em meio a toda a espetacularização e às emoções desavergonhadas, o musical é um frontal e comovente libelo a favor da liberdade. o que é necessário, afinal, para que os pais percebam que não são donos de seus filhos?

- depois dos desastres sucessivos de O Leitor, era difícil acreditar que Stephen Daldry seria o diretor responsável por tão agradáveis sentimentos. sinal de que o palco é mesmo onde ele deve permanecer.


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A terça-feira em Londres começa na National Gallery, um desses imensos museus europeus dedicados à pintura, fazendo o percurso completo do século 13 até o início do 20.

Descrição da visita detalhada à galeria em item separado no fim dessa postagem, mas é preciso dizer que é impressionante até mesmo pra padrões europeus o número de excursões escolares de crianças pequenas pelas salas e corredores.

Um sanduíche rápido ao fim da maratona e correria até a Abadia de Westminster, para tentar pegá-la aberta. Em vão – mais uma vez demos com a cara na porta. Seguimos então para o St. James Park, para ver o Palácio de Buckingham. Um parque vira o outro e o Green Park nos leva ao metrô para Covent Garden, onde fica a Royal Opera House.

Ir à ópera na Inglaterra é compreender os ingleses em sua essência. 80% do público estava seguramente acima dos 60 anos de idade. Todos se vestiam formalmente. Os intervalos comportam mais do que cafezinhos – é tempo de verdadeiramente jantar (e de tomar sorvete). Nos intervalos da música, não se ouve uma respiração. Aplaudir é sentado – de pé, imagino, só para acontecimentos significantemente extra ordinários.

Lohengrin é já em sua abertura um exemplo da estatura gigantesca que a musica de Wagner é capaz de atingir. Mas a montagem original de 1971 não nega sua idade, passando lenta e arrastada. A ação dramática não é valorizada pela encenação e a sensação é quase de ver um recital com ornamentos de figurino e luz. Corpos estáticos demais, peso, espírito “clássico” no pior sentido.

Mas evidentemente vale a pena, porque os cantores e a orquestra excelente dão conta de uma música de muitas camadas (e quando houve tédio, a cabeça inspirada voou sem problemas em outras direções).

No fim, a sensação é de que todas as pessoas do teatro saem e entram no metrô juntas. Sozinho no trem, portanto, foi possível ouvir impressões e debates acerca do espetáculo que acabara de acontecer.


NATIONAL GALLERY

O mapa do museu, como de praxe, aponta alguns destaques da coleção. Segui-los é sempre um norte, mas é claro que há muitas outras coisas a serem vistas aqui.

Van Eyck é sempre impressionante. Bellini quase antecipa a terceira dimensão com o vibrante fundo azul de seu retrato The Doge Leonardo Loredan.

A explosão renascentista do século 16 tem Leonardo Da Vinci e Michelangelo, mas é diante de The Madonna of the Pinks, de Raphael, que minha mãe se admira com a vivacidade das figuras retratadas. Veronese faz a epifania do monocromatismo em A Visão de Santa Helena e a dramaticidade de Tintoretto nunca é maior do que em Cristo Lavando os Pés de Seus Apóstolos.

De Tiziano, o movimento impressionista quase se insinua pela técnica da “tinta aplicada cruamente sobre a tela”, em A Virgem e a Criança, e A Morte de Actaeon é um filme inteiro passando pela cabeça.

Em Christina da Dinamarca, de Holbein, pela primeira vez até onde a memória permite lembrar, vejo uma forte e marcada sombra de corpo inteiro em um retrato – num efeito incomum e surpreendente.

Numa série de quatro grandes telas de Joachim Beuckelaer, Os Quatro Elementos são retratados em um mercado de rua.

Se a Salome de Cesare de Cesto tem no olhar o indisfarçável gosto da perversidade, a de Caravaggio, Salome Recebe a Cabeça de São João Batista, tem na expressão retorcida a culpa e a percepção do horror que causou.

Em meio a suas prolíficas telas mitológicas, Rubens assuta com paisagens que parecem ter vida - no estilo das árvores animadas de A Branca de Neve o Os Sete Anões -, como em The Watering Place, por exemplo. Já Sansão e Dalila demonstra uma exuberante dramaticidade (a do instante que sintetiza toda uma história) na luz e nos corpos. Vendo-a, ouvimos na cabeça Mon Coeur S’Ouvre a Ta Voix.

Sobre contos de fadas, cena memorável é um grupo de crianças sentadas em frente a Landscape With Psyche Outside the Palace of The Cupid, de Claude Lorrain, respondendo a perguntas do monitor do museu sobre heroínas e arquétipos (sem que elas sequer soubessem que falavam disso).

Sobre a luz, é necessário apontar Zubarán em São Francisco Meditando, e Rembrandt, de cuja Ana and the Blind Tobit remete ao domínio fotográfico de Kore Eda em Maborosi. Rembrandt comparece ainda com dezenas de seus magistrais retratos.

Em mais uma série, Poussain pinta Os Sacramentos (da Igreja Católica) em cenas que remetem a pontos de vista teatrais dos acontecimentos – a perspectiva e recorte espacial é aquela de um palco.

Vermeer está aqui também, ainda que não com um de seus melhores quadros (A Young Woman Standing at a Virginal), e é acompanhado de perto por Pieter de Hooch. E na mesma sala, um peepshow de Samuel von Hoogstraton apresenta uma caixa com faces internas pintadas em perspectivas trabalhadas de modo que buracos nas laterais proporcionam visões espantosamente vivas e tridimensionais do espaço retratado no lado oposto. Faz lembrar de imediato Michel Gondry e suas artimanhas “mágicas” com elementos reais de cenário e posicionamento de câmera.

William Turner, com cinco estarrecedoras e inebriantes pinturas “atmosféricas”, retrata o céu e o mar como ninguém e faz o corpo do espectador prostrar-se diante de seus quadros (e talvez a grande revelação dessa visita à NG foi descobrir de forma mais profunda esse pintor). Leva a mente a Sokurov e a Terrence Malick.

William Hogarth faz uma quase fotonovela burlesca em mais uma série de pinturas, Marriage a la Mode, remetendo a uma comédia de costumes e suas desavenças domésticas (ou a Rohmer e suas “Comédias e Provérbios”).

Ainda no quesito “série”, Corot desestabiliza os sentidos nos quatro painéis de The Four Times a Day: Morning, Noon, Evening, Night. Já em The Leaning Tree Trunk a simplicidade extrema carrega a mais intensa magia visual (e na mesma sala ainda tínhamos Courbet, Delacroix, Ingres).

Adiante, uma dúzia de Monet, alguns belos Manet e Cézanne, Renoir e seu Os Guarda-Chuvas, Degas e a atordoante expressividade vermelho e laranja de La Coiffure.

Mas parece que nada nunca te prepara o suficiente para um Van Gogh ao vivo. No Campo de Trigo Com Ciprestes, todas as formas são curvas no estabelecimento das linhas horizontais e verticais. E as linhas comandam o quadro com a precisão da matemática, mas com a liberdade e a poesia que só a arte possui (e é capaz de transmitir).

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