24.10.11

diários da Mostra - dia 3: Anatólia, Hollywood

Era Uma Vez Na Anatólia
* * * * (e 1/2?)
Pra começo de conversa, a cópia estava mesmo em 35mm - salve os deuses do cinema! No mais, experiência árdua essa do filme de Nuri Bilge Ceylan. Mas com que força e precisão e rigor. Perto dele, Hanezu e Um Mundo Desconhecido parecem exercícios de relaxamento, filmes meio hippies em sua sensação de 'deixar-fluir'. O curioso é que ao mesmo tempo que Ceylan controla milimetricamente cada plano e cada segundo de sua narrativa intensamente dilatada, o objeto da (na) imagem é de um realismo brutal, como se só 'capturado', sem encenação. Pior (melhor): brutalmente cotidiano e prosaico sobre um pano de fundo permanentemente incômodo e fúnebre. Hipnótico, com uma admirável concentração de tempo/espaço, com personagens finamente nuançados (ao modo da melhor dramaturgia) e uma trama rarefeita em ação e pontos de virada, mas que vai se expandindo e aprofundando como uma poça de sangue que brotasse lentamente de uma fissura no assoalho, inundando tudo o que a vista alcança sem que se quase perceba. E as imagens, poderosas, devem permanecer e ecoar por algum - ou muito - tempo.


SINDICATO DE LADRÕES
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É um libelo político, um estudo de Kazan - dizem - sobre sua própria culpa, ou uma maneira de defender-se (e contra argumentar) da culpa que nele depositavam. Seja como for, é um filme de estruturas aparentes: pode-se ver com clareza a colocação das peças no tabuleiro e o desígnio da função de cada uma delas. Os personagens são construídos, em vez de se construírem, e não tarda a instalação de um maniqueísmo reinante entre eles. É um jogo político, esse, que impede uma adesão completa não tanto por ser 'esquemático', já que há forças conflitantes o suficiente para que a trama não se afogue em águas rasas, mas só por demonstrar tão evidente esquema (sem elementos suficientes para inebriar o espectador da percepção desse esquema, o que viria a fazer, logo em seguida, Vidas Amargas). Mas se sua posição de clássico não lhe assegura necessariamente uma coroa de obra-prima, tampouco é de se negar que exista, em seu jogo de forças (políticas) um jogo (dramático) muito bem jogado, cenas memoráveis (de quantos filmes se pode dizer isso, realmente?) e Marlon Brando, um trator.


VIDAS AMARGAS
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A supremacia do espetáculo. Esse modus operandi tão próprio ao cinema norteamericano nos anos de glória do sistema dos estúdios, com cidades e interiores cenográficos, grandes estrelas, dramas novelescos digeríveis pelas massas, alguns deles de cunho familiar, alguns deles suficientemente complexos, alguns deles emocionalmente épicos, alguns deles brilhantes. Não é que seja a beleza desconcertante de James Dean ou sua composição perfeita de um 'subnormal', do maluquete apaixonante que, renegado, no fim das contas enxerga tudo mais e melhor do que os demais. Não é que seja o roteiro astuciosamente azeitado. Nem a direção de Elia Kazan, que injeta no todo uma escaldante humanidade, sem que jamais deixe de ser dramaturgia. Não é que seja o pensamento visual, responsável pelos belos ângulos enviesados e oblíquos, num diálogo estético tão óbvio quanto surpreendente entre imagem e drama. Mas é que é tudo isso, essa alquimia fascinante e inexplicável que seduz plateias e as envolve e preenche de modo tão essencial - ao ponto de se querer aplaudir ao fim da projeção por simples impulso físico.

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