Nos dias que ainda restam desse 2005, um olhar rápido sobre o que esteve nas telas no ultimo bimestre. Aí vai:
OLIVER TWIST
Quem poderia imaginar que Roman Polanski seguiria “O Pianista” com mais uma adaptação do romance infanto-juvenil por excelência? Mas assim foi. E nesse “Oliver Twist” sobra capricho de produção e falta material humano. Corretíssimo – o que é, aqui, uma falta grave. Tudo feito de forma burocrática, sem paixão. Vê-se, mas é anódino.
FINAIS FELIZES
Don Roos surgiu para o mundo no ácido e bom “O Oposto do Sexo”. Sua visão de mundo – assim como a escalação de parte de seu elenco – não mudou muito. O que se vê é uma polifonia estimulante e divertida, com vários bons atores em bons papéis. Tudo bastante rápido e eficaz, com a profundidade passando ao largo – mas a idéia é essa mesmo. Aqui, como se sabe, o mundo pode ser tudo, mas definitivamente não é chato.
HERÓIS IMAGINÁRIOS
Em mais um capítulo do “cinema independente norte-americano”, uma história vítima de sua própria (des)ambição. O universo ficcional até consegue ser construído com habilidade e consistência, mas o furor da trama em sobrepor acontecimentos e dramas acaba por tragar a si mesmo para um certo vazio.
O FIM E O PRINCÍPIO
É mais um capítulo de “a incrível arte de mestre Coutinho”, que merece texto e análise próprios. Obrigatório - embora existam, sim, questões e restrições a serem discutidas.
CRASH – NO LIMITE
É um filmaço, na acepção mais simples (e Americana) do termo. O roteiro dá a impressão de ter sido trabalho exemplar, daqueles “nota 10 com louvor”, em uma oficina para roteiristas – do tipo em que se ensina progressão aristotélica, como fazer dezenas de detalhes se encaixar com perfeição e como costurar eficazmente uma incrível multiplicidade de tramas. Tanta “excelência” na forma, no entanto, por vezes incomoda, se faz visível e fica maior que a história em si. Friamente, pode-se condenar a sensação de que tudo está a favor de um ponto de vista, ou seja, de que toda a construção dramática opera para exemplificar a intolerância e o ódio perante o outro, esvaziando a vida interna de cada narrativa particular (salvo pequenas e milagrosas exceções). Mas deixando a frieza analítica em casa, vale a pena se entregar. É um daqueles filmes que derivam da Indústria, que são formulaicos em certa medida, mas que aliam o entretenimento com a pungência moral, em um formato narrativo (conhecido e muitas vezes desgastado) que o cinema Americano domina como nenhum outro e com o qual ainda sabe provocar prazer intelectual.
UMA VIDA ILUMINADA
Os personagens todos são retratados, e devem ser lidos, na chave do burlesco e a história é uma daquelas jornadas de descobertas. Funciona e derrapa em igual medida.
QUERIDA WENDY
O roteiro dogmático não nega as origens – foi escrito por Lars Von Trier. A construção moral dos personagens e o desenrolar instigante da trama, por sua vez, são plenamente bem orquestrados por Thomas Vintemberg. Mas a sustentação de ações, de intenções, e mesmo a verossimilhança que a história tem, são implodida no quarto final por acontecimentos que de tão injustificados passam a ser francamente estúpidos. Discrepante com o caminho que levou até ali, a conclusão não só é incapaz de amarrar de forma coesa o libelo moral empreendido como murcha a força que ele tivera até ali.
BEIJOS E TIROS
É um cinema plenamente derivativo. Se você não acompanhou a cultura pop (especialmente a cinematográfica) e suas mudanças nos últimos 10 anos, esqueça, esse filme não é para você. Mas se você acompanhou a década de 90 como um de seus legítimos filhos, delicie-se. Construído em metalinguagem, com um narrador 100% auto-referente, que metralha comentários ácidos e hilários sobre os aspectos diegéticos e extra-diegéticos do filme, essa é uma anti-sátira breve, superficial, vulgar e deliciosa. É uma narrativa na medida de sua própria pretensão, que é a de ser um reflexo dessa cultura pop em que ela mesma se encerra. Se isso for compreendido pelo espectador, é um programão (para “consumir” com pipoca, claro.)
EM MINHA TERRA
Cheio de boas intenções, repleto de incompetência. Didático, narrativamente truncado, com desenvolvimento dramático tolo e inconvincete, mal montado. Incrível saber que o outrora contundente John Boorman, dirigindo os bons Samuel L Jackson e Juliette Binoche, tenha errado feio em uma história tão simplista em sua ambição de ser poderosa.
O MUNDO DE JACK E ROSE
Rebeca Miller mostrara-se uma cineasta a ser seguida, em seu primeiro longa-metragem, “O Tempo de Cada Um”. No segundo, lança olhar delicado sobre os temas do amor incestuoso e dos espaços dos seres humanos, no mundo e na vida de outras pessoas. Mas sua dramaturgia desequilibra-se em personagens coadjuvantes deslocados e viradas despropositadas.
EM SEU LUGAR
Uma comédia dramática “mainstream”, do homem que deu ao mundo o excelente “Garotos Incríveis”. A história criar uma leve barriga no terço final é o que não deixa esse ser um ótimo filme comercial. Mas há muito do que gostar, desde Cameron Diaz em um de seus melhores papéis, até Shirley MacLaine, redimindo-se de muito tempo sem um bom papel, passando pelas situações cômicas espertas e o drama comovente para os moldes hollywoodianos. Filme para ver sorrindo.
VIDA DE MENINA
Absolutamente surpreendente na qualidade dramática que nasce de seu despojamento. Com um inteligente senso do episódico, Helena Solberg faz a crônica de um tempo, de um lugar e das vidas postas em conjunto nessas circunstâncias. Para arrematar, faz desenrolar na tela uma doce sinfonia do amadurecimento. Ludmila Dayer constrói de forma irrepreensível a protagonista, que conduz o espectador em um passeio estimulante, com muita sagacidade deliciosamente escondida por trás da inocência. Entre as pequenas falhas, a mais notável é o eterno problema do naturalismo das interpretações, uma meta que as telenovelas parecem fazer inalcançável. Porém, uma vez que belamente driblado pela onipresente protagonista, passa a ser desculpável e fica menor que as outras qualidades do filme. “Vida de Menina” não é filme que procura renovar uma cinematografia. Mas é obra essencial para sua consistência e identidade.
AS CRÔNICAS DE NÁRNIA
Depois que o paradigma do cinema épico de fantasia foi estabelecido pelo “Senhor dos Anéis”, fica difícil fazer alguma diferença neste terreno. E esse filme previsível e tedioso confirma a afirmação.
MISTÉRIOS DA CARNE
Destrambelhado e belo. Aborda de forma até certo ponto leve o abuso sexual infantil: em vez de gritos, choro, sangue, vingança ou estardalhaço, há duas trajetórias paralelas de sublimação que se encontram de forma delicada e comovente. Bons atores conduzem uma encenação que varia entre o quase exagero e a simplicidade, mas que se equilibra em sua verdade humana. É exemplar louvável do “cinema independente norte-americano”.
KING KONG
Sim, existe a cativante humanidade do personagem-título e a história de amor instigante que ele desenvolve com sua co-estrela. E, sim, existe o senso do espetáculo que Peter Jackson já está farto de dominar, depois da hercúlea epopéia de “Senhor dos Anéis”. Mas ao mesmo tempo que a relação macaco-mulher cavoca instintos humanos bastante adultos, existe uma infantilidade narrativa irritante. A reiteração chateia e faz pensar por que, afinal, era preciso contar essa história em 3 horas e 10 minutos. Será que é preciso ver 40 batalhas de seres humanos com criaturas perigosas para entender que se trata de uma jornada de risco e que a Ilha em que estão os aventureiros é cheia de perigo? Para um público de que idade mental, enfim, esse filme é narrado? A complexidade, assim, infelizmente se dilui em obviedade e repetição aflitivas.
BENS CONFISCADOS
Não sou admirador nem compreendo o cinema de Carlos Reichembach como um todo. E me incomoda fortemente uma certa “tosquidão” de mise-en-scéne que advém, principalmente, do artificialismo das interpretações e de alguns diálogos. E uma vez que todos os outros aspectos técnicos do filme são bem resolvidos, não se pode nem presumir uma incorporação desse “erro”, como em um filme B. Mas se em “Garotas do ABC” tais características pareciam ser imperdoáveis, em “Bens Confiscados” há uma beleza maior, que parece encobrir as falhas. Não que as redimam: continuo achando que o filme seria mais e melhor se chegasse à verdade plena de encenação de sua dramaturgia. (Atenção: não se trata de se formatar ou se encaixar em padrões de “naturalismo” pré-estabelecidos, e sim de encontrar o seu próprio, sem que esse seja tal que evoque a simples incompetência.) Ainda assim, acredito mais nos erros desse cinema de Reichembach do que nos “acertos” de um Daniel Filho, por assim exemplificar. Se, de fato, alguns dos diálogos não se ajustam e algumas das interpretações não se encontram, ainda assim a trama encerra um discurso, um sentido. Ao subirem os créditos, podem existir uma comoção e uma compreensão amplas do que acabou de ser visto. A frase da música-tema que diz algo como “e no final, quem confiscou os bens de quem, meu amor?” põe as reticências finais nessa história que merece existir, apesar de seus tropeços. Como o cantor que desafina, mas emociona na legitimidade da sua tentativa, “Bens Confiscados” é um cinema que tem alma e beleza.
UFA!
13.12.05
woody!
Há anos Woody Allen não encabeçava listas de premiações. Depois de aclamado em Cannes, em maio, e indicado agora ao Globo de Ouro nas categorias melhor filme, melhor direção, melhor roteiro e melhor atriz coadjuvante (Scarlet Johannson), "Match Point" parece ser a prova definitiva de que o gênio está de volta. Os grandes dificilmente perdem a grandeza.
11.12.05
los hermanos
Shows da banda carioca Los Hermanos podem ser tudo, menos uma experiência propriamente musical.
Porque o público, tomado por adoração messiânica, canta do começo ao fim absolutamente todas as letras. Grita, vibra, aplaude cada virada das canções. O público quer ser (e é) maior que o show. O público (sem querer) quer ser (e é) o show em si.
Há uma fenomenal troca de energia, uma espécie de pulsão própria de apresentações musicais ao vivo. Coisas do tipo "quem esteve lá, sabe".
Contudo, para conhecer e se emocionar com as belíssimas canções do disco "4", deve-se comprar o cd. Porque da histeria coletiva que é o show, a música é a grande prejudicada (o que, para o público presente, jamais se configura como um problema).
Porque o público, tomado por adoração messiânica, canta do começo ao fim absolutamente todas as letras. Grita, vibra, aplaude cada virada das canções. O público quer ser (e é) maior que o show. O público (sem querer) quer ser (e é) o show em si.
Há uma fenomenal troca de energia, uma espécie de pulsão própria de apresentações musicais ao vivo. Coisas do tipo "quem esteve lá, sabe".
Contudo, para conhecer e se emocionar com as belíssimas canções do disco "4", deve-se comprar o cd. Porque da histeria coletiva que é o show, a música é a grande prejudicada (o que, para o público presente, jamais se configura como um problema).
6.12.05
piadas
O júri de um recente festival de cinema concede o prêmio de melhor atriz a uma criança que "atua" em um filme feito inteiramente com "stills", ou seja, fotos estáticas. Explica-se: não há imagens em movimento, somente uma sucessão de fotos.
O filme em questão é excelente - não se discute isso.
Mas o prêmio só comprova, para quem ainda tinha alguma dúvida, que jurados em festivais de cinema são capazes de produzir quase tantas piadas quanto a política nacional.
O filme em questão é excelente - não se discute isso.
Mas o prêmio só comprova, para quem ainda tinha alguma dúvida, que jurados em festivais de cinema são capazes de produzir quase tantas piadas quanto a política nacional.
2.12.05
duas duplas: 2
2.
Todo mundo, a essas alturas, já sabe que “Manderlay” e “Marcas da Violência” são filmes sobre a sociedade americana. Mas e daí? E depois? E durante?
São dois grandes filmes. Agradem mais ou menos parcelas específicas do público, são obras de força moral, que cavocam, remexem, fazem barulho e sujeira.
“Marcas da Violência” é um Cronemberg um pouco afastado das temáticas ditas “esquisitas” que já marcaram sua obra. É um filme sobre o abismo interno do homem – e o quanto esse abismo pode ser relevado. Cutuca a ferida da violência na sociedade, indaga o quanto há de nós em nós mesmos. Busca saber em que medida o passado pode ser apagado, esquecido. Há mudança possível na personalidade de um homem? A superfície suave esconde por quanto tempo um interior turbulento, afinal?
Muito bem filmado, com atores no ponto certo (de ebulição), Cronemberg faz de seu filme uma pistola com silenciador – há explosão e sangue, mas praticamente não ouvimos nada. O que não quer dizer que essa história que contrói, destrói e remenda verdades e mentiras que rondam a família, a sociedade, os desvão de caráter e a força das escolhas, não possua um poder de combustão que se faça sentir de forma latente.
Cronember forja, diegeticamente falando, uma vida cenográfica perfeita, que ele faz ser corrompida pela inevitabilidade de alguns sentimentos humanos. Num cenário de paz e perfeição, a violência é a pólvora que desestabiliza as relações humanas, relativiza certezas e faz mudar mesmo a noção que se tem do personagem principal – e de todos a sua volta, nesse sentido. Até que ponto podemos ser fiéis às máscaras que inventamos para nós mesmos?
Um amigo diria que um filme deve antes ser um filme, ou seja, ser bem resolvido em seus aspectos dramatúrgicos, pra só depois ser uma tese, ou uma experiência estética e/ou moral. A construção, de acordo com esse raciocínio, deve ser em camadas – por sobre a existência “fílmica” de um aglomerado de imagens é que deve nascer uma rede de simbolismos, teorias, significâncias.
Melhor fica quando tudo se mistura. “Marcas da Violência” é uma tese (aberta), ponto de confluência de (des) equilíbrios morais e éticos, ponto de partida para uma série de leituras simbólicas e uma construção cinematográfica que sabe exatamente do que é capaz a linguagem com que está trabalhando e, por isso mesmo, faz-se trabalhada com rigor e precisão.
Não se deixe distrair somente pelo “entretenimento” que o filme pode oferecer. Entre no jogo e, como a própria trama, olhe um pouco mais embaixo. Há prazeres (ainda que conflituosos) à espera.
(Uma análise das mais equilibradas e sensatas sobre “Marcas da Violência” é a crítica que Manhola Dargis escreveu sobre o filme no “New York Times”. Se o inglês estiver afiado, arrisque-se clicando AQUI).
“Manderlay”, por sua vez, é a segunda parte da trilogia de Lars Von Trier, iniciada com “Dogville”, sobre a sociedade americana. Baixada a poeira da inovação do primeiro filme, e repetindo a dose estétiva, é possível olhar, nesse segundo capítulo, o que existe em trama e narrativa.
Há bastante. Grace, a personagem agora interpretada pela boa Bryce Dallas Howard, está mais complexa. Longe de ser uma mártir aparentemente estúpida que sofre durante duas horas e meia para metralhar seus carrascos ao final, ela agora possui conflitos internos. E esses conflitos acabam por pautar, de forma bem-sucedida, as dualidades que o roteiro apresenta.
Sim, há didatismo. Sim, o espectador pode revoltar-se e odiar determinados dogmas morais que podem ser lidos com maior ou menor clareza. Mas fato é que o método ainda funciona. Concebido de forma absolutamente teatral (e brechtiana), a narrativa, porem é conduzida de forma (cinematográfica) plenamente competente e límpida. Corre com precisão e atinge o alvo – graças às concepções e realização das atuações, fotografia e da mise-en-scene em si.
Lars Von Trier é homem de inflamar ânimos, mas algumas de suas habilidades, como a de exímio narrador, não podem ser negadas. “Manderlay” é filme dialético por excelência, poderoso em seu discurso. Perante sua tese, é somente a disposição e dedicação do espectador em contruir sua anti-tese que fará deste um filme melhor ou pior.
(E, se vale alguma coisa saber, o signatário gostou bastante.)
Todo mundo, a essas alturas, já sabe que “Manderlay” e “Marcas da Violência” são filmes sobre a sociedade americana. Mas e daí? E depois? E durante?
São dois grandes filmes. Agradem mais ou menos parcelas específicas do público, são obras de força moral, que cavocam, remexem, fazem barulho e sujeira.
“Marcas da Violência” é um Cronemberg um pouco afastado das temáticas ditas “esquisitas” que já marcaram sua obra. É um filme sobre o abismo interno do homem – e o quanto esse abismo pode ser relevado. Cutuca a ferida da violência na sociedade, indaga o quanto há de nós em nós mesmos. Busca saber em que medida o passado pode ser apagado, esquecido. Há mudança possível na personalidade de um homem? A superfície suave esconde por quanto tempo um interior turbulento, afinal?
Muito bem filmado, com atores no ponto certo (de ebulição), Cronemberg faz de seu filme uma pistola com silenciador – há explosão e sangue, mas praticamente não ouvimos nada. O que não quer dizer que essa história que contrói, destrói e remenda verdades e mentiras que rondam a família, a sociedade, os desvão de caráter e a força das escolhas, não possua um poder de combustão que se faça sentir de forma latente.
Cronember forja, diegeticamente falando, uma vida cenográfica perfeita, que ele faz ser corrompida pela inevitabilidade de alguns sentimentos humanos. Num cenário de paz e perfeição, a violência é a pólvora que desestabiliza as relações humanas, relativiza certezas e faz mudar mesmo a noção que se tem do personagem principal – e de todos a sua volta, nesse sentido. Até que ponto podemos ser fiéis às máscaras que inventamos para nós mesmos?
Um amigo diria que um filme deve antes ser um filme, ou seja, ser bem resolvido em seus aspectos dramatúrgicos, pra só depois ser uma tese, ou uma experiência estética e/ou moral. A construção, de acordo com esse raciocínio, deve ser em camadas – por sobre a existência “fílmica” de um aglomerado de imagens é que deve nascer uma rede de simbolismos, teorias, significâncias.
Melhor fica quando tudo se mistura. “Marcas da Violência” é uma tese (aberta), ponto de confluência de (des) equilíbrios morais e éticos, ponto de partida para uma série de leituras simbólicas e uma construção cinematográfica que sabe exatamente do que é capaz a linguagem com que está trabalhando e, por isso mesmo, faz-se trabalhada com rigor e precisão.
Não se deixe distrair somente pelo “entretenimento” que o filme pode oferecer. Entre no jogo e, como a própria trama, olhe um pouco mais embaixo. Há prazeres (ainda que conflituosos) à espera.
(Uma análise das mais equilibradas e sensatas sobre “Marcas da Violência” é a crítica que Manhola Dargis escreveu sobre o filme no “New York Times”. Se o inglês estiver afiado, arrisque-se clicando AQUI).
“Manderlay”, por sua vez, é a segunda parte da trilogia de Lars Von Trier, iniciada com “Dogville”, sobre a sociedade americana. Baixada a poeira da inovação do primeiro filme, e repetindo a dose estétiva, é possível olhar, nesse segundo capítulo, o que existe em trama e narrativa.
Há bastante. Grace, a personagem agora interpretada pela boa Bryce Dallas Howard, está mais complexa. Longe de ser uma mártir aparentemente estúpida que sofre durante duas horas e meia para metralhar seus carrascos ao final, ela agora possui conflitos internos. E esses conflitos acabam por pautar, de forma bem-sucedida, as dualidades que o roteiro apresenta.
Sim, há didatismo. Sim, o espectador pode revoltar-se e odiar determinados dogmas morais que podem ser lidos com maior ou menor clareza. Mas fato é que o método ainda funciona. Concebido de forma absolutamente teatral (e brechtiana), a narrativa, porem é conduzida de forma (cinematográfica) plenamente competente e límpida. Corre com precisão e atinge o alvo – graças às concepções e realização das atuações, fotografia e da mise-en-scene em si.
Lars Von Trier é homem de inflamar ânimos, mas algumas de suas habilidades, como a de exímio narrador, não podem ser negadas. “Manderlay” é filme dialético por excelência, poderoso em seu discurso. Perante sua tese, é somente a disposição e dedicação do espectador em contruir sua anti-tese que fará deste um filme melhor ou pior.
(E, se vale alguma coisa saber, o signatário gostou bastante.)
28.11.05
duas duplas: 1
Fim de ano e parece que os distribuidores de filmes para as salas de cinema resolvem correr e estrear, em novembro e dezembro, TUDO o que eles não estrearam em todos os outros meses.
Muitos filmes dignos de nota. Quatro deles, atualmente em cartaz, associam-se, conversam, instigam em dupla.
1.
“Cidade Baixa” e “Cinema, Aspirinas e Urubus” têm sido saudados como um sopro renovador da cinematografia nacional, como nossa reserva de qualidade num ano até então bastante desanimador. Mais: são recebidos como sopros de vida e faíscas autorais num cenário de pasteurização desalentadora.
E nada disso é à toa nem mentira (embora todas as verdades possam ser relativizadas).
A definição é tão vasta quanto precisa: são filmes com alma. Empobrecer essa afirmação é fácil, pois ela é, em si, simples, nada objetiva. Mas “filmes com alma” são indefectíveis. Ao vermos, sabemos, sentimos – ainda que de forma diferente, ou até com filmes diferentes.
Há anseios, desejos, força e energia criativa. Há um sentimento de mundo, ou um sentimento (ou muitos deles) perante o mundo, compartilhado por diretor, atores, técnicos. Chegando mais ou menos perto do alvo pretendido, o caminho é o fim em si, pois feito com gana, com vontade de acerto. Não se está fazendo cinema burocrático, ou com uma preocupação simplista de simplesmente “entreter” (porque o público pensa, sim!).
As imagens que vemos aqui são fruto de anos de trabalho, de obstinação, da pulsão verdadeira de fazer cinema – e um cinema que, em sua essência, pode ser considerado pouco “comercial”, o que torna as dificuldades de viabilização ainda maiores. A história narrada, a linguagem, as opções estéticas, esses dois filmes, enfim, são cinema feito de dentro para fora.
Porque não há pressões “de mercado”. Sergio Machado e Marcelo Gomes, os diretores de “Cidade” e “Aspirinas”, respectivamente, não estão filmando para ganhar dinheiro, não estão filmando pensando quais fatias do público podem ou não comprar o ingresso, não estão filmando sob encomenda de quem quer que seja. Filmam com amor ao que fazem e na tentativa de compartilhar uma história, um sentimento, um conflito, um encontro. Filmam, assim (mas nem só por isso), filmes bons. E o resto é consequência,
“Cidade Baixa” é um filme físico. Três atores, um triângulo amoroso, sangue e lágrimas. Não existe uma trama complexa. O conflito são os sentimentos que brotam dos personagens: o amor dividido, o amor sublimado, o ciúme, a competição, orgulho e sofrimento. A câmera está perto das transpirações, dos olhares, do desejo. E é isso. Alguns podem achar pouco. E alguns entregam-se e deixam-se envolver. Fato é que é bom.
E quando você começa a pensar “ah, não! Lázaro Ramos e Wagner Moura de novo!?”, eis que eles vêm te surpreender com caracterizações de um naturalismo assombroso e de comunicação direta com o público. Morais ou imorais, é de primeira que se gosta desses personagens. E Alice Braga, em composição física e entrega estimulantes, completa o trio.
De modo análogo e completamente diverso, esse é um filme que conversa com o almodovariano “Fale Com Ela”, na medida em que é sobre a relação (não sexual) entre dois homens. Relação de amor e rugas na mesma potência. A prostituta que vêm tumultuar a questão fecha esse quadro, pintado com tintas fortes, das navalhas do desejo.
Se “Cidade Baixa” é uma disputa, “Cinema, Aspirinas e Urubus” é um compartilhar. Olhar generoso no conhecer aos poucos entre dois personagens tão distantes quanto próximos. O alemão foragido da II Guerra e o pernambucano que quer fugir para o Rio de Janeiro, homens com corpo e alma em trânsito, buscam, juntos, uma salvação, uma outra realidade possível.
Outra história da relação (não sexual) entre dois homens, operando, porém, em chave bastante distinta. Aqui não há transpiração, nem sangue. Lágrimas, talvez na platéia. Há, antes, contemplação. Mas nunca um olhar esteticamente vazio. O sertão fotograficamente adulterado de Marcelo Gomes quer chegar no âmago, quer ser claudicante e árido, mas com poesia sincera.
João Miguel, uma explosão de talento, foge de estereótipos, foge do picaresco, como, no mais, todo o resto do filme – esse não é “O Auto da Compadecida” -, e compõe um sertanejo transbordando de dignidade e verossimilhança.
Filme de generosidade, de descoberta, filme de jornada. Filme que busca o outro, estende a mão, quer conhecer e compreender. Filme que quer compartilhar interioridades – de seres rodeados por um exterior pra lá de castigado e castigador. Filme comovente, belo, belo.
Muitos filmes dignos de nota. Quatro deles, atualmente em cartaz, associam-se, conversam, instigam em dupla.
1.
“Cidade Baixa” e “Cinema, Aspirinas e Urubus” têm sido saudados como um sopro renovador da cinematografia nacional, como nossa reserva de qualidade num ano até então bastante desanimador. Mais: são recebidos como sopros de vida e faíscas autorais num cenário de pasteurização desalentadora.
E nada disso é à toa nem mentira (embora todas as verdades possam ser relativizadas).
A definição é tão vasta quanto precisa: são filmes com alma. Empobrecer essa afirmação é fácil, pois ela é, em si, simples, nada objetiva. Mas “filmes com alma” são indefectíveis. Ao vermos, sabemos, sentimos – ainda que de forma diferente, ou até com filmes diferentes.
Há anseios, desejos, força e energia criativa. Há um sentimento de mundo, ou um sentimento (ou muitos deles) perante o mundo, compartilhado por diretor, atores, técnicos. Chegando mais ou menos perto do alvo pretendido, o caminho é o fim em si, pois feito com gana, com vontade de acerto. Não se está fazendo cinema burocrático, ou com uma preocupação simplista de simplesmente “entreter” (porque o público pensa, sim!).
As imagens que vemos aqui são fruto de anos de trabalho, de obstinação, da pulsão verdadeira de fazer cinema – e um cinema que, em sua essência, pode ser considerado pouco “comercial”, o que torna as dificuldades de viabilização ainda maiores. A história narrada, a linguagem, as opções estéticas, esses dois filmes, enfim, são cinema feito de dentro para fora.
Porque não há pressões “de mercado”. Sergio Machado e Marcelo Gomes, os diretores de “Cidade” e “Aspirinas”, respectivamente, não estão filmando para ganhar dinheiro, não estão filmando pensando quais fatias do público podem ou não comprar o ingresso, não estão filmando sob encomenda de quem quer que seja. Filmam com amor ao que fazem e na tentativa de compartilhar uma história, um sentimento, um conflito, um encontro. Filmam, assim (mas nem só por isso), filmes bons. E o resto é consequência,
“Cidade Baixa” é um filme físico. Três atores, um triângulo amoroso, sangue e lágrimas. Não existe uma trama complexa. O conflito são os sentimentos que brotam dos personagens: o amor dividido, o amor sublimado, o ciúme, a competição, orgulho e sofrimento. A câmera está perto das transpirações, dos olhares, do desejo. E é isso. Alguns podem achar pouco. E alguns entregam-se e deixam-se envolver. Fato é que é bom.
E quando você começa a pensar “ah, não! Lázaro Ramos e Wagner Moura de novo!?”, eis que eles vêm te surpreender com caracterizações de um naturalismo assombroso e de comunicação direta com o público. Morais ou imorais, é de primeira que se gosta desses personagens. E Alice Braga, em composição física e entrega estimulantes, completa o trio.
De modo análogo e completamente diverso, esse é um filme que conversa com o almodovariano “Fale Com Ela”, na medida em que é sobre a relação (não sexual) entre dois homens. Relação de amor e rugas na mesma potência. A prostituta que vêm tumultuar a questão fecha esse quadro, pintado com tintas fortes, das navalhas do desejo.
Se “Cidade Baixa” é uma disputa, “Cinema, Aspirinas e Urubus” é um compartilhar. Olhar generoso no conhecer aos poucos entre dois personagens tão distantes quanto próximos. O alemão foragido da II Guerra e o pernambucano que quer fugir para o Rio de Janeiro, homens com corpo e alma em trânsito, buscam, juntos, uma salvação, uma outra realidade possível.
Outra história da relação (não sexual) entre dois homens, operando, porém, em chave bastante distinta. Aqui não há transpiração, nem sangue. Lágrimas, talvez na platéia. Há, antes, contemplação. Mas nunca um olhar esteticamente vazio. O sertão fotograficamente adulterado de Marcelo Gomes quer chegar no âmago, quer ser claudicante e árido, mas com poesia sincera.
João Miguel, uma explosão de talento, foge de estereótipos, foge do picaresco, como, no mais, todo o resto do filme – esse não é “O Auto da Compadecida” -, e compõe um sertanejo transbordando de dignidade e verossimilhança.
Filme de generosidade, de descoberta, filme de jornada. Filme que busca o outro, estende a mão, quer conhecer e compreender. Filme que quer compartilhar interioridades – de seres rodeados por um exterior pra lá de castigado e castigador. Filme comovente, belo, belo.
7.11.05
Mostra - premios
Esse blog concede a si mesmo, agora, o direito de premiar os filmes da 29ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Esclarece-se, de imediato, que estavam em competição somente os filmes assistidos pelo signatário destas letras, que, caso haja interesse, encontram-se esmiuçados nas páginas imediatamente anteriores.
PRÊMIO DO JÚRI
Pavão
PRÊMIO DO PÚBLICO
Eu, Você e Todos Nós
PRÊMIO DA CRÍTICA
A Criança
PRÊMIO REVELAÇÃO
O Iceberg
TROFÉU OBRA-PRIMA AFETIVA
2046
MENÇÕES HONROSAS
- Caché
- Estrela Solitária
- Traficante
PRÊMIO DO JÚRI
Pavão
PRÊMIO DO PÚBLICO
Eu, Você e Todos Nós
PRÊMIO DA CRÍTICA
A Criança
PRÊMIO REVELAÇÃO
O Iceberg
TROFÉU OBRA-PRIMA AFETIVA
2046
MENÇÕES HONROSAS
- Caché
- Estrela Solitária
- Traficante
Mostra - arestas
GOOD NIGHT, AND GOOD LUCK (EUA)
George Clooney já misturara um aguçado senso estético com vigor narrativo e temperos intelectuais na trama de "Confissões de uma Mente Perigosa". Neste seu segundo trabalho como diretor, deixa de lado algumas das (boas) acrobacias que fazia no filme anterior e assenta-se em uma austeridade pungente de forma e conteúdo. Uma fotografia sobriamente esplêndida enquadra uma história de tensas e estimulantes escolhas morais, atuada por um elenco perfeito - com destaque para o protagonista David Strathairn.
O MUNDO (China)
Narrativa árdua dentro de uma temática fascinante. A câmera elegante e precisa passeia por um cenário que, por si, é a essência do filme. Intelectualmente admirável.
George Clooney já misturara um aguçado senso estético com vigor narrativo e temperos intelectuais na trama de "Confissões de uma Mente Perigosa". Neste seu segundo trabalho como diretor, deixa de lado algumas das (boas) acrobacias que fazia no filme anterior e assenta-se em uma austeridade pungente de forma e conteúdo. Uma fotografia sobriamente esplêndida enquadra uma história de tensas e estimulantes escolhas morais, atuada por um elenco perfeito - com destaque para o protagonista David Strathairn.
O MUNDO (China)
Narrativa árdua dentro de uma temática fascinante. A câmera elegante e precisa passeia por um cenário que, por si, é a essência do filme. Intelectualmente admirável.
4.11.05
Mostra - ultimo dia
03/11
BATALLA EN EL CIELO (França/ México/ Alemanha/ Bélgica)
...
EM DIREÇÃO AO SUL (França/ Canadá)
De Laurent Cantet, diretor do coeso e excelente "A Agenda", esse "Em Direção ao Sul" é filme com inúmeras vontades e intenções, mas confuso e indeciso no caminho até elas. Nunca é ruim, mas igualmente não se concretiza em suas potencialidades. Entre a frustração amorosa, o escapismo sexual, o caos social do Haiti, o racismo e diversos outros temas abordados de raspão, não há tempo nem mesmo para as personagens se desenvolverem plenamente. Uma pena.
De 1 a 5, 2 e meio.
BATALLA EN EL CIELO (França/ México/ Alemanha/ Bélgica)
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EM DIREÇÃO AO SUL (França/ Canadá)
De Laurent Cantet, diretor do coeso e excelente "A Agenda", esse "Em Direção ao Sul" é filme com inúmeras vontades e intenções, mas confuso e indeciso no caminho até elas. Nunca é ruim, mas igualmente não se concretiza em suas potencialidades. Entre a frustração amorosa, o escapismo sexual, o caos social do Haiti, o racismo e diversos outros temas abordados de raspão, não há tempo nem mesmo para as personagens se desenvolverem plenamente. Uma pena.
De 1 a 5, 2 e meio.
Mostra - dia 10
02/11
2046 (China/ França)
É Wong Kar-Wai, o que por si já diz tudo. É mais um deslumbramento sensitivo, em história mais uma vez de amores sublimados, impossibilidades e felicidade transitória e fugidia. Idéias e imagens poéticas são enquadradas por uma câmera que adora movimentos sutis, ângulos cheio de profundidade espacial e velocidade desacelerada. Mulheres lindíssimas e um ator, Tony Leung, que sabe dizer tudo sem qualquer palavra - o que não significa que as frases em off tenham sido dispensadas. Enfim, uma teia de beleza e encantamento, que dói, maravilha, preenche o espírito. Não é o único tipo de cinema que há, mas não pode haver cinema mais perfeito do que esse.
De 1 a 5, 5.
CARREIRAS (Brasil)
Domingos Oliveira, desde "Feminices" adotou um tipo de cinema despretensioso e rápido - de se fazer e consumir. Aqui, infelizmente, algo nesse método alcançou o descuido. Esse filme-monólogo, de formato narrativo surpreendente, é levado por um ótimo texto e uma ótima atriz, Priscila Rozenbaum. O show fica garantido, mas é uma pena que se faça sentir uma falta de cuidado imperdoável com alguns aspectos da fotografia, com parte do elenco de apoio, com a edição de som. Não fosse pela despretensão que vira desleixo, seria um filme e tanto. Com ela, é inteligente e divertido, mas com ressalvas.
De 1 a 5, 3 e meio.
NUVENS CARREGADAS (França/ Taiwan)
Tsai Ming-Liang é cineasta de tempo vazios cheios de vida e de narrativas introspectivas. "Nuvens Carregadas" agrega a um estilo que já era reconhecível números musicais espalhafatosos e um humor insuspeito. Por hora, requer uma segunda olhada.
2046 (China/ França)
É Wong Kar-Wai, o que por si já diz tudo. É mais um deslumbramento sensitivo, em história mais uma vez de amores sublimados, impossibilidades e felicidade transitória e fugidia. Idéias e imagens poéticas são enquadradas por uma câmera que adora movimentos sutis, ângulos cheio de profundidade espacial e velocidade desacelerada. Mulheres lindíssimas e um ator, Tony Leung, que sabe dizer tudo sem qualquer palavra - o que não significa que as frases em off tenham sido dispensadas. Enfim, uma teia de beleza e encantamento, que dói, maravilha, preenche o espírito. Não é o único tipo de cinema que há, mas não pode haver cinema mais perfeito do que esse.
De 1 a 5, 5.
CARREIRAS (Brasil)
Domingos Oliveira, desde "Feminices" adotou um tipo de cinema despretensioso e rápido - de se fazer e consumir. Aqui, infelizmente, algo nesse método alcançou o descuido. Esse filme-monólogo, de formato narrativo surpreendente, é levado por um ótimo texto e uma ótima atriz, Priscila Rozenbaum. O show fica garantido, mas é uma pena que se faça sentir uma falta de cuidado imperdoável com alguns aspectos da fotografia, com parte do elenco de apoio, com a edição de som. Não fosse pela despretensão que vira desleixo, seria um filme e tanto. Com ela, é inteligente e divertido, mas com ressalvas.
De 1 a 5, 3 e meio.
NUVENS CARREGADAS (França/ Taiwan)
Tsai Ming-Liang é cineasta de tempo vazios cheios de vida e de narrativas introspectivas. "Nuvens Carregadas" agrega a um estilo que já era reconhecível números musicais espalhafatosos e um humor insuspeito. Por hora, requer uma segunda olhada.
2.11.05
Mostra - dia 9
01/11
MONGOLIAN PING PONG (China)
Nas deslumbrantes pradarias da Mongólia desenrola-se esse belo e contemplativo filme. Com um fiapo de trama - o que o aproxima ao cinema iraniano "de exportação" da última década - a atenção e a vontade de olhar se fazem largamente necessárias. Mas em seu passeio por uma cultura distante e em sua graciosidade narrativa há recompensas.
De 1 a 5, 3 e meio.
NINE LIVES (EUA)
Rodrigo Garcia quase faz uma parte 2 de "Coisas que você pode dizer só de olhar para ela", mas, apesar da estrutura episódica e de muitas das atrizes se repetirem, o diretor escapa desse alçapão por dois motivos que imediatamente se destacam. Narrativamente, em vez de contar pequenas história com começo, meio e fim, Garcia opta por instantâneos que, em sua intensidade, de forma melhor ou pior, dizem o essencial sobre as personagens em questão e suas vidas presentes. Em termos de linguagem, essa idéia é reforçada pela estética impecável, em planos-sequência. Todas as cenas do filme aparecem sem cortes, coesas e bem resolvidas em si, guiadas por uma steady-cam precisa. Com altos e baixos, é quase como se assistíssemos a diversos curtas-metragens, com discretos pontos de intersecção entre eles.
De 1 a 5, 3 e meio.
INFERNO (França/ Itália/ Bélgica/ Japão)
O espectador, aqui, é vítima fatal de suas próprias expectativas, por se tratar da segunda parte de uma trilogia idealizada por Kieslowski. Se Tom Tykwer filmou "Paraíso" com uma contenção para lá de respeitosa e reverente à obra do mestre, Danis Tanovic escancarou, sem cerimônia, a porta da delicadeza. Tudo neste "Inferno" parece exagerado. A trama não encontra sua respiração, a música engrandece o nada e a decupagem em muitos momentos simplesmente se faz sentir pela pobreza. Mas o pior mesmo é constatar a absoluta ausência de espiritualidade e simbolismos que transbordavam dos personagens para as imagens nos filmes de Kieslowski. Sim, a trama que se engendra é ótima. Mas é mal levada. Sim, este não é um filme de Kieslowski e sim de Danis Tanovic e sim, talvez seja um enorme erro esperar uma coisa onde se sabe que há outra. Mas, nesse caso, o sentimento é, alem de burro, plenamente inevitável - assim como a decepção.
De 1 a 5, 2.
POR DENTRO DA GARGANTA PROFUNDA (EUA)
Divertidíssimo documentário que sabe fazer muito bom uso de seu assunto e embalá-lo em um formato palatável. Superficial nas questões sérias pelas quais passeia, mas ainda assim um muito bem feito retrato do fenômeno pop/comportamental/social/referencial que foi o filme pornô "Garganta Profunda".
De 1 a 5, 3.
MONGOLIAN PING PONG (China)
Nas deslumbrantes pradarias da Mongólia desenrola-se esse belo e contemplativo filme. Com um fiapo de trama - o que o aproxima ao cinema iraniano "de exportação" da última década - a atenção e a vontade de olhar se fazem largamente necessárias. Mas em seu passeio por uma cultura distante e em sua graciosidade narrativa há recompensas.
De 1 a 5, 3 e meio.
NINE LIVES (EUA)
Rodrigo Garcia quase faz uma parte 2 de "Coisas que você pode dizer só de olhar para ela", mas, apesar da estrutura episódica e de muitas das atrizes se repetirem, o diretor escapa desse alçapão por dois motivos que imediatamente se destacam. Narrativamente, em vez de contar pequenas história com começo, meio e fim, Garcia opta por instantâneos que, em sua intensidade, de forma melhor ou pior, dizem o essencial sobre as personagens em questão e suas vidas presentes. Em termos de linguagem, essa idéia é reforçada pela estética impecável, em planos-sequência. Todas as cenas do filme aparecem sem cortes, coesas e bem resolvidas em si, guiadas por uma steady-cam precisa. Com altos e baixos, é quase como se assistíssemos a diversos curtas-metragens, com discretos pontos de intersecção entre eles.
De 1 a 5, 3 e meio.
INFERNO (França/ Itália/ Bélgica/ Japão)
O espectador, aqui, é vítima fatal de suas próprias expectativas, por se tratar da segunda parte de uma trilogia idealizada por Kieslowski. Se Tom Tykwer filmou "Paraíso" com uma contenção para lá de respeitosa e reverente à obra do mestre, Danis Tanovic escancarou, sem cerimônia, a porta da delicadeza. Tudo neste "Inferno" parece exagerado. A trama não encontra sua respiração, a música engrandece o nada e a decupagem em muitos momentos simplesmente se faz sentir pela pobreza. Mas o pior mesmo é constatar a absoluta ausência de espiritualidade e simbolismos que transbordavam dos personagens para as imagens nos filmes de Kieslowski. Sim, a trama que se engendra é ótima. Mas é mal levada. Sim, este não é um filme de Kieslowski e sim de Danis Tanovic e sim, talvez seja um enorme erro esperar uma coisa onde se sabe que há outra. Mas, nesse caso, o sentimento é, alem de burro, plenamente inevitável - assim como a decepção.
De 1 a 5, 2.
POR DENTRO DA GARGANTA PROFUNDA (EUA)
Divertidíssimo documentário que sabe fazer muito bom uso de seu assunto e embalá-lo em um formato palatável. Superficial nas questões sérias pelas quais passeia, mas ainda assim um muito bem feito retrato do fenômeno pop/comportamental/social/referencial que foi o filme pornô "Garganta Profunda".
De 1 a 5, 3.
Mostra - dia 8
31/10
HUMILHAÇÃO (Japão)
Filme de linguagem crua expondo realidade cruel da sociedade japonesa. Peça de câmara, competente em sua ambição.
De 1 a 5, 3.
PAVÃO (China/ Taiwan)
Maravilhosa crônica da juventude. Nessa que sabe ser uma singela saga familiar, acompanhando os anos adolescentes de três jovens irmãos na China de 30 anos atrás, resplandece a sinceridade dramática, o naturalismo comovente das atuações, a exploração perfeita do espaço e dos pequenos porém determinantes acontecimentos sobre os quais se tece a trama. E já que o cinema oriental quando enquadra bem não deixa espaço para concorrência, tudo é visto sob as lentes precisas de uma fotografia esplendorosa. No início da última semana de Mostra, uma gratíssima surpresa.
De 1 a 5, 5.
HUMILHAÇÃO (Japão)
Filme de linguagem crua expondo realidade cruel da sociedade japonesa. Peça de câmara, competente em sua ambição.
De 1 a 5, 3.
PAVÃO (China/ Taiwan)
Maravilhosa crônica da juventude. Nessa que sabe ser uma singela saga familiar, acompanhando os anos adolescentes de três jovens irmãos na China de 30 anos atrás, resplandece a sinceridade dramática, o naturalismo comovente das atuações, a exploração perfeita do espaço e dos pequenos porém determinantes acontecimentos sobre os quais se tece a trama. E já que o cinema oriental quando enquadra bem não deixa espaço para concorrência, tudo é visto sob as lentes precisas de uma fotografia esplendorosa. No início da última semana de Mostra, uma gratíssima surpresa.
De 1 a 5, 5.
Mostra - dia 7
30/10
OS SETE AFLUENTES DO RIO OTA
Não, não se trata de uma versão cinematográfica da peça. Nesse que seria o sétimo dia de Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, foi concedida um pausa aos filmes. Pelo teatro.
Nessa que foi minha quarta incursão pela epopéia de Robert Lepage, as 5 horas de espetáculo ainda se provam vigorosas e emocionates. A dramaturgia é impecável e atende plenamente à grandiosidade simbólica e humana de sua ambição. O jogo cênico e a beleza plástica igualmente vibram e maravilham. Caco Ciocler e Maria Luisa Mendonça são um assombro.
"Os Sete Afluentes do Rio Ota" sempre foi, e continua sendo, um espetáculo deslumbrante e enriquecedor. Teatralmente histórico. Sorte de quem pode vê-lo e desfrutá-lo.
OS SETE AFLUENTES DO RIO OTA
Não, não se trata de uma versão cinematográfica da peça. Nesse que seria o sétimo dia de Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, foi concedida um pausa aos filmes. Pelo teatro.
Nessa que foi minha quarta incursão pela epopéia de Robert Lepage, as 5 horas de espetáculo ainda se provam vigorosas e emocionates. A dramaturgia é impecável e atende plenamente à grandiosidade simbólica e humana de sua ambição. O jogo cênico e a beleza plástica igualmente vibram e maravilham. Caco Ciocler e Maria Luisa Mendonça são um assombro.
"Os Sete Afluentes do Rio Ota" sempre foi, e continua sendo, um espetáculo deslumbrante e enriquecedor. Teatralmente histórico. Sorte de quem pode vê-lo e desfrutá-lo.
30.10.05
Mostra - dia 6
29/10
TRAFICANTE (Hungria)
Um filme quase estonteante. Fotografia milimetricamente perfeita - com câmera quase que ininterruptamente em movimentos lentos e circulares - enquadra a via-crúcis de um traficante de drogas, sob permanente tensão e em uma atmosfera das mais sombrias. Uso perfeito do som, dos silêncios e dos tempos dramáticos. Seria magnífico não fosse tão prolixo. Ainda assim, é cinemaço.
De 1 a 5, 4 e meio.
BLOOD AND BONES (Japão)
Épico que oscila entre o pungente e o novelesco, mas que se ancora em um personagem central dúbio e fascinante - interpretado com precisão por Takeshi Kitano. Saga de uma família em duas horas e vinte minutos só de desgraças, com algum pequeno humor.
De 1 a 5, 3.
A CRIANÇA (Belgica/ França)
Os irmãos Dardenne não dão trégua. Depois de "O Filho", este "A Criança" é mais um retrato de vidas infelizes e desvirtuadas de seres humanos que, ao contrário do que parece crer um Todd Solondz, alteram-se a partir das circunstâncias à sua volta, não simplesmente sendo podres por natureza. Transpira-se realismo e a humanidade goteja da tela, ainda mais porque os Dardenne aplicam à trama uma gramática visual em perfeita comunhão com o conflito - a ética e a estética encontram-se, uma vez mais.
De 1 a 5, 5.
TRAFICANTE (Hungria)
Um filme quase estonteante. Fotografia milimetricamente perfeita - com câmera quase que ininterruptamente em movimentos lentos e circulares - enquadra a via-crúcis de um traficante de drogas, sob permanente tensão e em uma atmosfera das mais sombrias. Uso perfeito do som, dos silêncios e dos tempos dramáticos. Seria magnífico não fosse tão prolixo. Ainda assim, é cinemaço.
De 1 a 5, 4 e meio.
BLOOD AND BONES (Japão)
Épico que oscila entre o pungente e o novelesco, mas que se ancora em um personagem central dúbio e fascinante - interpretado com precisão por Takeshi Kitano. Saga de uma família em duas horas e vinte minutos só de desgraças, com algum pequeno humor.
De 1 a 5, 3.
A CRIANÇA (Belgica/ França)
Os irmãos Dardenne não dão trégua. Depois de "O Filho", este "A Criança" é mais um retrato de vidas infelizes e desvirtuadas de seres humanos que, ao contrário do que parece crer um Todd Solondz, alteram-se a partir das circunstâncias à sua volta, não simplesmente sendo podres por natureza. Transpira-se realismo e a humanidade goteja da tela, ainda mais porque os Dardenne aplicam à trama uma gramática visual em perfeita comunhão com o conflito - a ética e a estética encontram-se, uma vez mais.
De 1 a 5, 5.
29.10.05
Mostra - dia 5
28/10
DUMPLINGS (Hong Kong/ China)
Inusitado, no mínimo, em sua primeira meia hora. No resto do tempo, durmi.
O que me impede de julgar.
CACHÉ (França/ Áustria/ Alemanha)
De um naturalismo assustador emerge uma trama misteriosa em sua banalidade - ou banal em seu mistério. A tensão atingida por Michael Haneke é impressionante, pois sem truques cinematográficos. As atuações, o enredo e a fotografia direta e pontual levam adiante de forma palpitante essa investigação sobre os esconderijos internos do homem.
De 1 a 5, 4.
DUMPLINGS (Hong Kong/ China)
Inusitado, no mínimo, em sua primeira meia hora. No resto do tempo, durmi.
O que me impede de julgar.
CACHÉ (França/ Áustria/ Alemanha)
De um naturalismo assustador emerge uma trama misteriosa em sua banalidade - ou banal em seu mistério. A tensão atingida por Michael Haneke é impressionante, pois sem truques cinematográficos. As atuações, o enredo e a fotografia direta e pontual levam adiante de forma palpitante essa investigação sobre os esconderijos internos do homem.
De 1 a 5, 4.
Mostra - dia 4
27/10
EU, VOCÊ E TODOS NÓS (EUA)
Uma obra-prima da simplicidade. Personagens maravilhosamente construídos - tanto em roteiro quanto em atuação - revelam aos poucos, em pequenas, sutis e delicadas situações, uma força dramática que nasce de onde menos se espera. Da ausência de grandes conflitos vai-se construindo uma trama bela e saborosa, que oferece leves e inestimáveis gentilezas à inteligência e aos olhos do espectador.
De 1 a 5, 5.
ESTRELA SOLITÁRIA (EUA)
Wim Wenders em todo seu vigor narrativo e existencial. Uma história que mistura arquétipos, fragilidades, vida e representação em um faroeste dos tempos presentes. Não é perfeito, mas é denso e recompensador.
De 1 a 5, 4 e meio.
PATO (EUA)
Nos primeiros 10 minutos, deu vontade de dormir. Isso feito, deu vontade de sair da sessão. Isso feito, não há argumentos para julgar.
CRIME DELICADO (Brasil)
Estarrecedor. De um rigor de construção e apreensão impressionantes, este novo filme de Beto Brant desnorteia e cala fundo, para o bem ou para o mal.
É preciso tempo para compreendê-lo (ou não).
EU, VOCÊ E TODOS NÓS (EUA)
Uma obra-prima da simplicidade. Personagens maravilhosamente construídos - tanto em roteiro quanto em atuação - revelam aos poucos, em pequenas, sutis e delicadas situações, uma força dramática que nasce de onde menos se espera. Da ausência de grandes conflitos vai-se construindo uma trama bela e saborosa, que oferece leves e inestimáveis gentilezas à inteligência e aos olhos do espectador.
De 1 a 5, 5.
ESTRELA SOLITÁRIA (EUA)
Wim Wenders em todo seu vigor narrativo e existencial. Uma história que mistura arquétipos, fragilidades, vida e representação em um faroeste dos tempos presentes. Não é perfeito, mas é denso e recompensador.
De 1 a 5, 4 e meio.
PATO (EUA)
Nos primeiros 10 minutos, deu vontade de dormir. Isso feito, deu vontade de sair da sessão. Isso feito, não há argumentos para julgar.
CRIME DELICADO (Brasil)
Estarrecedor. De um rigor de construção e apreensão impressionantes, este novo filme de Beto Brant desnorteia e cala fundo, para o bem ou para o mal.
É preciso tempo para compreendê-lo (ou não).
Mostra - dia 3
26/10
SELVA (Hungria)
Experiência radical de cinema, válida por si só. 7 cenas distintas e independentes, todas filmadas em planos bastante fechados e com o mínimo de cortes - em geral, um diálogo. Há momentos de dramaturgia pungente, como há outros cansativos. No todo, o conteúdo nem sempre se sustenta, mas a forma, apesar de não ser genial nem tampouco completamente inovadora, vale uma olhada.
De 1 a 5, 3 e meio.
BYE-BYE BLACKBIRD (Luxemburgo/ Inglaterra)
Filme de produção pseudo-suntuosa e de dramaturgia completamente desencontrada. Personagens indecisos e situações dramáticas pífias. Sono.
De 1 a 5, 1.
ESPERANDO AS NUVENS (França/ Alemanha/ Turquia)
Filmado em belas paisagens turcas, é filme honesto, apesar de cambalear. Aponta mais de um caminho e termina no mais fácil.
De 1 a 5, 2.
PALINDROMES (EUA)
Pior filme do diretor Todd Solondz. As piadas, apesar de engraçadíssimas, são nazistas. Mas ainda que se releve esse fato - o que não é difícil, no contexto - a "fábula" proposta dificilmente caminha poucos passos além de sua própria pretensão. O retrato da humanidade como causa perdida, e da nação americana como melhor exemplo dessa "ineficácia", pouco vai além do gratuito. Sobra quase nada, tanto em ética quanto em estética.
De 1 a 5, 2.
SELVA (Hungria)
Experiência radical de cinema, válida por si só. 7 cenas distintas e independentes, todas filmadas em planos bastante fechados e com o mínimo de cortes - em geral, um diálogo. Há momentos de dramaturgia pungente, como há outros cansativos. No todo, o conteúdo nem sempre se sustenta, mas a forma, apesar de não ser genial nem tampouco completamente inovadora, vale uma olhada.
De 1 a 5, 3 e meio.
BYE-BYE BLACKBIRD (Luxemburgo/ Inglaterra)
Filme de produção pseudo-suntuosa e de dramaturgia completamente desencontrada. Personagens indecisos e situações dramáticas pífias. Sono.
De 1 a 5, 1.
ESPERANDO AS NUVENS (França/ Alemanha/ Turquia)
Filmado em belas paisagens turcas, é filme honesto, apesar de cambalear. Aponta mais de um caminho e termina no mais fácil.
De 1 a 5, 2.
PALINDROMES (EUA)
Pior filme do diretor Todd Solondz. As piadas, apesar de engraçadíssimas, são nazistas. Mas ainda que se releve esse fato - o que não é difícil, no contexto - a "fábula" proposta dificilmente caminha poucos passos além de sua própria pretensão. O retrato da humanidade como causa perdida, e da nação americana como melhor exemplo dessa "ineficácia", pouco vai além do gratuito. Sobra quase nada, tanto em ética quanto em estética.
De 1 a 5, 2.
Mostra - dia 2
25/10
SOMETHING LIKE HAPPINESS (República Tcheca/ Alemanha)
Sensível drama familiar e social em uma República Tcheca na qual a vida não é das mais fáceis. História de esperança e fardo, contada com honestidade.
De 1 a 5, 3.
CHINAMAM (Dinamarca)
Comédia dramática sobre diferenças culturais e amores inesperados. Bem levada, apesar de sua absoluta previsibilidade. De qualquer forma, assiste-se sem prejuízo.
De 1 a 5, 2 e meio.
O ICEBERG (Bélgica)
Jacques Tati sem a genialidade. Uma vigorosa surpresa, esse filme de enormes silêncios e divertidíssimas gags visuais faz perfeito uso do enquadramento e da composição cenográfica para construir uma comédia amalucada e deliciosa. Fotografia, direção de arte e elenco impecáveis.
De 1 a 5, 4.
SOMETHING LIKE HAPPINESS (República Tcheca/ Alemanha)
Sensível drama familiar e social em uma República Tcheca na qual a vida não é das mais fáceis. História de esperança e fardo, contada com honestidade.
De 1 a 5, 3.
CHINAMAM (Dinamarca)
Comédia dramática sobre diferenças culturais e amores inesperados. Bem levada, apesar de sua absoluta previsibilidade. De qualquer forma, assiste-se sem prejuízo.
De 1 a 5, 2 e meio.
O ICEBERG (Bélgica)
Jacques Tati sem a genialidade. Uma vigorosa surpresa, esse filme de enormes silêncios e divertidíssimas gags visuais faz perfeito uso do enquadramento e da composição cenográfica para construir uma comédia amalucada e deliciosa. Fotografia, direção de arte e elenco impecáveis.
De 1 a 5, 4.
Mostra - dia 1
Eis um diário (atrasado) da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
24/10
De volta do Rio, só tempo para um filme:
TODOS CONTRA ZUCKER (Alemanha)
Divertido, bastante divertido. Comédia irresponsável que foca tradições e ortodoxias religiosas, mais especificamente judaicas. Tem falhas, mas garate as risadas.
Como pede a cédula de votação da Mostra, de 1 a 5, 2 e meio.
24/10
De volta do Rio, só tempo para um filme:
TODOS CONTRA ZUCKER (Alemanha)
Divertido, bastante divertido. Comédia irresponsável que foca tradições e ortodoxias religiosas, mais especificamente judaicas. Tem falhas, mas garate as risadas.
Como pede a cédula de votação da Mostra, de 1 a 5, 2 e meio.
26.10.05
tim
Entre 21 e 23/10, no Rio de Janeiro, Tim Festival.
Espaço infinitamente melhor do que em SP, com tendas e pessoas espalhadas pelo belíssimo cenário do MAM carioca, o festival teve muita gente, muito calor, muito ar-condicionado gelado, muita bebida (e comida) cara, algum atraso, uma boa organização geral, bastante liberdade (homo)sexual e música.
Um show previsivelmente incrível dos Strokes, um show surpreendente, arrebatador e incendiário do Arcade Fire, o show mais fofo do mundo, pelos Kings of Convenience, e uma performance linda de Vanessa da Mata.
O resto foi o resto.
Ah, teve também ótima companhia - já que sem ela nada teria graça.
Espaço infinitamente melhor do que em SP, com tendas e pessoas espalhadas pelo belíssimo cenário do MAM carioca, o festival teve muita gente, muito calor, muito ar-condicionado gelado, muita bebida (e comida) cara, algum atraso, uma boa organização geral, bastante liberdade (homo)sexual e música.
Um show previsivelmente incrível dos Strokes, um show surpreendente, arrebatador e incendiário do Arcade Fire, o show mais fofo do mundo, pelos Kings of Convenience, e uma performance linda de Vanessa da Mata.
O resto foi o resto.
Ah, teve também ótima companhia - já que sem ela nada teria graça.
14.10.05
semanas
Tirando muitas semanas de atraso:
Vôo Noturno é uma bobagem. Inacreditável que tenha sido saudado como um suspense eficiente.
/
Hotel Ruanda é confuso na mesma medida em que é grafica e moralmente pesado. Dois bons atores em um filme que, se não é especialmente memorável por suas qualidades cinematográficas, ao menos o é em sua força panfletária.
/
Amor em Jogo são os irmãos Farelli mostrando que em todo coração cheio de piadas escatológicas há também alguma ternura.
/
A Bela do Palco é o que os franceses chamariam de um “divertimento”. Belo e fluído, com bom elenco, encontra tempo, ainda, para levantar questões pra lá de pertinentes sobre papéis sexuais - em termos sociais, politicos, pessoais e até mesmo sexuais.
/
A Luta Pela Esperança ao menos tem como qualidade não chegar ao ridículo de um Mente Brilhante. Ron Howard defende o seu, dessa vez, com mais uma história edificante que não esconde a que veio e não decepciona os cientes de suas intenções. Russel Crowe é sempre uma presença a se notar e, há de ser dito, o filme possui seus momentos de manipulação bem feita, deixando o espectador roendo as unhas de angústia. Mas é tão fácil de esquecer como é de ver.
/
Wallace & Grommit é uma animação visualmente esplendorosa e bastante divertida, mas não é genial como alguns esperavam que fosse.
/
Eros é Wong Kar Wai. Seu episódio, “A Mão”, pode ser considerado um bonus track de Amor à Flor da Pele, mas, como disse um amigo, qualquer bonus track de Amor à Flor da Pele só pode ser uma maravilha. Lindo de morrer (ou de viver?)
Vôo Noturno é uma bobagem. Inacreditável que tenha sido saudado como um suspense eficiente.
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Hotel Ruanda é confuso na mesma medida em que é grafica e moralmente pesado. Dois bons atores em um filme que, se não é especialmente memorável por suas qualidades cinematográficas, ao menos o é em sua força panfletária.
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Amor em Jogo são os irmãos Farelli mostrando que em todo coração cheio de piadas escatológicas há também alguma ternura.
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A Bela do Palco é o que os franceses chamariam de um “divertimento”. Belo e fluído, com bom elenco, encontra tempo, ainda, para levantar questões pra lá de pertinentes sobre papéis sexuais - em termos sociais, politicos, pessoais e até mesmo sexuais.
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A Luta Pela Esperança ao menos tem como qualidade não chegar ao ridículo de um Mente Brilhante. Ron Howard defende o seu, dessa vez, com mais uma história edificante que não esconde a que veio e não decepciona os cientes de suas intenções. Russel Crowe é sempre uma presença a se notar e, há de ser dito, o filme possui seus momentos de manipulação bem feita, deixando o espectador roendo as unhas de angústia. Mas é tão fácil de esquecer como é de ver.
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Wallace & Grommit é uma animação visualmente esplendorosa e bastante divertida, mas não é genial como alguns esperavam que fosse.
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Eros é Wong Kar Wai. Seu episódio, “A Mão”, pode ser considerado um bonus track de Amor à Flor da Pele, mas, como disse um amigo, qualquer bonus track de Amor à Flor da Pele só pode ser uma maravilha. Lindo de morrer (ou de viver?)
7.10.05
joão
O Festival do Rio 2005 seleciona “Alice”, entre outros 15 curtas-metragens, para a Premiére Brasil.
Muito alegre e paulista, vou ao Rio, para temporada de 4 dias.
No debate dos curtas-metragistas, o público pequeno de sempre, em se tratando de debates, porém atento. Finda a conversa, aproxima-se de mim João:
- Quando vocês falam “curta” e “longa”, qual a diferença?
Explico que se trata do tempo de duração dos filmes.
João, que ouvira a rigorosamente todos os debates que aconteciam na tenda do Festival, me diz que aquele que acabara de acontecer fora um dos que ele mais gostara.
Uma pessoa interrompe minha conversa com João para elogiar “Alice”. Agradeço, orgulhoso, e a pessoa logo se afasta. João prossegue:
- Porque eu sou uma pessoa que quando me elogiam, eu vejo aquilo como um incentivo pra eu melhorar sempre. Eu não sou desses que ficam se achando “por cima”, “o bom”, quando falam bem de mim. Eu acredito que a pessoa tem que sempre estar se aperfeiçoando naquilo que faz, sempre aprendendo.
E João não parou:
- Porque eu digo que agora sim o nosso cinema está bom. Os filmes passam no mundo todo, ganham prêmios.
Pergunto se ele assistira a algum filme do Festival. Ele responde que não, porque não dá tempo, não pode ausentar-se da Tenda onde acontecem os debates. Mas completa:
- Nas exibições de telão que tiveram aí pela cidade, recentemente, eu vi uns filmes que eu achei muito bons, que eu acho que conseguem tocar a gente. Eu vi “Guerra de Canudos”… vi também “Central do Brasil”… Vários, eu vi vários.
Digo a João para jamais parar de ver os filmes. E lamento o fato de ele não ter podido ver mais coisas no Festival para o qual trabalha.
João, técnico de som da Tenda, responsável por ajustar e regular os microfones e soltar a vinheta de abertura dos debates – tarefa que o faz não poder estar presente às sessões – termina nossa conversa:
- Porque eu sei que sou um cara que tem umas opiniões fortes.
E sorri, quase envergonhado por ter uma certeza sobre si mesmo.
Conversar com João pode ter sido uma das melhores coisas do Festival do Rio 2005.
PS: Quando perguntei por seu nome, não entendi se ele respondera "John" ou "João". Fiquei com a opção brasileira, sem, no entanto, descartar por completo a outra. No mais, peço perdão a João pela transcrição "de memória" de nossa conversa
Muito alegre e paulista, vou ao Rio, para temporada de 4 dias.
No debate dos curtas-metragistas, o público pequeno de sempre, em se tratando de debates, porém atento. Finda a conversa, aproxima-se de mim João:
- Quando vocês falam “curta” e “longa”, qual a diferença?
Explico que se trata do tempo de duração dos filmes.
João, que ouvira a rigorosamente todos os debates que aconteciam na tenda do Festival, me diz que aquele que acabara de acontecer fora um dos que ele mais gostara.
Uma pessoa interrompe minha conversa com João para elogiar “Alice”. Agradeço, orgulhoso, e a pessoa logo se afasta. João prossegue:
- Porque eu sou uma pessoa que quando me elogiam, eu vejo aquilo como um incentivo pra eu melhorar sempre. Eu não sou desses que ficam se achando “por cima”, “o bom”, quando falam bem de mim. Eu acredito que a pessoa tem que sempre estar se aperfeiçoando naquilo que faz, sempre aprendendo.
E João não parou:
- Porque eu digo que agora sim o nosso cinema está bom. Os filmes passam no mundo todo, ganham prêmios.
Pergunto se ele assistira a algum filme do Festival. Ele responde que não, porque não dá tempo, não pode ausentar-se da Tenda onde acontecem os debates. Mas completa:
- Nas exibições de telão que tiveram aí pela cidade, recentemente, eu vi uns filmes que eu achei muito bons, que eu acho que conseguem tocar a gente. Eu vi “Guerra de Canudos”… vi também “Central do Brasil”… Vários, eu vi vários.
Digo a João para jamais parar de ver os filmes. E lamento o fato de ele não ter podido ver mais coisas no Festival para o qual trabalha.
João, técnico de som da Tenda, responsável por ajustar e regular os microfones e soltar a vinheta de abertura dos debates – tarefa que o faz não poder estar presente às sessões – termina nossa conversa:
- Porque eu sei que sou um cara que tem umas opiniões fortes.
E sorri, quase envergonhado por ter uma certeza sobre si mesmo.
Conversar com João pode ter sido uma das melhores coisas do Festival do Rio 2005.
PS: Quando perguntei por seu nome, não entendi se ele respondera "John" ou "João". Fiquei com a opção brasileira, sem, no entanto, descartar por completo a outra. No mais, peço perdão a João pela transcrição "de memória" de nossa conversa
28.9.05
alaíde
O 3º Curta Santos me homenageia, por ser “local”, com exibição "fora de concurso", em sessão conjunta, de meus 3 curtas, "Ato II Cena 5", "Tudo o que é sólido pode derreter" e "Alice".
Em casa, muitos comparecimentos queridos e especiais. Alguns, no entanto, um pouquinho mais do que outros.
Alaíde, empregada doméstica, há 18 anos trabalhando em casa de minha avó:
- Ai, meu fio, eu nunca fui ao cinema, então eu vou a primeira vez pra ver você, né mesmo?
Sentada na platéia lotada por 300 pessoas, Alaíde, me disseram, achou que me veria na tela – mal-entendido logo desfeito.
Alaíde, seguramente com mais de 60 anos, analfabeta, foi, ontem, pela primeira vez a uma sala de exibição. Para assistir aos meus curtas-metragens.
É por isso que a gente faz cinema.
Em casa, muitos comparecimentos queridos e especiais. Alguns, no entanto, um pouquinho mais do que outros.
Alaíde, empregada doméstica, há 18 anos trabalhando em casa de minha avó:
- Ai, meu fio, eu nunca fui ao cinema, então eu vou a primeira vez pra ver você, né mesmo?
Sentada na platéia lotada por 300 pessoas, Alaíde, me disseram, achou que me veria na tela – mal-entendido logo desfeito.
Alaíde, seguramente com mais de 60 anos, analfabeta, foi, ontem, pela primeira vez a uma sala de exibição. Para assistir aos meus curtas-metragens.
É por isso que a gente faz cinema.
23.9.05
chegadas
"abre essa janela
primavera quer entrar..."
A primavera chega com Los Hermanos.
Literalmente.
primavera quer entrar..."
A primavera chega com Los Hermanos.
Literalmente.
22.9.05
quinta-feira
Fui ao show do Moby.
Mas o texto mais bacana, mais pessoal, mais enviesado e mais musical (embora não pareça) escrito sobre isso está AQUI.
Sem açúcar e com afeto, Pedro Alexandre Sanches está terrível!! Não perca.
Mas mãos no mouse, porque PAS escreve bastante e, embora recente, o post "Why Does My Soul...?" já está alguns muitos cliques pra baixo.
/
E amanhã e sábado tem finalzinho de "Decálogo" no Cinesesc.
Você conhece as insubstituíveis e sensacionais vantagens de morar em SP?
Então conheça-as. Elas estão logo ali, no Cinesesc, amanhã e sábado.
(E ao "Decálogo" certamente voltaremos mais tarde)
Mas o texto mais bacana, mais pessoal, mais enviesado e mais musical (embora não pareça) escrito sobre isso está AQUI.
Sem açúcar e com afeto, Pedro Alexandre Sanches está terrível!! Não perca.
Mas mãos no mouse, porque PAS escreve bastante e, embora recente, o post "Why Does My Soul...?" já está alguns muitos cliques pra baixo.
/
E amanhã e sábado tem finalzinho de "Decálogo" no Cinesesc.
Você conhece as insubstituíveis e sensacionais vantagens de morar em SP?
Então conheça-as. Elas estão logo ali, no Cinesesc, amanhã e sábado.
(E ao "Decálogo" certamente voltaremos mais tarde)
20.9.05
Moby (para dar uma pausa no cinema - ou falar dele falando de outras coisas)
Hoje eu vou ao show do Moby.
Até ano passado, conhecia o nome: “Moby”. Achava simpatico. Sabia que ele existia. Sabia que ele tinha feito lá um disco, chamado “Play” (que é um ótimo nome, porque múltiplo), que tinha vendido um montão ao redor do mundo.
Ok, ok. Mas era Moby lá, eu aqui.
Mas Moby entrou de verdade na minha vida por causa de “Os Sete Afluentes do Rio Ota”, espetáculo teatral que é deleite estético e logo se tornou uma paixão.
Mas “Os Sete Afluentes do Rio Ota” só existiram do jeito que existiram porque um dia houve “The Far Side of The Moon”, apresentada por Robert LePage ele mesmo, aqui em SP, no Carlton Arts (quando marcas de cigarro ainda podiam patrocinar eventos culturais).
E ambos vieram pelas mãos brasileiras de Monique Gardemberg, que um dia foi amiga de infância do meu pai, não tem idéia de quem eu seja, e que depois fez um filme que eu gosto bastante até mesmo em seus defeitos, que se chama “Benjamin”. (Ah, e ela sempre foi uma das cabeças do Free Jazz/ Tim Festival – alguém aí disse Belle & Sebastian, Libertines, Macy Gray, Pet Shop Boys???)
Que é adaptação de uma obra de Chico Buarque, meu verdadeiro pai.
Mas quando Maria Luisa Mendonça, um assombro, jogou cinzas no Rio Ota ao som de “Why Does My Heart Feel So Bad”, eu já estava tomado. Ganho. Vencido.
E vi “Rio Ota” ainda outras duas vezes, por causa de Simone Spoladore, por causa de “Alice”, por causa do teatro, por causa dos atores. (Atores? Mas desde quando eu comecei a amar atores? Desde Maria Alice Vergueiro?)
E daí comprei “Play”, porque queria ouvir e ouvir unicamente aquela música, e lembrar de Maria Luisa e do teatro e do cinema e da emoção e da música e das artes e lembrar porque mesmo era bom estar vivo no exato momento em que se está vivo.
(Será que Monique Gardemberg sabe de tanta participação dela em minha vida?)
Naturalmente, gostei de outras músicas de “Play”, mas Moby, o artista, pra mim ainda não dizia muita coisa.
Daí ele vinha pro Brasil. E daí, claro, tem hype. Mas quem liga pro hype??
Eu, às vezes. Nesse caso, fui tomado. Ganho. Vencido. Pelo hype.
E pelo amigo que me mostrou as músicas bonitas de “Hotel” e “18”. E pelo gosto crescente devotado ao careca “moderno” que fazia músicas computadorizadas mas tão bonitas e bacanas e contagiantes.
Hoje vou ao show do Moby. Por causa de quem mesmo?
De Monique Gardemberg, Robert LePage, Maria Luisa Mendonça, Chico Buarque, Simone Spoladore, Maria Alice Vergueiro, Lorenzo Giunta, Tatiana Fujimori, Daniel Ribeiro, tantas outras pessoas e até um pouquinho por causa do Moby também.
Sabe por quê? Porque a gente ama quando tudo se mistura (né, Pedro Alexandre?).
E porque o mundo dá voltas mesmo. Várias.
Até ano passado, conhecia o nome: “Moby”. Achava simpatico. Sabia que ele existia. Sabia que ele tinha feito lá um disco, chamado “Play” (que é um ótimo nome, porque múltiplo), que tinha vendido um montão ao redor do mundo.
Ok, ok. Mas era Moby lá, eu aqui.
Mas Moby entrou de verdade na minha vida por causa de “Os Sete Afluentes do Rio Ota”, espetáculo teatral que é deleite estético e logo se tornou uma paixão.
Mas “Os Sete Afluentes do Rio Ota” só existiram do jeito que existiram porque um dia houve “The Far Side of The Moon”, apresentada por Robert LePage ele mesmo, aqui em SP, no Carlton Arts (quando marcas de cigarro ainda podiam patrocinar eventos culturais).
E ambos vieram pelas mãos brasileiras de Monique Gardemberg, que um dia foi amiga de infância do meu pai, não tem idéia de quem eu seja, e que depois fez um filme que eu gosto bastante até mesmo em seus defeitos, que se chama “Benjamin”. (Ah, e ela sempre foi uma das cabeças do Free Jazz/ Tim Festival – alguém aí disse Belle & Sebastian, Libertines, Macy Gray, Pet Shop Boys???)
Que é adaptação de uma obra de Chico Buarque, meu verdadeiro pai.
Mas quando Maria Luisa Mendonça, um assombro, jogou cinzas no Rio Ota ao som de “Why Does My Heart Feel So Bad”, eu já estava tomado. Ganho. Vencido.
E vi “Rio Ota” ainda outras duas vezes, por causa de Simone Spoladore, por causa de “Alice”, por causa do teatro, por causa dos atores. (Atores? Mas desde quando eu comecei a amar atores? Desde Maria Alice Vergueiro?)
E daí comprei “Play”, porque queria ouvir e ouvir unicamente aquela música, e lembrar de Maria Luisa e do teatro e do cinema e da emoção e da música e das artes e lembrar porque mesmo era bom estar vivo no exato momento em que se está vivo.
(Será que Monique Gardemberg sabe de tanta participação dela em minha vida?)
Naturalmente, gostei de outras músicas de “Play”, mas Moby, o artista, pra mim ainda não dizia muita coisa.
Daí ele vinha pro Brasil. E daí, claro, tem hype. Mas quem liga pro hype??
Eu, às vezes. Nesse caso, fui tomado. Ganho. Vencido. Pelo hype.
E pelo amigo que me mostrou as músicas bonitas de “Hotel” e “18”. E pelo gosto crescente devotado ao careca “moderno” que fazia músicas computadorizadas mas tão bonitas e bacanas e contagiantes.
Hoje vou ao show do Moby. Por causa de quem mesmo?
De Monique Gardemberg, Robert LePage, Maria Luisa Mendonça, Chico Buarque, Simone Spoladore, Maria Alice Vergueiro, Lorenzo Giunta, Tatiana Fujimori, Daniel Ribeiro, tantas outras pessoas e até um pouquinho por causa do Moby também.
Sabe por quê? Porque a gente ama quando tudo se mistura (né, Pedro Alexandre?).
E porque o mundo dá voltas mesmo. Várias.
14.9.05
atualizaçoes
Os dois ou três leitores habituais (alô, alô, Bia!!) reclamam, sempre com razão, da falta de atualização.
Logo, vamos a elas.
:
O cinema sempre teve vocação para diversão de massa, assim como sempre teve vocação para arte. Melhor que ele se equilibre entre esses dois pólos, ainda que esse “equilíbrio” não seja lá dos mais equilibrados.
“Dois Filhos de Francisco” é um filme que mimetiza formas e fórmulas da grande tradição do cinema narrativo – para as massas. Dizem alguns que, fosse um filme americano, seria execrado pela nossa “crítica”, assim como o são os filmes estrangeiros mais, digamos, feitos dentro de determinados moldes.
Não, “Dois Filhos” não tem mesmo inovações, nem vôos “artísticos”, nem se incomoda em ser grande deleite estético, intelectual ou moral.
Mas, sabe do que mais? O filme é um grande deleite estético, intelectual e moral justamente por não querer ser nada disso. Ou talvez, por querer, mas pelo caminho mais óbvio e mais esquecido - o da objetividade narrativa simples.
A tacada mestra de Breno Silveira é a história que ele se dispõe a contar. E ele coloca tudo a serviço dela. Sua direção é irrepreensível por ser invisível. Não é necessário lembrar ao espectador que ele está diante de uma encenação – o fato de tudo acontecer e fluir com tanta naturalidade já é a demonstração concreta e suficiente de que a mise-en-scene está corretíssima.
E se o filme tem clichês, já que eles são quase indispensáveis em um “cinema padrão” como esse, grandes atores muito bem dirigidos driblam-nos com habilidade.
Ângelo Antônio nasceu para interpretar Seu Francisco.
E tem música (sertaneja, evidentemente) e tem choro e tudo o mais a que se tem direito. E sabe o que mais tem? Um olhar terno e “desenbarreirado” para um Brasil profundo, imenso, interior.
“Dois Filhos de Francisco” existe para quebrar preconceitos em amplas esferas.
Você tem prestado atenção em seu país (ainda que pela ótica “embelezada” do cinema”)? Então preste.
Você tem prestado atenção no outro, nos outros, em todos os outros? Você já parou pra prestar atenção em Zezé di Camargo e Luciano? Então pare. E preste.
Destrua pré-conceitos (que são invariavelmente estúpidos), reveja pós-conceitos e quebre barreiras. Saia cantando “É o amor”.
Vá ver “Dois Filhos de Francisco”. Antes que eu te leve.
/
“Amor em Jogo” são os irmãos Farrelly extravasando de vez o lado romântico que sempre existiu oculto sob a simples palhaçada e a escatologia. E é uma delícia.
/
É fácil ver em “Água Negra” o que é atraente, ou, antes, o que pode ter levado Walter Salles a querer filmar o roteiro. Mas é condescendência demais chamá-lo de bom.
Não há alma. (E essa é uma afirmação tão subjetiva quanto pode ser).
(Mas, talvez, a “Água Negra” voltemos mais tarde).
/
Há Rohmers entrando em cartaz.
E eles sempre valem a pena.
Logo, vamos a elas.
:
O cinema sempre teve vocação para diversão de massa, assim como sempre teve vocação para arte. Melhor que ele se equilibre entre esses dois pólos, ainda que esse “equilíbrio” não seja lá dos mais equilibrados.
“Dois Filhos de Francisco” é um filme que mimetiza formas e fórmulas da grande tradição do cinema narrativo – para as massas. Dizem alguns que, fosse um filme americano, seria execrado pela nossa “crítica”, assim como o são os filmes estrangeiros mais, digamos, feitos dentro de determinados moldes.
Não, “Dois Filhos” não tem mesmo inovações, nem vôos “artísticos”, nem se incomoda em ser grande deleite estético, intelectual ou moral.
Mas, sabe do que mais? O filme é um grande deleite estético, intelectual e moral justamente por não querer ser nada disso. Ou talvez, por querer, mas pelo caminho mais óbvio e mais esquecido - o da objetividade narrativa simples.
A tacada mestra de Breno Silveira é a história que ele se dispõe a contar. E ele coloca tudo a serviço dela. Sua direção é irrepreensível por ser invisível. Não é necessário lembrar ao espectador que ele está diante de uma encenação – o fato de tudo acontecer e fluir com tanta naturalidade já é a demonstração concreta e suficiente de que a mise-en-scene está corretíssima.
E se o filme tem clichês, já que eles são quase indispensáveis em um “cinema padrão” como esse, grandes atores muito bem dirigidos driblam-nos com habilidade.
Ângelo Antônio nasceu para interpretar Seu Francisco.
E tem música (sertaneja, evidentemente) e tem choro e tudo o mais a que se tem direito. E sabe o que mais tem? Um olhar terno e “desenbarreirado” para um Brasil profundo, imenso, interior.
“Dois Filhos de Francisco” existe para quebrar preconceitos em amplas esferas.
Você tem prestado atenção em seu país (ainda que pela ótica “embelezada” do cinema”)? Então preste.
Você tem prestado atenção no outro, nos outros, em todos os outros? Você já parou pra prestar atenção em Zezé di Camargo e Luciano? Então pare. E preste.
Destrua pré-conceitos (que são invariavelmente estúpidos), reveja pós-conceitos e quebre barreiras. Saia cantando “É o amor”.
Vá ver “Dois Filhos de Francisco”. Antes que eu te leve.
/
“Amor em Jogo” são os irmãos Farrelly extravasando de vez o lado romântico que sempre existiu oculto sob a simples palhaçada e a escatologia. E é uma delícia.
/
É fácil ver em “Água Negra” o que é atraente, ou, antes, o que pode ter levado Walter Salles a querer filmar o roteiro. Mas é condescendência demais chamá-lo de bom.
Não há alma. (E essa é uma afirmação tão subjetiva quanto pode ser).
(Mas, talvez, a “Água Negra” voltemos mais tarde).
/
Há Rohmers entrando em cartaz.
E eles sempre valem a pena.
8.8.05
os pecados de todos nós
Houve um dia em que não havia cinema.
E, depois, houve. E o cinema herdou do teatro sua vocação cênico-dramática e de tantas outras artes tantas outras coisas, a ponto de se afirmar, por aí, que o cinema é a mistura de todas elas. Que, quando bem feita, é nada menos do que estupenda – e os exemplos são muitos.
Não raro filmes são adaptados de obras literárias, de peças. Às vezes, querem reproduzir a luz específica de algum pintor. Alguns filmes querem ser dança, outros música.
É certo que não existe uma fronteira, um “certo/errado” que determine o “pode” e o “não pode” quando se trata das fusões de meios de expressão. Tudo pode, a princípio – mais ainda, diz-se por aí, em tempos hipertextuais como os nossos.
Deixando de lado inspirações mútuas lá e cá, atenhamo-nos à tradução intersemiótica, isto é, de um meio artístico para outro, de determinada obra. Quando uma peça vira um filme, ou quando um livro vira um musical, ou quando uma história em quadrinhos vira cinema.
Contrariando quem um dia disse que somente livros ruins dão bom cinema, há dezenas de filmes maravilhosos adaptados de grande literatura. Para ser rápido, “Morte Em Veneza”. Para ser local, “Lavoura Arcaica”. Mas o que Thomas Mann e Luis Fernando Carvalho empreenderam foram, de fato, assombrosas transmutações. Filtraram em seus gênios artísticos uma determinada cadeia de códigos de expressão – a literatura – e transformaram-na em outra, sendo absolutamente fiéis à suas fontes exatamente por serem absolutamente fiéis às suas percepções e ao meio no qual trabalhavam. As obras literárias, nesses dois casos, são pontos de partida.
Uma obra de arte total não carece de transmutação. Se uma peça ou um livro ou um filme resolve-se bem em si mesmo, determina-se, completa-se, não há motivo pelo qual se possa querer transformá-la. Cabe à ética artística, inclusive, pensar o quão “honesta” essa transformação pode ser. Ao deparar-se com algo fascinante, que o comove e preenche, por que não pode um outro artista satisfazer-se somente com essa fruição, tendo, em vez disso, que “tomar para si” esse algo, fazê-lo passar por suas mãos para que vire uma obra também sua? É possível determinar de fato uma linha entre a reverência e o egoísmo, a generosidade de espectador e a sanha possessiva de criador?
Que passe longe desse texto uma condenação sumária. Como já dito, adaptações podem ser sublimes. As artes existem em suas variações para inspirarem-se mutuamente e nada é mais prolífico do que isso. Mas até que ponto uma obra merece ou permite uma revisão?
Cabe sempre perguntar: adaptar para quê? Com que propósito?
Robert Rodriguez nunca foi um cineasta mais do que medíocre e “Sin City”, a graphic novel, é, claramente, para ele, ponto de chegada. Rodriguez, na companhia da fonte inspiradora em si, Frank Miller, operou uma reprodução fidelíssima daquilo que estava supostamente “adaptando”. “Sin City”, os quadrinhos, para virar “Sin City”, o filme, não parece ter passado pelo caleidoscópio sensorial ou criativo de ninguém, diretor ou não. Antes, cineasta, aqui, operou uma busca tecnológica detalhista para fazer o que era desenho virar imagem “viva”.
Mas, cabe perguntar: para quê? Qual é a necessidade de reproduzir algo que já era completo e admirado, acrescentando-lhe o detalhe do movimento?
A tecnologia, antes que gritem os apressados, não é fim. É meio.
Sim, o visual de “Sin City” é mesmerizante. Mas o filme foi feito para que se criasse um visual mesmerizante? Ademais, não são necessários mais de 15 minutos para que toda aquela estética já se torne habitual.
Ou, antes que se possa acusar o signatário de atitudes ditatoriais por tolher vontades alheias, perguntando-se “porquês” e contestando a “necessidade” de se fazer aquilo com que ele talvez apenas simplesmente não concorde, vamos partir para outra espécie de pergunta:
O que, afinal, se ganha com “Sin City”? O que o espectador, afinal, leva?
Um filme chato e vazio. Vencida a novidade do visual, as histórias, fielmente reproduzidas, não se sustentam na tela. Os personagens marginalizados, cicatrizados e “misteriosos” repetem-se, a violência cansa e irrita, o ritmo caduca. A novidade acaba e não há matéria cinematográfica suficiente que a sustente.
(Afinal, quem mandou mexer no que já era bom?)
Não sei o que “Sin City”, a graphic novel, ganha com o filme. Seus realizadores, sem dúvida, inclusive Frank Miller, devem ter ganho alguns trocados. Os atores, muitos deles, ganharam a oportunidade de extravasar em interpretações expressionistas ou calculadamente caricaturais, abandonando o naturalismo.
O cinema, em termos de tecnologia, talvez tenha avançado para ser menos cinema. (Isso é bom?)
Os quadrinhos, até onde cabe saber, vão bem, obrigado. Não ganharam, não perderam.
O público ganha um filme eticamente nojento (“olho por olho”, ou simplesmente, “sangue por prazer” – será?). Mas cabe atribuir culpa a alguém, em meio a tantos “vencedores”, “perdedores”, “adaptadores”, “reprodutores”, aspas e parênteses? Cabe atribuir culpa a alguém, alguma vez?
(Itamar Assumpção e Alice Ruiz diriam que “a vida não ta certa nem errada/ aguarda apenas nossa decisão”. Certos?)
Para voar longe, “Sonhos”, de Akira Kurosawa, reproduziu em movimento algumas telas de Van Gogh. Mas fez só isso? Certamente que não.
Numa discussão que pode durar meses, esqueçamos a validade de “Sin City” ter virado cinema. Mas ressaltemos que virou um cinema nada agradável.
/
“Provocação” e “A Fantástica Fábrica de Chocolate” são filmes díspares, mas cheios de pecado – em suas tramas, vale dizer.
O primeiro titubeia em pequenos mas decisivos passos, ao narrar uma boa história, com algumas boas idéias dramáticas. Tropeça feio em Kim Basinger, atriz que nunca teve recursos para papéis que fossem para além de sua beleza.
Há honestidade e vontade genuína de acertar. Ficam, daí, algumas boas impressões.
O segundo tem em Johnny Depp todos os recursos do mundo. Ator de tantas possibilidades, Depp faz um Willy Wonka de cinismo ímpar, comanda o show, rouba o show. Ele é o show.
Tim Burton continua craque máximo em operar um cinema autoral dentro da grande indústria, fazendo concessões e disfarçando-as, para torna-se deglutível. Faz uma fábula sombria e visualmente fantástica – na ampla acepção do termo –, trabalhando a mise-en-scéne com máxima e consagrada habilidade. Embora vá perdendo fôlego rumo ao fim, o filme não deixa de ser, quando lhe cabe, moralmente corrosivo e de bom-humor quase destruidor.
Mas, cabe a pergunta: havia necessidade de refazer “A Fantástica Fábrica de Chocolate”?
Dentro ou fora da tela, eis três filmes que exacerbam os pecados (morais, artísticos, legais) de todos nós.
E, depois, houve. E o cinema herdou do teatro sua vocação cênico-dramática e de tantas outras artes tantas outras coisas, a ponto de se afirmar, por aí, que o cinema é a mistura de todas elas. Que, quando bem feita, é nada menos do que estupenda – e os exemplos são muitos.
Não raro filmes são adaptados de obras literárias, de peças. Às vezes, querem reproduzir a luz específica de algum pintor. Alguns filmes querem ser dança, outros música.
É certo que não existe uma fronteira, um “certo/errado” que determine o “pode” e o “não pode” quando se trata das fusões de meios de expressão. Tudo pode, a princípio – mais ainda, diz-se por aí, em tempos hipertextuais como os nossos.
Deixando de lado inspirações mútuas lá e cá, atenhamo-nos à tradução intersemiótica, isto é, de um meio artístico para outro, de determinada obra. Quando uma peça vira um filme, ou quando um livro vira um musical, ou quando uma história em quadrinhos vira cinema.
Contrariando quem um dia disse que somente livros ruins dão bom cinema, há dezenas de filmes maravilhosos adaptados de grande literatura. Para ser rápido, “Morte Em Veneza”. Para ser local, “Lavoura Arcaica”. Mas o que Thomas Mann e Luis Fernando Carvalho empreenderam foram, de fato, assombrosas transmutações. Filtraram em seus gênios artísticos uma determinada cadeia de códigos de expressão – a literatura – e transformaram-na em outra, sendo absolutamente fiéis à suas fontes exatamente por serem absolutamente fiéis às suas percepções e ao meio no qual trabalhavam. As obras literárias, nesses dois casos, são pontos de partida.
Uma obra de arte total não carece de transmutação. Se uma peça ou um livro ou um filme resolve-se bem em si mesmo, determina-se, completa-se, não há motivo pelo qual se possa querer transformá-la. Cabe à ética artística, inclusive, pensar o quão “honesta” essa transformação pode ser. Ao deparar-se com algo fascinante, que o comove e preenche, por que não pode um outro artista satisfazer-se somente com essa fruição, tendo, em vez disso, que “tomar para si” esse algo, fazê-lo passar por suas mãos para que vire uma obra também sua? É possível determinar de fato uma linha entre a reverência e o egoísmo, a generosidade de espectador e a sanha possessiva de criador?
Que passe longe desse texto uma condenação sumária. Como já dito, adaptações podem ser sublimes. As artes existem em suas variações para inspirarem-se mutuamente e nada é mais prolífico do que isso. Mas até que ponto uma obra merece ou permite uma revisão?
Cabe sempre perguntar: adaptar para quê? Com que propósito?
Robert Rodriguez nunca foi um cineasta mais do que medíocre e “Sin City”, a graphic novel, é, claramente, para ele, ponto de chegada. Rodriguez, na companhia da fonte inspiradora em si, Frank Miller, operou uma reprodução fidelíssima daquilo que estava supostamente “adaptando”. “Sin City”, os quadrinhos, para virar “Sin City”, o filme, não parece ter passado pelo caleidoscópio sensorial ou criativo de ninguém, diretor ou não. Antes, cineasta, aqui, operou uma busca tecnológica detalhista para fazer o que era desenho virar imagem “viva”.
Mas, cabe perguntar: para quê? Qual é a necessidade de reproduzir algo que já era completo e admirado, acrescentando-lhe o detalhe do movimento?
A tecnologia, antes que gritem os apressados, não é fim. É meio.
Sim, o visual de “Sin City” é mesmerizante. Mas o filme foi feito para que se criasse um visual mesmerizante? Ademais, não são necessários mais de 15 minutos para que toda aquela estética já se torne habitual.
Ou, antes que se possa acusar o signatário de atitudes ditatoriais por tolher vontades alheias, perguntando-se “porquês” e contestando a “necessidade” de se fazer aquilo com que ele talvez apenas simplesmente não concorde, vamos partir para outra espécie de pergunta:
O que, afinal, se ganha com “Sin City”? O que o espectador, afinal, leva?
Um filme chato e vazio. Vencida a novidade do visual, as histórias, fielmente reproduzidas, não se sustentam na tela. Os personagens marginalizados, cicatrizados e “misteriosos” repetem-se, a violência cansa e irrita, o ritmo caduca. A novidade acaba e não há matéria cinematográfica suficiente que a sustente.
(Afinal, quem mandou mexer no que já era bom?)
Não sei o que “Sin City”, a graphic novel, ganha com o filme. Seus realizadores, sem dúvida, inclusive Frank Miller, devem ter ganho alguns trocados. Os atores, muitos deles, ganharam a oportunidade de extravasar em interpretações expressionistas ou calculadamente caricaturais, abandonando o naturalismo.
O cinema, em termos de tecnologia, talvez tenha avançado para ser menos cinema. (Isso é bom?)
Os quadrinhos, até onde cabe saber, vão bem, obrigado. Não ganharam, não perderam.
O público ganha um filme eticamente nojento (“olho por olho”, ou simplesmente, “sangue por prazer” – será?). Mas cabe atribuir culpa a alguém, em meio a tantos “vencedores”, “perdedores”, “adaptadores”, “reprodutores”, aspas e parênteses? Cabe atribuir culpa a alguém, alguma vez?
(Itamar Assumpção e Alice Ruiz diriam que “a vida não ta certa nem errada/ aguarda apenas nossa decisão”. Certos?)
Para voar longe, “Sonhos”, de Akira Kurosawa, reproduziu em movimento algumas telas de Van Gogh. Mas fez só isso? Certamente que não.
Numa discussão que pode durar meses, esqueçamos a validade de “Sin City” ter virado cinema. Mas ressaltemos que virou um cinema nada agradável.
/
“Provocação” e “A Fantástica Fábrica de Chocolate” são filmes díspares, mas cheios de pecado – em suas tramas, vale dizer.
O primeiro titubeia em pequenos mas decisivos passos, ao narrar uma boa história, com algumas boas idéias dramáticas. Tropeça feio em Kim Basinger, atriz que nunca teve recursos para papéis que fossem para além de sua beleza.
Há honestidade e vontade genuína de acertar. Ficam, daí, algumas boas impressões.
O segundo tem em Johnny Depp todos os recursos do mundo. Ator de tantas possibilidades, Depp faz um Willy Wonka de cinismo ímpar, comanda o show, rouba o show. Ele é o show.
Tim Burton continua craque máximo em operar um cinema autoral dentro da grande indústria, fazendo concessões e disfarçando-as, para torna-se deglutível. Faz uma fábula sombria e visualmente fantástica – na ampla acepção do termo –, trabalhando a mise-en-scéne com máxima e consagrada habilidade. Embora vá perdendo fôlego rumo ao fim, o filme não deixa de ser, quando lhe cabe, moralmente corrosivo e de bom-humor quase destruidor.
Mas, cabe a pergunta: havia necessidade de refazer “A Fantástica Fábrica de Chocolate”?
Dentro ou fora da tela, eis três filmes que exacerbam os pecados (morais, artísticos, legais) de todos nós.
27.7.05
nove canções e um aforismo
Filme visto há tempo é "9 Canções". Mas só agora uma amiga me ajuda a saber o que penso.
Há idéias atraentes. E propostas também.
Mas, quer saber? Falta emoção.
É ou não é?
/
/
/
Da série "filosofias de fim de noite":
Dentro de todo peito blasé bate um coração inseguro.
Há idéias atraentes. E propostas também.
Mas, quer saber? Falta emoção.
É ou não é?
/
/
/
Da série "filosofias de fim de noite":
Dentro de todo peito blasé bate um coração inseguro.
19.7.05
bobagens, epifanias e tragédias gregas
De mais um fim de semana, o saldo:
:
“Madagascar” tem poucas boas piadas. Passa incólume, como passava “O Espanta Tubarões”. A Dreamworks, ao que parece, quando não faz “Shrek” acerta pouco.
/
“Amores Expressos”, filme visto com atraso de anos (que parece ainda maior considerando-se o signatário um fã irremediável), roça o sublime. É construção audiovisual acachapante, que nem uma cópia de projeção ruim pôde destruir.
Wong Kar-Wai, anos antes do ápice estonteante de “Felizes Juntos” e “Amor à Flor da Pele”, conta histórias de amores fugazes, fugidios, profundos, desencontrados, ilusórios, sólidos. Ou, antes, desmembra o amor em algumas de suas muitas facetas, por várias pessoas – mas sempre falando do mesmo sentimento. Poderia ser um único amor, em várias fases.
Fato é que a capacidade de Kar-Wai para transformar imagens em sensações puras – e profundas – é admirável. Suas cenas explodem os sentidos, sem deixar de calar fundo no intelecto, no coração e na alma.
Sabe-se pouco sobre os personagens de “Amores Expressos”. Descobrimo-los em pequenos atos, em pensamentos breves. Mas os compreendemos, nos maravilhamos aos poucos com as imagens e as metáforas sentimentais que eles evocam.
Nos filmes de Wong Kar-Wai, as cores, os enquadramentos, a montagem, a música, o corpo dos atores, os diálogos, enfim, o corpóreo e o abstrato da e na imagem unem-se em um todo indesmembrável. E que não se cansa de ser fascinante.
/
“A Vida Secreta dos Dentistas” é o cinema independente americano indo, desvindo, não-indo e acabando em lugar nenhum. Ameaça-se tomar alguns caminhos interessantes, mas parte-se para outros, e outros e depois outros. E não é de se dizer que a mistura funcione por si. Acaba quase tudo no “quase”.
/
“Dança Lenta no Local do Crime” é mau teatro.
O texto é in-analisável, já que sofre golpes sucessivos até chegar ao público. Primeiro, sofre com uma má tradução. Depois, com atores fracos. A encenação é anódina.
Apesar disso, suspeita-se que o texto não é mesmo dos melhores. É um esquema batido de “encontro-de-estranhos-com-segredos-a-revelar-e-que-acabam-sendo-revelados-na-energia-e-nas-forças-do-encontro-com-os-estranhos-já-citados”. E sem um bom texto pode-se até fazer boa pirotecnia – o que, diga-se, nem é o caso. Mas quase nunca bom teatro.
/
“Antígona”, em montagem de Antunes Filho, é teatro esplendoroso.
Antes de uma conclusão do quanto a encenação pode ser chamada de “boa” ou “ruim”, há muito a observar.
Antunes lapidou com seu grupo de atores toda uma prosódia específica, uma fala-canto, ou um canto-fala, uma melodia especial que ele considerou adequada para a encenação de tragédias gregas na atualidade.
Antunes montou, antes desse, outros dois textos trágicos, em três peças: “Fragmentos Troianos” e duas versões de “Medéia”. A busca por um método de encenação, portanto, igualmente é um trabalho de pesquisa e aperfeiçoamento de anos.
Montar uma tragédia grega, em si, é um empreendimento, um desafio arriscadíssimo. A chance de ser simplesmente patético e banal é gigantesca. Qual é, então, esse caminho das pedras? Como conjugar tantos e tão grandes elementos?
Há um texto clássico. Uma métrica nesse texto. Há a métrica, ou o canto, da fala, que deve acompanhar esses versos. Há o ator em si, sua existência em cena. Há a contracenação. Há um coro. O que, meu deus, fazer com o coro? Há a trama, a história em si a ser narrada. E o trágico, o sentido do trágico, tão magnânimo e secular. Como encher de verdade uma tragédia sem que ela perca seu sentido irrevogável de simulacro, que a torna uma “tragédia”? Como equacionar essa balança? E por que, afinal, montar uma tragédia grega nos dias de hoje? Como resgatá-la, re-inventá-la ou, simplesmente, ser essencialmente fiel a ela?
Antunes Filho não está brincando em seu projeto. Pode-se gostar mais ou menos das opções, considerar mais ou menos válidos alguns preceitos. Mas se há, no espectador, algum gosto pela dramaturgia e pela encenação dramática – em seu sentido mais e mais amplo, que compreende do trabalho do ator aos elementos do cenário, embutida aí, naturalmente, a mise-èn–scéne em si – há de se prestar atenção no que está sendo feito.
Indiferente se a olhos leigos ou estudiosos, é difícil resumir “Antígona” em adjetivos simples ou opiniões cheias de “achismos”. O espetáculo hora apresentado é um irrecusável convite ao pensamento e ao olhar atento.
Na trama, pela força do que é dito e mostrado, o texto em si, em uma dilacerante contraposição entre Estado e indivíduo, política e família, leis e sentimentos. O ser que sente e enfrenta um sistema de soberania. O amor em tempos de guerra.
Na montagem, por uma cenografia que traz idéias realmente surpreendentes, por elementos que se complementam, por uma força de corporificação de conceitos, preceitos, abstrações e deuses em estatura física de atores muitíssimo bem ensaiados e cientes de seus papéis. E por Juliana Galdino, sempre um assombro, e Arieta Correa, um novo choque de vida.
Mas, uma vez mais, “Antígona”, texto, significados, importância e essa montagem em si, não cabem em qualquer pequeno texto. É todo um oceano mesmerizante no qual mergulhar.
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“Madagascar” tem poucas boas piadas. Passa incólume, como passava “O Espanta Tubarões”. A Dreamworks, ao que parece, quando não faz “Shrek” acerta pouco.
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“Amores Expressos”, filme visto com atraso de anos (que parece ainda maior considerando-se o signatário um fã irremediável), roça o sublime. É construção audiovisual acachapante, que nem uma cópia de projeção ruim pôde destruir.
Wong Kar-Wai, anos antes do ápice estonteante de “Felizes Juntos” e “Amor à Flor da Pele”, conta histórias de amores fugazes, fugidios, profundos, desencontrados, ilusórios, sólidos. Ou, antes, desmembra o amor em algumas de suas muitas facetas, por várias pessoas – mas sempre falando do mesmo sentimento. Poderia ser um único amor, em várias fases.
Fato é que a capacidade de Kar-Wai para transformar imagens em sensações puras – e profundas – é admirável. Suas cenas explodem os sentidos, sem deixar de calar fundo no intelecto, no coração e na alma.
Sabe-se pouco sobre os personagens de “Amores Expressos”. Descobrimo-los em pequenos atos, em pensamentos breves. Mas os compreendemos, nos maravilhamos aos poucos com as imagens e as metáforas sentimentais que eles evocam.
Nos filmes de Wong Kar-Wai, as cores, os enquadramentos, a montagem, a música, o corpo dos atores, os diálogos, enfim, o corpóreo e o abstrato da e na imagem unem-se em um todo indesmembrável. E que não se cansa de ser fascinante.
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“A Vida Secreta dos Dentistas” é o cinema independente americano indo, desvindo, não-indo e acabando em lugar nenhum. Ameaça-se tomar alguns caminhos interessantes, mas parte-se para outros, e outros e depois outros. E não é de se dizer que a mistura funcione por si. Acaba quase tudo no “quase”.
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“Dança Lenta no Local do Crime” é mau teatro.
O texto é in-analisável, já que sofre golpes sucessivos até chegar ao público. Primeiro, sofre com uma má tradução. Depois, com atores fracos. A encenação é anódina.
Apesar disso, suspeita-se que o texto não é mesmo dos melhores. É um esquema batido de “encontro-de-estranhos-com-segredos-a-revelar-e-que-acabam-sendo-revelados-na-energia-e-nas-forças-do-encontro-com-os-estranhos-já-citados”. E sem um bom texto pode-se até fazer boa pirotecnia – o que, diga-se, nem é o caso. Mas quase nunca bom teatro.
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“Antígona”, em montagem de Antunes Filho, é teatro esplendoroso.
Antes de uma conclusão do quanto a encenação pode ser chamada de “boa” ou “ruim”, há muito a observar.
Antunes lapidou com seu grupo de atores toda uma prosódia específica, uma fala-canto, ou um canto-fala, uma melodia especial que ele considerou adequada para a encenação de tragédias gregas na atualidade.
Antunes montou, antes desse, outros dois textos trágicos, em três peças: “Fragmentos Troianos” e duas versões de “Medéia”. A busca por um método de encenação, portanto, igualmente é um trabalho de pesquisa e aperfeiçoamento de anos.
Montar uma tragédia grega, em si, é um empreendimento, um desafio arriscadíssimo. A chance de ser simplesmente patético e banal é gigantesca. Qual é, então, esse caminho das pedras? Como conjugar tantos e tão grandes elementos?
Há um texto clássico. Uma métrica nesse texto. Há a métrica, ou o canto, da fala, que deve acompanhar esses versos. Há o ator em si, sua existência em cena. Há a contracenação. Há um coro. O que, meu deus, fazer com o coro? Há a trama, a história em si a ser narrada. E o trágico, o sentido do trágico, tão magnânimo e secular. Como encher de verdade uma tragédia sem que ela perca seu sentido irrevogável de simulacro, que a torna uma “tragédia”? Como equacionar essa balança? E por que, afinal, montar uma tragédia grega nos dias de hoje? Como resgatá-la, re-inventá-la ou, simplesmente, ser essencialmente fiel a ela?
Antunes Filho não está brincando em seu projeto. Pode-se gostar mais ou menos das opções, considerar mais ou menos válidos alguns preceitos. Mas se há, no espectador, algum gosto pela dramaturgia e pela encenação dramática – em seu sentido mais e mais amplo, que compreende do trabalho do ator aos elementos do cenário, embutida aí, naturalmente, a mise-èn–scéne em si – há de se prestar atenção no que está sendo feito.
Indiferente se a olhos leigos ou estudiosos, é difícil resumir “Antígona” em adjetivos simples ou opiniões cheias de “achismos”. O espetáculo hora apresentado é um irrecusável convite ao pensamento e ao olhar atento.
Na trama, pela força do que é dito e mostrado, o texto em si, em uma dilacerante contraposição entre Estado e indivíduo, política e família, leis e sentimentos. O ser que sente e enfrenta um sistema de soberania. O amor em tempos de guerra.
Na montagem, por uma cenografia que traz idéias realmente surpreendentes, por elementos que se complementam, por uma força de corporificação de conceitos, preceitos, abstrações e deuses em estatura física de atores muitíssimo bem ensaiados e cientes de seus papéis. E por Juliana Galdino, sempre um assombro, e Arieta Correa, um novo choque de vida.
Mas, uma vez mais, “Antígona”, texto, significados, importância e essa montagem em si, não cabem em qualquer pequeno texto. É todo um oceano mesmerizante no qual mergulhar.
15.7.05
atores.
Christopher Nolan não é um mal diretor. Fez “Amnésia”, filme que confundia com bastante poeira nos olhos, sem deixar muito pra quando ela baixasse, e depois fez “Insônia”, filme com mais e melhores elementos psicológicos do que se percebeu de modo geral.
Mas quem esperava que “Batman Begins” fosse ser evolução na carreira de Nolan, acaba de ganhar um picolé de chuchu por ingenuidade.
Explicando bastante em sua metade inicial e desenvolvendo um conflito bastante desinteressante e confuso no tempo que sobra, este quinto filme da série Batman poderia ser uma bela e sombria alegoria sobre o medo, o crime e o castigo.
Mas quem acha que é, favor levantar a mão e entrar já na fila para o seu picolé...
No meio de toda aquela barulheira hollywoodiana-blockbuster-férias-de-verão-filme-para-macho-adolescente, no entanto, há um ou dois pontos de deleite.
5, para ser exato.
Numa cine-série pela qual já passaram gente(s) como Michael Keaton, Jack Nicholson, Kim Basinger, Danny De Vito, Michelle Pfeiffer, Val Kilmer, Cris O´Donell, Jim Carrey, Tommy Lee Jones, Nicole Kidman, George Clooney, Arnold Schwarzenegger, Alicia Silverstone e Uma Thurman, entre outros (sem qualquer juízo de valor na e pela participação de cada um deles), eis que “Batman Begins” reúne 5 dos melhores atores trabalhando atualmente no cinema mainstream americano – e até no nem tão mainstream assim.
Michael Caine, Morgan Freeman, Gary Oldman, Tom Wilkinson e Liam Neeson são grandes atores. E grandes atores sempre são capazes de um pouquinho de felicidade.
Melhor assim. “Batman Begins” é dispensável. Mas se por acaso ele passar diante de seus olhos, preste atenção nesses 5. Eles é que são os super-heróis.
Mas quem esperava que “Batman Begins” fosse ser evolução na carreira de Nolan, acaba de ganhar um picolé de chuchu por ingenuidade.
Explicando bastante em sua metade inicial e desenvolvendo um conflito bastante desinteressante e confuso no tempo que sobra, este quinto filme da série Batman poderia ser uma bela e sombria alegoria sobre o medo, o crime e o castigo.
Mas quem acha que é, favor levantar a mão e entrar já na fila para o seu picolé...
No meio de toda aquela barulheira hollywoodiana-blockbuster-férias-de-verão-filme-para-macho-adolescente, no entanto, há um ou dois pontos de deleite.
5, para ser exato.
Numa cine-série pela qual já passaram gente(s) como Michael Keaton, Jack Nicholson, Kim Basinger, Danny De Vito, Michelle Pfeiffer, Val Kilmer, Cris O´Donell, Jim Carrey, Tommy Lee Jones, Nicole Kidman, George Clooney, Arnold Schwarzenegger, Alicia Silverstone e Uma Thurman, entre outros (sem qualquer juízo de valor na e pela participação de cada um deles), eis que “Batman Begins” reúne 5 dos melhores atores trabalhando atualmente no cinema mainstream americano – e até no nem tão mainstream assim.
Michael Caine, Morgan Freeman, Gary Oldman, Tom Wilkinson e Liam Neeson são grandes atores. E grandes atores sempre são capazes de um pouquinho de felicidade.
Melhor assim. “Batman Begins” é dispensável. Mas se por acaso ele passar diante de seus olhos, preste atenção nesses 5. Eles é que são os super-heróis.
14.7.05
do encontro - ou a pessoa é para o que nasce.
Poucas coisas são mais louváveis do que a arte do encontro. O encontro alarga a experiência, quebra barreiras, constrói pontes.
Imagine, então, o quão sensacional pode ser compartilhar, com terceiros, um encontro. Transmitir a outrém toda energia, toda a descoberta, todos os pensamentos e sensações que a reunião de corpos e almas pode causar.
O cinema é uma ferramenta capaz disso.
E Roberto Berliner é um homem de espírito amplo e generoso. E um cineasta dos mais capazes. Em seu “A Pessoa É Para O Que Nasce” ele constrói um nunca menos do que fascinante documentário em que registra seu encontro com três irmãs cegas de Campina Grande, PB.
Um documentário não SOBRE um objeto, seja ele uma pessoa ou um lugar, mas COM. Berliner não estuda nem perscruta. Ele nem mesmo simplesmente observa. Ele agrega. Agrega aos canais sensórios, emotivos e intelectuais da platéia a experiência de vida de três seres humanos especiais e iluminados.
E o faz com uma capacidade impressionante de regência dos meios cinematográficos à sua disposição. Berliner usa a música, a fotografia e a montagem de forma habilíssima, construindo uma peça documental explosivamente verdadeira e sincera, exatamente por não se engessar na “objetividade”.
“A Pessoa É Para O Que Nasce”, além de um retrato, é uma belíssima fábula sobre destino e sobre as fronteiras da visão e da vida. Para quem vê como as ceguinhas de Campina Grande, enxergar chega quase a ser apenas um detalhe.
Imagine, então, o quão sensacional pode ser compartilhar, com terceiros, um encontro. Transmitir a outrém toda energia, toda a descoberta, todos os pensamentos e sensações que a reunião de corpos e almas pode causar.
O cinema é uma ferramenta capaz disso.
E Roberto Berliner é um homem de espírito amplo e generoso. E um cineasta dos mais capazes. Em seu “A Pessoa É Para O Que Nasce” ele constrói um nunca menos do que fascinante documentário em que registra seu encontro com três irmãs cegas de Campina Grande, PB.
Um documentário não SOBRE um objeto, seja ele uma pessoa ou um lugar, mas COM. Berliner não estuda nem perscruta. Ele nem mesmo simplesmente observa. Ele agrega. Agrega aos canais sensórios, emotivos e intelectuais da platéia a experiência de vida de três seres humanos especiais e iluminados.
E o faz com uma capacidade impressionante de regência dos meios cinematográficos à sua disposição. Berliner usa a música, a fotografia e a montagem de forma habilíssima, construindo uma peça documental explosivamente verdadeira e sincera, exatamente por não se engessar na “objetividade”.
“A Pessoa É Para O Que Nasce”, além de um retrato, é uma belíssima fábula sobre destino e sobre as fronteiras da visão e da vida. Para quem vê como as ceguinhas de Campina Grande, enxergar chega quase a ser apenas um detalhe.
8.7.05
28.6.05
buenos aires
Tudo em Buenos Aires remete a "Felizes Juntos" - até o que em nada remete.
Ao sentimento avassalador de plenitude cinematográfica alcançado por Wong Kar Wai num retrato estupendo do amor.
A tangos na cozinha.
A tangos em geral, essa música tão fantástica em sua beleza dilacerante.
A Cataratas do Iguaçu despencando como se dançassem Caetano Veloso ("rio que perde o chão é catarata", hem?!)
A extremo opostos.
Ao afeto e à repulsa que se encerram em peitos juvenis explodindo de sentimento.
Ao fim do mundo e seus sons. O que haverá lá?
Ao desterro.
À volta pra casa.
À procura por uma casa.
Às casas tão sólidas que encontramos ou construímos no corpo de outros, na alma de outros.
À dor.
Às cores, aos grãos, às câmeras lentas.
A Astor Piazolla, Frank Zappa, Cucurucucu Paloma e So Happy Together.
À plenitude e ao vazio.
Ao amor, enfim.
Ao sentimento avassalador de plenitude cinematográfica alcançado por Wong Kar Wai num retrato estupendo do amor.
A tangos na cozinha.
A tangos em geral, essa música tão fantástica em sua beleza dilacerante.
A Cataratas do Iguaçu despencando como se dançassem Caetano Veloso ("rio que perde o chão é catarata", hem?!)
A extremo opostos.
Ao afeto e à repulsa que se encerram em peitos juvenis explodindo de sentimento.
Ao fim do mundo e seus sons. O que haverá lá?
Ao desterro.
À volta pra casa.
À procura por uma casa.
Às casas tão sólidas que encontramos ou construímos no corpo de outros, na alma de outros.
À dor.
Às cores, aos grãos, às câmeras lentas.
A Astor Piazolla, Frank Zappa, Cucurucucu Paloma e So Happy Together.
À plenitude e ao vazio.
Ao amor, enfim.
21.6.05
fim de semana
PREFÁCIO
Antes mesmo do fim de semana chegar, “O Guia do Mochileiro das Galáxias”. Humor que varia do nonsense ao ácido, o filme é uma surpresa a cada curva de sua viagem alucinante. Há gorduras aqui e ali e pequenas derrapagens de roteiro, mas nada que anule a extrema diversão e a reconstrução visual de um universo ficcional delirante e delicioso. Para se ver com um baldão de pipoca (como eu, de fato, fiz) e surpreender-se em descobrir que esse não é só um entretenimento ligeiro. Vá de olhos, ouvidos e senso de humor abertos.
CAPÍTULO 1
O cinismo de Sergio Bianchi faz com que enxerguem nele um delegado das mazelas nacionais na mesma medida em que se vê um hipócrita francamente apelativo e raivoso. Não vou ficar de nenhum dos lados. “Quanto Vale ou É Por Quilo?” caminha bem, até. Tem bons atores e algumas linhas de trama bem encenadas, como possui diálogos e situações quase risíveis. Surpreende, às vezes, entedia, noutras. É bom que exista, é bom que se veja, porque é filme que desperta o pensamento e o senso crítico, nem que seja na anti-tese – ou, especialmente nela, tanto ética quanto esteticamente.
Não se pode acreditar cegamente no que Sergio Bianchi grita. Mas é sempre interessante rebater as bolas que ele levanta. Leve a percepção com você e vá pronto pra briga.
CAPÍTULO 2
“Contracorrente” não é o bom filme que parte da crítica quer fazer crer. Sua estética exibicionista não justifica-se sob nenhum ponto de vista e sua veia dramática, supostamente contundente, titubeia demais. A narrativa esvazia-se em seqüências intermináveis e tolas de um jogo de gato e rato, esquecendo-se de dar corpo e substância ao por momentos envolvente drama trágico de dois jovens meninos. É o cinema independente americano querendo ser forte, mas falhando na tentativa.
Para falar a verdade, não precisa ir ver.
CAPÍTULO 3
Denise Stoklos é uma artista. Desenvolveu uma persona, estabeleceu uma linguagem, aperfeiçoou uma técnica. Cria expectativas sempre, e sempre as mesmas expectativas. E isso não é ruim, nunca. Vai-se assistir aos espetáculos de Denise Stoklos querendo ver exatamente Denise Stoklos e aquilo de que sabemos muito bem que ela é capaz muito bem. A curiosidade é sempre saber o que Stoklos fez com determinados temas, como ela colocou sua sensacional arte de atriz-performer-comediante-pensadora a serviço de determinado assunto, ou determinado universo pessoal.
Ou, no caso, como Denise Stoklos encontrou Louise Bougeois – ou o que saiu desse encontro.
Muito. “Louise Bourgeois – Faço, Desfaço, Refaço” é um vulcânico e delicado olhar de uma mulher sobre outra, ambas artistas plenas de suas artes. Ao dar corpo, forma e voz às inquietações existenciais, às lembranças infantis e maltratadas de Louise, bem como aos seus anseios estéticos e a alguns breves momentos de sua vida, Denise Stoklos faz, desfaz e refaz tudo ao mesmo tempo agora. Há desespero e poesia e desalento e dor e comédia e lucidez e loucura e arte. Inclusive materialmente falando, em três belíssimas esculturas-instalações de Borgeois que ocupam o palco.
Como um instrumentista hábil em seu violão, por exemplo, e capaz de tirar dele todos os sons possíveis sem que aquilo jamais deixe de ser um violão, a artista Denise Stoklos reinventa-se e alterna-se sendo sempre a mesma, a espetacular mesma. Aqui, mas uma vez, ela não deixa pedra sobre pedra.
Vá vê-la com todos os canais da percepção sintonizados na generosidade da fruição.
CAPÍTULO 4
“Clean” valeria uma visita simplesmente pelo seu jogo de câmera mesmerizante. Mas, por sorte, há muito mais. Há Maggie Cheung, despindo-se da beleza intocável com que (com razão) os cineastas orientais recentemente a retrataram e colocando a cara a tapa em uma personagem maltratada. Maggie interioriza-se em sua resignação e em sua luta paciente pela reconstrução da vida. Seus momentos sublimes estão nos pequenos olhares, nas respirações.
E o filme conta de forma pra lá de competente uma bela e singela história, que tem prazer em desenvolver-se sem pressa e sem arroubos. É admirável como o diretor Olivier Assayas estrutura essa trama de quedas livres e re-erguimentos sem histeria, sem queda livre. Há muito equilíbrio estético e narrativo emoldurando lutas quietas e ferrenhas, convulsão interna e perspicácia. “Clean” é um filme sobre o aspirador que silenciosamente e persistentemente vem recolher os escombros da avalanche da vida.
Veja com atenção.
FIM DO FIM DE SEMANA.
Antes mesmo do fim de semana chegar, “O Guia do Mochileiro das Galáxias”. Humor que varia do nonsense ao ácido, o filme é uma surpresa a cada curva de sua viagem alucinante. Há gorduras aqui e ali e pequenas derrapagens de roteiro, mas nada que anule a extrema diversão e a reconstrução visual de um universo ficcional delirante e delicioso. Para se ver com um baldão de pipoca (como eu, de fato, fiz) e surpreender-se em descobrir que esse não é só um entretenimento ligeiro. Vá de olhos, ouvidos e senso de humor abertos.
CAPÍTULO 1
O cinismo de Sergio Bianchi faz com que enxerguem nele um delegado das mazelas nacionais na mesma medida em que se vê um hipócrita francamente apelativo e raivoso. Não vou ficar de nenhum dos lados. “Quanto Vale ou É Por Quilo?” caminha bem, até. Tem bons atores e algumas linhas de trama bem encenadas, como possui diálogos e situações quase risíveis. Surpreende, às vezes, entedia, noutras. É bom que exista, é bom que se veja, porque é filme que desperta o pensamento e o senso crítico, nem que seja na anti-tese – ou, especialmente nela, tanto ética quanto esteticamente.
Não se pode acreditar cegamente no que Sergio Bianchi grita. Mas é sempre interessante rebater as bolas que ele levanta. Leve a percepção com você e vá pronto pra briga.
CAPÍTULO 2
“Contracorrente” não é o bom filme que parte da crítica quer fazer crer. Sua estética exibicionista não justifica-se sob nenhum ponto de vista e sua veia dramática, supostamente contundente, titubeia demais. A narrativa esvazia-se em seqüências intermináveis e tolas de um jogo de gato e rato, esquecendo-se de dar corpo e substância ao por momentos envolvente drama trágico de dois jovens meninos. É o cinema independente americano querendo ser forte, mas falhando na tentativa.
Para falar a verdade, não precisa ir ver.
CAPÍTULO 3
Denise Stoklos é uma artista. Desenvolveu uma persona, estabeleceu uma linguagem, aperfeiçoou uma técnica. Cria expectativas sempre, e sempre as mesmas expectativas. E isso não é ruim, nunca. Vai-se assistir aos espetáculos de Denise Stoklos querendo ver exatamente Denise Stoklos e aquilo de que sabemos muito bem que ela é capaz muito bem. A curiosidade é sempre saber o que Stoklos fez com determinados temas, como ela colocou sua sensacional arte de atriz-performer-comediante-pensadora a serviço de determinado assunto, ou determinado universo pessoal.
Ou, no caso, como Denise Stoklos encontrou Louise Bougeois – ou o que saiu desse encontro.
Muito. “Louise Bourgeois – Faço, Desfaço, Refaço” é um vulcânico e delicado olhar de uma mulher sobre outra, ambas artistas plenas de suas artes. Ao dar corpo, forma e voz às inquietações existenciais, às lembranças infantis e maltratadas de Louise, bem como aos seus anseios estéticos e a alguns breves momentos de sua vida, Denise Stoklos faz, desfaz e refaz tudo ao mesmo tempo agora. Há desespero e poesia e desalento e dor e comédia e lucidez e loucura e arte. Inclusive materialmente falando, em três belíssimas esculturas-instalações de Borgeois que ocupam o palco.
Como um instrumentista hábil em seu violão, por exemplo, e capaz de tirar dele todos os sons possíveis sem que aquilo jamais deixe de ser um violão, a artista Denise Stoklos reinventa-se e alterna-se sendo sempre a mesma, a espetacular mesma. Aqui, mas uma vez, ela não deixa pedra sobre pedra.
Vá vê-la com todos os canais da percepção sintonizados na generosidade da fruição.
CAPÍTULO 4
“Clean” valeria uma visita simplesmente pelo seu jogo de câmera mesmerizante. Mas, por sorte, há muito mais. Há Maggie Cheung, despindo-se da beleza intocável com que (com razão) os cineastas orientais recentemente a retrataram e colocando a cara a tapa em uma personagem maltratada. Maggie interioriza-se em sua resignação e em sua luta paciente pela reconstrução da vida. Seus momentos sublimes estão nos pequenos olhares, nas respirações.
E o filme conta de forma pra lá de competente uma bela e singela história, que tem prazer em desenvolver-se sem pressa e sem arroubos. É admirável como o diretor Olivier Assayas estrutura essa trama de quedas livres e re-erguimentos sem histeria, sem queda livre. Há muito equilíbrio estético e narrativo emoldurando lutas quietas e ferrenhas, convulsão interna e perspicácia. “Clean” é um filme sobre o aspirador que silenciosamente e persistentemente vem recolher os escombros da avalanche da vida.
Veja com atenção.
FIM DO FIM DE SEMANA.
13.6.05
CINEMATOGRÁFICAS 7 + PRIMEIRAS VEZES
“Tentação” é uma chatice só: mal escrito e mal interpretado por bons atores.
/
“A Vida Marinha com Steve Zissou” é Wes Anderson usando truques já consagrados a serviço de um besteirol. Todo o inusitado e a estranheza que eram frescor em “Três É Demais” e “Os Excêntricos Tenembauns” soam, aqui, caducos. O roteiro tergiversa, tropeça e não chega a nada. E, antes que isso pareça uma cobrança de linearidade ou sentido, vale dizer que tampouco a trama vale pela jornada, por aquilo que engendra em seu caminho. Não custa muito para a prolixidade se fazer sentir e para tudo começar a ficar um tanto o quanto chato.
Cate Blanchett está lá. Bill Murray também. Mas eles não são o suficiente.
“A Vida Marinha...” ser um filme bem mais vazio e bem menos interessante em sua matéria humana e narrativa do que suas obras anteriores não significa necessariamente que Wes Anderson tenha pegado um caminho sem volta. Há lampejos fortes e claros de invenção e talento. Mas o todo não funciona.
O que só nos deixa bastante ansiosos por seu próximo filme.
/
Patrice Chéreau é um cineasta da crueza. Seu cinema, desde pelo menos o anterior “Intimidade”, parece especialista em mostrar. Não há truques, excessos, apelos. O cinema, em Chéreau, vira documentação, sem jamais querer gritar “eu sou cinema”. O prazer estético, se há, vem da ética, porque são as entranhas humanas que importam, são o drama e seus personagens que movem a narrativa – a câmera está a serviço disso, e não importa muito se há foco ou se o plano é suficientemente atraente. O que não é nada surpreendente, tendo Patrice Chéreau o histórico de encenador teatral que tem.
“Irmãos” pega a toada de “Intimidade” e, num batimento sufocante de tão real, registra a morte. Ou, antes, a perplexidade diante do desconhecido, a luta de um ser humano contra seu próprio corpo. E que essa luta tenha desdobramentos nas relações pessoais e na posição mundana ocupada por esse corpo é apenas o natural.
“Irmãos”, vale dizer, é áspero. Afasta, assusta, incomoda. Faz opções pouco óbvias, mas que se encaixam. Cresce depois que acaba. E, como todo mundo sabe, isso é característica da boa arte.
/
Estão em cartaz na cidade dois dos melhores filmes já feitos:
No recém-inaugurado Reserva Cultural, que promete ser um oásis de bom cinema ali no coração da Paulista, no prédio da Gazeta, pode-se ver “Amor à Flor da Pele”, de Wong Kar-Wai.
A dez passos dali, no vizinho Top Cine, assiste-se à “A Liberdade É Azul”, de Krzysztof Kieslowski.
Pra quem não viu ou não conhece, vale um mês inteiro de cinema. Ou um ano todo.
PS: Pela delícia dos cinemas de rua, pela delícia da avenida Paulista, pela delícia da Fnac ali logo em frente, pela delícia de salas novas e bem equipadas, pela principal delícia, a de uma programação de qualidade, e apesar do preço salgado e de ainda não conhecer pessoalmente o local, estamos torcendo desde já, com entusiasmo, pelo Reserva Cultural.
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PRIMEIRAS VEZES
Jamais achei que fosse não gostar de um filme de Woody Allen.
Há uma série de diretores de cinema que considero mais geniais do que Woody Allen. Há uma série deles que impulsionaram o cinema como arte de formas bem mais densas e importantes do que Woody Allen. Há cineastas com conjuntos de obras que fizeram uso das possibilidades da imagem em movimento de formas bem mais espetaculares do que Woody Allen. Numa lista de meus 10 filmes preferidos é possível que talvez nem houvesse um Woody Allen.
Mas, por algum motivo, Woody Allen mexe comigo como nenhum outro. Por algum motivo, me identifico com Woody Allen como com nenhum outro. Sofro com Woody Allen, torço por Woody Allen, penso que ele faz os filmes dele para mim.
Woody Allen dirigiu 36 filmes em 39 anos de carreira. Deles, assisti a 29. São 29 ótimos filmes, sem exceção. Há as obras primas, há os excelente e há os apenas ótimos. Mas jamais achei que fosse não gostar de um filme de Woody Allen.
O protecionismo, os anos de paixão cultivada e a identificação fazem com que eu não consiga dizer que “Melinda e Melinda” é ruim. Mas não é bom.
“Trapaceiros” foi o último filme excelente de Allen. Depois dele, “O Escorpião de Jade” foi divertidíssimo, “Dirigindo no Escuro” foi acima da média dos filmes em geral, mas “Igual a Tudo na Vida”, apesar de uma boa história muito bem contada, demonstrava uma preguiça com determinados aspectos do fazer cinematográfico, como com a fotografia, por exemplo. Woody parecia estar ficando preguiçoso.
E essa preguiça se consuma de forma triste, muito triste, em “Melinda e Melinda”. Porque a premissa do filme é incrível, mas seu desenvolvimento em roteiro passa longe da capacidade de reinventar, parodiar e subverter fórmulas narrativas de Allen. E, mesmo que não fosse essa a proposta, passa longe da competência habitual de simplesmente contar uma história, da dramaturgia tinindo de boa, dos diálogos afiados e inigualáveis, dos personagens memoráveis que são prato cheio para atores fenomenais. Passa-se longe de tudo isso.
O ritmo capenga, há cenas de um estranhamento que beira a incompetência em termos dramáticos, os planos estão decupados com desleixo e a câmera está preguiçosa. A ida e vinda entre a tragédia e a comédia não se consumam, não aparecem costurada de forma a justificar essa opção narrativa. Estão ali dois filmes distintos, sem que eles conversem propriamente, ou sem que se faça presente qualquer jogo cinematográfico que abrilhante ou mesmo sustente a proposta. E são dois filmes simpáticos, na melhor das hipóteses.
E, por incrível que pareça, ri-se muito pouco.
Resumindo, “Melinda e Melinda” é triste de ver. Porque passa a sensação de que Woody Allen o fez em piloto automático, sem a paixão que tão freqüentemente extravasa de suas obras.
Ou então Woody Allen fez um estudo aguçado de como construir a tragédia e a comédia, e confundiu a platéia que esperava mais uma comédia “nonsense”, como vinham sendo seus últimos filmes. Mas aí suspeito que já é a condescendência de fã incondicional entrando em cena. Paro por aqui antes que retire tudo o que disse.
PS: Estreado no Festival de Cannes desse ano, “Match Point”, o último filme de Woody Allen, recebeu acolhida calorosa até mesmo dos que já estavam incrédulos com o diretor depois de “Melinda e Melinda”. O que só nos faz não ver a hora de assistir ao filme.
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“A Vida Marinha com Steve Zissou” é Wes Anderson usando truques já consagrados a serviço de um besteirol. Todo o inusitado e a estranheza que eram frescor em “Três É Demais” e “Os Excêntricos Tenembauns” soam, aqui, caducos. O roteiro tergiversa, tropeça e não chega a nada. E, antes que isso pareça uma cobrança de linearidade ou sentido, vale dizer que tampouco a trama vale pela jornada, por aquilo que engendra em seu caminho. Não custa muito para a prolixidade se fazer sentir e para tudo começar a ficar um tanto o quanto chato.
Cate Blanchett está lá. Bill Murray também. Mas eles não são o suficiente.
“A Vida Marinha...” ser um filme bem mais vazio e bem menos interessante em sua matéria humana e narrativa do que suas obras anteriores não significa necessariamente que Wes Anderson tenha pegado um caminho sem volta. Há lampejos fortes e claros de invenção e talento. Mas o todo não funciona.
O que só nos deixa bastante ansiosos por seu próximo filme.
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Patrice Chéreau é um cineasta da crueza. Seu cinema, desde pelo menos o anterior “Intimidade”, parece especialista em mostrar. Não há truques, excessos, apelos. O cinema, em Chéreau, vira documentação, sem jamais querer gritar “eu sou cinema”. O prazer estético, se há, vem da ética, porque são as entranhas humanas que importam, são o drama e seus personagens que movem a narrativa – a câmera está a serviço disso, e não importa muito se há foco ou se o plano é suficientemente atraente. O que não é nada surpreendente, tendo Patrice Chéreau o histórico de encenador teatral que tem.
“Irmãos” pega a toada de “Intimidade” e, num batimento sufocante de tão real, registra a morte. Ou, antes, a perplexidade diante do desconhecido, a luta de um ser humano contra seu próprio corpo. E que essa luta tenha desdobramentos nas relações pessoais e na posição mundana ocupada por esse corpo é apenas o natural.
“Irmãos”, vale dizer, é áspero. Afasta, assusta, incomoda. Faz opções pouco óbvias, mas que se encaixam. Cresce depois que acaba. E, como todo mundo sabe, isso é característica da boa arte.
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Estão em cartaz na cidade dois dos melhores filmes já feitos:
No recém-inaugurado Reserva Cultural, que promete ser um oásis de bom cinema ali no coração da Paulista, no prédio da Gazeta, pode-se ver “Amor à Flor da Pele”, de Wong Kar-Wai.
A dez passos dali, no vizinho Top Cine, assiste-se à “A Liberdade É Azul”, de Krzysztof Kieslowski.
Pra quem não viu ou não conhece, vale um mês inteiro de cinema. Ou um ano todo.
PS: Pela delícia dos cinemas de rua, pela delícia da avenida Paulista, pela delícia da Fnac ali logo em frente, pela delícia de salas novas e bem equipadas, pela principal delícia, a de uma programação de qualidade, e apesar do preço salgado e de ainda não conhecer pessoalmente o local, estamos torcendo desde já, com entusiasmo, pelo Reserva Cultural.
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PRIMEIRAS VEZES
Jamais achei que fosse não gostar de um filme de Woody Allen.
Há uma série de diretores de cinema que considero mais geniais do que Woody Allen. Há uma série deles que impulsionaram o cinema como arte de formas bem mais densas e importantes do que Woody Allen. Há cineastas com conjuntos de obras que fizeram uso das possibilidades da imagem em movimento de formas bem mais espetaculares do que Woody Allen. Numa lista de meus 10 filmes preferidos é possível que talvez nem houvesse um Woody Allen.
Mas, por algum motivo, Woody Allen mexe comigo como nenhum outro. Por algum motivo, me identifico com Woody Allen como com nenhum outro. Sofro com Woody Allen, torço por Woody Allen, penso que ele faz os filmes dele para mim.
Woody Allen dirigiu 36 filmes em 39 anos de carreira. Deles, assisti a 29. São 29 ótimos filmes, sem exceção. Há as obras primas, há os excelente e há os apenas ótimos. Mas jamais achei que fosse não gostar de um filme de Woody Allen.
O protecionismo, os anos de paixão cultivada e a identificação fazem com que eu não consiga dizer que “Melinda e Melinda” é ruim. Mas não é bom.
“Trapaceiros” foi o último filme excelente de Allen. Depois dele, “O Escorpião de Jade” foi divertidíssimo, “Dirigindo no Escuro” foi acima da média dos filmes em geral, mas “Igual a Tudo na Vida”, apesar de uma boa história muito bem contada, demonstrava uma preguiça com determinados aspectos do fazer cinematográfico, como com a fotografia, por exemplo. Woody parecia estar ficando preguiçoso.
E essa preguiça se consuma de forma triste, muito triste, em “Melinda e Melinda”. Porque a premissa do filme é incrível, mas seu desenvolvimento em roteiro passa longe da capacidade de reinventar, parodiar e subverter fórmulas narrativas de Allen. E, mesmo que não fosse essa a proposta, passa longe da competência habitual de simplesmente contar uma história, da dramaturgia tinindo de boa, dos diálogos afiados e inigualáveis, dos personagens memoráveis que são prato cheio para atores fenomenais. Passa-se longe de tudo isso.
O ritmo capenga, há cenas de um estranhamento que beira a incompetência em termos dramáticos, os planos estão decupados com desleixo e a câmera está preguiçosa. A ida e vinda entre a tragédia e a comédia não se consumam, não aparecem costurada de forma a justificar essa opção narrativa. Estão ali dois filmes distintos, sem que eles conversem propriamente, ou sem que se faça presente qualquer jogo cinematográfico que abrilhante ou mesmo sustente a proposta. E são dois filmes simpáticos, na melhor das hipóteses.
E, por incrível que pareça, ri-se muito pouco.
Resumindo, “Melinda e Melinda” é triste de ver. Porque passa a sensação de que Woody Allen o fez em piloto automático, sem a paixão que tão freqüentemente extravasa de suas obras.
Ou então Woody Allen fez um estudo aguçado de como construir a tragédia e a comédia, e confundiu a platéia que esperava mais uma comédia “nonsense”, como vinham sendo seus últimos filmes. Mas aí suspeito que já é a condescendência de fã incondicional entrando em cena. Paro por aqui antes que retire tudo o que disse.
PS: Estreado no Festival de Cannes desse ano, “Match Point”, o último filme de Woody Allen, recebeu acolhida calorosa até mesmo dos que já estavam incrédulos com o diretor depois de “Melinda e Melinda”. O que só nos faz não ver a hora de assistir ao filme.
25.5.05
da arte de ser imperdível
"Bendito Fruto" não é uma comédia romântica, nem uma comédia pastelão. Não é comédia apelativa, não é besteirol, não é sem graça. Não é comédia que se pretende “esperta”. Tampouco imita “sitcoms” americanas, ou filmes de comédia americanos ou de qualquer outro país.
"Bendito Fruto" é uma comédia de costumes brasileira. É um filme ao qual não se faz nada semelhante há um bom tempo no cinema nacional (hum, deixe-me ver... uns 10 anos? Ou mais?). É um roteiro bom de doer, filmado com uma ginga e uma graça contagiantes, com atores sensacionais.
"Bendito Fruto" constrói uma trama inteligente e divertidíssima, descascando de leve a classe média e a sociedade brasileira, enquanto conta uma história de ajustes.
"Bendito Fruto" é filme cheio de um vigor todo especial, que deriva diretamente dos personagens criados com tão bela carpintaria dramática e defendidos por atores simplesmente perfeitos.
"Bendito Fruto" trabalha no registro de um humor que é de uma simplicidade tão tocante quanto explosivamente engraçada.
"Bendito Fruto" é de uma verdade de intenções e honestidade narrativa raras. Ele aborda preconceitos e pós-conceitos raciais, sexuais e sociais no tom do mais genuíno comedimento. As “polêmicas” têm o cuidado de jamais chamar a atenção para si e de aparecerem em integração admirável com a trama.
"Bendito Fruto" não estereotipa. Antes, desconstrói os estereótipos, lidando com eles na base do melhor dos naturalismos.
"Bendito Fruto" tem Zezeh Barbosa, Vera Holtz e Otávio Augusto em estado de graça.
"Bendito Fruto" é o mais delicioso dos triunfos, porque não precisa de polêmica, de sujeira, de favela, de nordeste, de regionalismo, de sangue, de exibicionismo visual ou dramático, de reinvenções ou exageros para ser um grande filme. Um enorme filme.
"Bendito Fruto" é pequeno e é gigante. É aquela maravilha talhada com todo o capricho e amor, que se contenta em existir sem precisar gritar ou fazer estardalhaço. O que só a torna ainda melhor.
"Bendito Fruto" é filme que dá vontade de aplaudir de pé (citando a colega P.)
"Bendito Fruto" é absolutamente imperdível.
Resumindo (e citando novamente): vá ver logo, antes que eu te leve.
"Bendito Fruto" é uma comédia de costumes brasileira. É um filme ao qual não se faz nada semelhante há um bom tempo no cinema nacional (hum, deixe-me ver... uns 10 anos? Ou mais?). É um roteiro bom de doer, filmado com uma ginga e uma graça contagiantes, com atores sensacionais.
"Bendito Fruto" constrói uma trama inteligente e divertidíssima, descascando de leve a classe média e a sociedade brasileira, enquanto conta uma história de ajustes.
"Bendito Fruto" é filme cheio de um vigor todo especial, que deriva diretamente dos personagens criados com tão bela carpintaria dramática e defendidos por atores simplesmente perfeitos.
"Bendito Fruto" trabalha no registro de um humor que é de uma simplicidade tão tocante quanto explosivamente engraçada.
"Bendito Fruto" é de uma verdade de intenções e honestidade narrativa raras. Ele aborda preconceitos e pós-conceitos raciais, sexuais e sociais no tom do mais genuíno comedimento. As “polêmicas” têm o cuidado de jamais chamar a atenção para si e de aparecerem em integração admirável com a trama.
"Bendito Fruto" não estereotipa. Antes, desconstrói os estereótipos, lidando com eles na base do melhor dos naturalismos.
"Bendito Fruto" tem Zezeh Barbosa, Vera Holtz e Otávio Augusto em estado de graça.
"Bendito Fruto" é o mais delicioso dos triunfos, porque não precisa de polêmica, de sujeira, de favela, de nordeste, de regionalismo, de sangue, de exibicionismo visual ou dramático, de reinvenções ou exageros para ser um grande filme. Um enorme filme.
"Bendito Fruto" é pequeno e é gigante. É aquela maravilha talhada com todo o capricho e amor, que se contenta em existir sem precisar gritar ou fazer estardalhaço. O que só a torna ainda melhor.
"Bendito Fruto" é filme que dá vontade de aplaudir de pé (citando a colega P.)
"Bendito Fruto" é absolutamente imperdível.
Resumindo (e citando novamente): vá ver logo, antes que eu te leve.
23.5.05
Bendito filme
Você aida não foi ver BENDITO FRUTO, extraordinário e divertidíssimo filme brasileiro em cartaz desde sexta feira, dia 20 de maio, em São Paulo e no Rio???
Então CORRA, antes que o circuito exibidor decida escolher por você os filmes que você deve ver ou não.
CORRA!! É IMPERDÍVEL E VOCÊ VAI SE DELICIAR...
(e a "Bendito Fruto" voltaremos mais tarde.)
Então CORRA, antes que o circuito exibidor decida escolher por você os filmes que você deve ver ou não.
CORRA!! É IMPERDÍVEL E VOCÊ VAI SE DELICIAR...
(e a "Bendito Fruto" voltaremos mais tarde.)
13.5.05
a crítica e a crítica
Literalmente tudo o que eu queria dizer sobre "Casa de Areia" foi publicado hoje (13/05) por José Geraldo Couto na Ilustrada, com enorme lucidez e clareza, num justo exercício de crítica jornalística.
Está tudo lá, sem tirar nem por uma única vírgula.
Então, justiça seja feita e, com a licença do colega, reproduzo o texto abaixo:
Waddington retrata deserto maranhense como labirinto cerrado
JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA
À primeira vista, "Casa de Areia" é um drama sobre três gerações de mulheres perdidas no fim do mundo -mais precisamente, nos Lençóis Maranhenses, Nordeste brasileiro.
Mas o filme pode ser visto também como um exercício audiovisual sobre a relatividade do tempo e do espaço. Ou sobre a pequenez humana em face da imensidão do cosmo.
Curiosamente, é nesses dois planos mais "complexos" que "Casa de Areia" parece se realizar de modo mais cabal. No plano do drama, é possível que o espectador ache que falta algo e não se sinta plenamente envolvido. Mas quem pode antever a reação dessa entidade abstrata e fugidia chamada "o espectador"?
O fato é que "Casa de Areia" é o filme mais pessoal e corajoso de Andrucha Waddington. Em seus longas anteriores -"Gêmeas", "Eu Tu Eles" e "Viva São João"-, a paisagem era mera moldura para uma encenação mais ou menos televisiva, mais ou menos teatral.
Aqui, o espaço é protagonista, agindo diretamente sobre o destino e o espírito dos personagens. Já as primeiras cenas são eloqüentes: o que se vê antes de tudo é uma vastidão de areia, uma paisagem desértica, lunar, onde a presença humana é prenunciada por ruídos de uma caravana.
Só depois começam a aparecer, como pontos indistintos, entre animais igualmente indistintos, os personagens conduzidos pelo ensandecido Vasco (Ruy Guerra). Entre eles, estão sua mulher grávida, Áurea (Fernanda Torres), e a mãe desta, Maria (Fernanda Montenegro).
É uma abertura esplêndida, que faz lembrar os inícios de filmes de Werner Herzog.
Nas seqüências seguintes, a caravana se dispersará (não convém aqui dizer como) e sobrarão apenas mãe e filha. Da gravidez de Áurea nascerá Maria, e as duas Fernandas passarão a se revezar nos papéis das três gerações de mulheres.
Perto de onde elas se instalam, num casebre condenado a ser soterrado mais cedo ou mais tarde pela areia, há uma comunidade de pescadores negros, descendentes de um quilombo. A ação começa em 1910 e termina em 1969, segundo se deduz de várias informações indiretas.
Pois um dos méritos de "Casa de Areia" é o de não mastigar as coisas para o público. Não há narração em "off", não há letreiros explicativos, não há diálogos redundantes. E sobretudo não há música rebarbativa, indutora de emoções.
Naquele mundo inóspito, imperam a elipse e o silêncio, rompido de quando em quando pelo uivo do vento. Respeita-se, assim, a sensibilidade do espectador, sua capacidade de preencher os espaços vazios com a própria imaginação -coisa rara no atual cinema brasileiro.
Há uma atmosfera de Gabriel García Márquez no destino insólito dessas mulheres. A própria repetição dos nomes Maria e Áurea remete aos Aurelianos e Josés Arcadios de "Cem Anos de Solidão".
Mas o fantástico permanece apenas como possibilidade não realizada. Waddington mantém-se firme na senda do realismo e de uma certa verossimilhança.
Talvez resida aí o calcanhar-de-aquiles do filme: é possível que o espectador contemporâneo resista a acreditar que aquelas mulheres não conseguiam sair daquele buraco -assim como talvez seja difícil acreditar em Luiz Melodia (ótimo no papel do pescador Massu na maturidade) como cônjuge de Fernanda Montenegro, dada a diferença de idade entre o cantor e a atriz.
Se essas coisas são problemas, são problemas menores, mesmo que porventura dificultem o êxito comercial do filme.
Jorge Luis Borges escreveu, num conto, que o deserto é o pior dos labirintos, porque dele não existe saída. É essa idéia que Waddington construiu visualmente: um labirinto horizontal (enfatizado pelo cinemascope), onde "o que não é chão é céu", como diz Fernanda Torres a certa altura, e onde os únicos pontos de referência verticais, não raro ínfimos, são as figuras humanas.
O que dá pleno sentido ao longa-metragem, entrelaçando o drama humano e a especulação filosófica, é a subtrama dos astrônomos que vão aos Lençóis Maranhenses fotografar estrelas durante um eclipse.
O diálogo entre Áurea e o romântico militar que conduz a expedição científica (Enrique Diaz) ecoa na conversa final entre mãe e filha e ilumina retrospectivamente tudo o que vimos: uma talvez defeituosa, mas muito bela, representação da idéia de que cada ser humano é um mundo, mas esse mundo, na escala do universo, é um magnífico nada.
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Casa de Areia
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Está tudo lá, sem tirar nem por uma única vírgula.
Então, justiça seja feita e, com a licença do colega, reproduzo o texto abaixo:
Waddington retrata deserto maranhense como labirinto cerrado
JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA
À primeira vista, "Casa de Areia" é um drama sobre três gerações de mulheres perdidas no fim do mundo -mais precisamente, nos Lençóis Maranhenses, Nordeste brasileiro.
Mas o filme pode ser visto também como um exercício audiovisual sobre a relatividade do tempo e do espaço. Ou sobre a pequenez humana em face da imensidão do cosmo.
Curiosamente, é nesses dois planos mais "complexos" que "Casa de Areia" parece se realizar de modo mais cabal. No plano do drama, é possível que o espectador ache que falta algo e não se sinta plenamente envolvido. Mas quem pode antever a reação dessa entidade abstrata e fugidia chamada "o espectador"?
O fato é que "Casa de Areia" é o filme mais pessoal e corajoso de Andrucha Waddington. Em seus longas anteriores -"Gêmeas", "Eu Tu Eles" e "Viva São João"-, a paisagem era mera moldura para uma encenação mais ou menos televisiva, mais ou menos teatral.
Aqui, o espaço é protagonista, agindo diretamente sobre o destino e o espírito dos personagens. Já as primeiras cenas são eloqüentes: o que se vê antes de tudo é uma vastidão de areia, uma paisagem desértica, lunar, onde a presença humana é prenunciada por ruídos de uma caravana.
Só depois começam a aparecer, como pontos indistintos, entre animais igualmente indistintos, os personagens conduzidos pelo ensandecido Vasco (Ruy Guerra). Entre eles, estão sua mulher grávida, Áurea (Fernanda Torres), e a mãe desta, Maria (Fernanda Montenegro).
É uma abertura esplêndida, que faz lembrar os inícios de filmes de Werner Herzog.
Nas seqüências seguintes, a caravana se dispersará (não convém aqui dizer como) e sobrarão apenas mãe e filha. Da gravidez de Áurea nascerá Maria, e as duas Fernandas passarão a se revezar nos papéis das três gerações de mulheres.
Perto de onde elas se instalam, num casebre condenado a ser soterrado mais cedo ou mais tarde pela areia, há uma comunidade de pescadores negros, descendentes de um quilombo. A ação começa em 1910 e termina em 1969, segundo se deduz de várias informações indiretas.
Pois um dos méritos de "Casa de Areia" é o de não mastigar as coisas para o público. Não há narração em "off", não há letreiros explicativos, não há diálogos redundantes. E sobretudo não há música rebarbativa, indutora de emoções.
Naquele mundo inóspito, imperam a elipse e o silêncio, rompido de quando em quando pelo uivo do vento. Respeita-se, assim, a sensibilidade do espectador, sua capacidade de preencher os espaços vazios com a própria imaginação -coisa rara no atual cinema brasileiro.
Há uma atmosfera de Gabriel García Márquez no destino insólito dessas mulheres. A própria repetição dos nomes Maria e Áurea remete aos Aurelianos e Josés Arcadios de "Cem Anos de Solidão".
Mas o fantástico permanece apenas como possibilidade não realizada. Waddington mantém-se firme na senda do realismo e de uma certa verossimilhança.
Talvez resida aí o calcanhar-de-aquiles do filme: é possível que o espectador contemporâneo resista a acreditar que aquelas mulheres não conseguiam sair daquele buraco -assim como talvez seja difícil acreditar em Luiz Melodia (ótimo no papel do pescador Massu na maturidade) como cônjuge de Fernanda Montenegro, dada a diferença de idade entre o cantor e a atriz.
Se essas coisas são problemas, são problemas menores, mesmo que porventura dificultem o êxito comercial do filme.
Jorge Luis Borges escreveu, num conto, que o deserto é o pior dos labirintos, porque dele não existe saída. É essa idéia que Waddington construiu visualmente: um labirinto horizontal (enfatizado pelo cinemascope), onde "o que não é chão é céu", como diz Fernanda Torres a certa altura, e onde os únicos pontos de referência verticais, não raro ínfimos, são as figuras humanas.
O que dá pleno sentido ao longa-metragem, entrelaçando o drama humano e a especulação filosófica, é a subtrama dos astrônomos que vão aos Lençóis Maranhenses fotografar estrelas durante um eclipse.
O diálogo entre Áurea e o romântico militar que conduz a expedição científica (Enrique Diaz) ecoa na conversa final entre mãe e filha e ilumina retrospectivamente tudo o que vimos: uma talvez defeituosa, mas muito bela, representação da idéia de que cada ser humano é um mundo, mas esse mundo, na escala do universo, é um magnífico nada.
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Casa de Areia
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10.5.05
cardápios e o bom cliente
É mais do que sabido o quão inútil é ir à pizzaria e lamentar que lá não se serve sushi.
É inútil ir a “Ninguém Pode Saber”, de Hirokazu Kore-Eda, e a “Um Filme Falado”, de Manoel de Oliveira, esperando “Cruzadas”. Ou esperando qualquer coisa. Nesse caso, vale avisar de antemão: não espere. Saboreie.
São dois mestres, que praticam cinemas formalmente distintos, mas sempre cinema.
Manoel de Oliveira faz um filme em tudo falado, que empreende uma história ilustrada das civilizações em sua primeira metade e traz toda a civilização para dentro de um navio na segunda. Não há uma trama, estrito modo, e sim uma construção simbólica de uma idéia. Oliveira trabalha com camadas de sugestão, enaltecendo um todo grandioso a partir de um pequeno núcleo particular.
Ele trabalha com mitos, todo o tempo, da Bíblia à História (essa de “H” maiúsculo), sugerindo uma reflexão acerca da evolução, das crenças e das fragilidades humanas. Ou, antes, acerca de como a fragilidade humana, aspecto primeiro e elementar de nossa constituição, é e foi escondida, sobreposta ou ressaltada ao longo da história da raça.
De como esse pequeno e vulnerável ser que é o homem construiu o mundo.
Mas “Um Filme Falado” não é palatável a qualquer platéia. Chamá-lo de difícil é subestimar a arte e o público. Melhor seria dizer que ele foge completamente a padrões cinematográficos banais. É prolixo, é bastante falado, de fato, é esteticamente pobre – mas nenhuma dessas afirmações é juízo de valor.
“Um Filme Falado” deve ser visto e aceito não porque Manoel de Oliveira é, ele próprio, um mito, um cineasta inatacável. Sua obra pode também ser frágil. Mas o caso aqui é lançar o olhar sobre a possibilidade, porque cinema é tudo isso, cinema é isso aí. Esse cinema é audaz em sua forma – exatamente por ser simples e nada “audacioso” – e rico em seus significados.
Hirokazu Kore-Eda, por sua vez, é autor de dois filmes magníficos que chegaram aos nossos olhos. “Maborosi” é um filme que registra fotograficamente o tempo – pense em quão deslumbrante isso pode ser. Já “Depois da Vida” faz uma das maiores declarações de amor ao cinema que se pode fazer, misturando sétima arte, vida, morte, luz, olhar e memória.
Se “Maborosi” era um filme operante em uma esfera espiritual e “Depois da Vida” em uma outra metafísica, “Ninguém Pode Saber” mantém os dois pés bem rentes ao chão. É de tons e tema realistas até a medula, mas com uma leveza onírica que deslumbra os olhos e acentua sua dor narrativa.
Construído com planos de uma simplicidade explosivamente tocante, “Ninguém Pode Saber” é uma casinha audiovisual que constrói a si mesma com vagar, beleza, elipses e, sem querer, muita força dramática.
Porque o universo infantil abordado é filmado de forma tão próxima que se fica contagiado de pureza e inocência. E a perda dessa inocência, a crueldade do mundo implodindo o pequeno apartamento e as pequenas vidas dá-se de forma discreta, cadenciada. Não há arroubos de naturalismo documental, não há câmeras trepidantes e diálogos “verdadeiros” no estilo “somos feios, sujos e malvados”.
Kore-Eda filma com elegância e sutileza desnorteantes uma história dura e triste. E nada deixa de ser menos real visto pelo olhar profundamente estético do diretor, como se poderia supor. Sua câmera está sempre próxima e nunca invasiva. O filme adentra o público pela fresta da beleza e comprime-o por dentro, pela agudez do sofrimento. A catarse é plena e bem feita.
Dizem que deus está nos detalhes. Em grande parte, Hirokazu Kore-Eda parece compactuar dessa opinião.
É inútil ir a “Ninguém Pode Saber”, de Hirokazu Kore-Eda, e a “Um Filme Falado”, de Manoel de Oliveira, esperando “Cruzadas”. Ou esperando qualquer coisa. Nesse caso, vale avisar de antemão: não espere. Saboreie.
São dois mestres, que praticam cinemas formalmente distintos, mas sempre cinema.
Manoel de Oliveira faz um filme em tudo falado, que empreende uma história ilustrada das civilizações em sua primeira metade e traz toda a civilização para dentro de um navio na segunda. Não há uma trama, estrito modo, e sim uma construção simbólica de uma idéia. Oliveira trabalha com camadas de sugestão, enaltecendo um todo grandioso a partir de um pequeno núcleo particular.
Ele trabalha com mitos, todo o tempo, da Bíblia à História (essa de “H” maiúsculo), sugerindo uma reflexão acerca da evolução, das crenças e das fragilidades humanas. Ou, antes, acerca de como a fragilidade humana, aspecto primeiro e elementar de nossa constituição, é e foi escondida, sobreposta ou ressaltada ao longo da história da raça.
De como esse pequeno e vulnerável ser que é o homem construiu o mundo.
Mas “Um Filme Falado” não é palatável a qualquer platéia. Chamá-lo de difícil é subestimar a arte e o público. Melhor seria dizer que ele foge completamente a padrões cinematográficos banais. É prolixo, é bastante falado, de fato, é esteticamente pobre – mas nenhuma dessas afirmações é juízo de valor.
“Um Filme Falado” deve ser visto e aceito não porque Manoel de Oliveira é, ele próprio, um mito, um cineasta inatacável. Sua obra pode também ser frágil. Mas o caso aqui é lançar o olhar sobre a possibilidade, porque cinema é tudo isso, cinema é isso aí. Esse cinema é audaz em sua forma – exatamente por ser simples e nada “audacioso” – e rico em seus significados.
Hirokazu Kore-Eda, por sua vez, é autor de dois filmes magníficos que chegaram aos nossos olhos. “Maborosi” é um filme que registra fotograficamente o tempo – pense em quão deslumbrante isso pode ser. Já “Depois da Vida” faz uma das maiores declarações de amor ao cinema que se pode fazer, misturando sétima arte, vida, morte, luz, olhar e memória.
Se “Maborosi” era um filme operante em uma esfera espiritual e “Depois da Vida” em uma outra metafísica, “Ninguém Pode Saber” mantém os dois pés bem rentes ao chão. É de tons e tema realistas até a medula, mas com uma leveza onírica que deslumbra os olhos e acentua sua dor narrativa.
Construído com planos de uma simplicidade explosivamente tocante, “Ninguém Pode Saber” é uma casinha audiovisual que constrói a si mesma com vagar, beleza, elipses e, sem querer, muita força dramática.
Porque o universo infantil abordado é filmado de forma tão próxima que se fica contagiado de pureza e inocência. E a perda dessa inocência, a crueldade do mundo implodindo o pequeno apartamento e as pequenas vidas dá-se de forma discreta, cadenciada. Não há arroubos de naturalismo documental, não há câmeras trepidantes e diálogos “verdadeiros” no estilo “somos feios, sujos e malvados”.
Kore-Eda filma com elegância e sutileza desnorteantes uma história dura e triste. E nada deixa de ser menos real visto pelo olhar profundamente estético do diretor, como se poderia supor. Sua câmera está sempre próxima e nunca invasiva. O filme adentra o público pela fresta da beleza e comprime-o por dentro, pela agudez do sofrimento. A catarse é plena e bem feita.
Dizem que deus está nos detalhes. Em grande parte, Hirokazu Kore-Eda parece compactuar dessa opinião.
6.5.05
Corpos
"Titânio" é belo espetáculo encenado por Fernando Kinas, com Simone Spoladore e Lori Santos.
Belo e desafiador e dolorido.
"Titânio" dedica-se a pensar um pouco sobre o imenso afeto e a imensa brutalidade que se encerram no que é (se for) aquilo que chamam amor.
[Você pensa que é fácil?]
Mas não só. "Titânio" fala também:
"O teatro é uma forma de luta contra a cultura de massa.
O teatro é atual porque é anacrônico.
Os corpos dos atores e os corpos dos espectadores não podem ser fabricados em série."
E sabe por quê? Porque nada substitui a união dos corpos.
Lenine, Lirinha e Otto misturando "Alzira na Torre" com "Da Lama ao Caos", agora há pouco, no palco do Directv Music Hall, é irreprodutível. Quem esteve lá, viu.
Quem esteve lá sentiu essa energia tão vital e tão cada vez mais rara da união (gloriosa) dos corpos.
Quem esteve em casa vendo novela sentiu, no máximo, sono.
Belo e desafiador e dolorido.
"Titânio" dedica-se a pensar um pouco sobre o imenso afeto e a imensa brutalidade que se encerram no que é (se for) aquilo que chamam amor.
[Você pensa que é fácil?]
Mas não só. "Titânio" fala também:
"O teatro é uma forma de luta contra a cultura de massa.
O teatro é atual porque é anacrônico.
Os corpos dos atores e os corpos dos espectadores não podem ser fabricados em série."
E sabe por quê? Porque nada substitui a união dos corpos.
Lenine, Lirinha e Otto misturando "Alzira na Torre" com "Da Lama ao Caos", agora há pouco, no palco do Directv Music Hall, é irreprodutível. Quem esteve lá, viu.
Quem esteve lá sentiu essa energia tão vital e tão cada vez mais rara da união (gloriosa) dos corpos.
Quem esteve em casa vendo novela sentiu, no máximo, sono.
4.5.05
25.4.05
do DVD
“O Espanta Tubarões”, ao contrário de “Formigaz”, “Vida de Inseto” ou o inigualável “Procurando Nemo”, não traduz o mundo humano para um determinado habitat, optando por copiá-lo. Colocam-se, simplesmente, os peixes vivendo em uma civilização subaquática humana. Por que um peixe usaria elevador ou moraria em um edifício, mesmo no terreno da fantasia?
Mas não é só isso que esvazia sua força de sugestão e seu humor. Apesar do peixe-bolha de Martin Scorcese, não há grandes personagens, nem muito charme, nem sacadas de roteiro que tirem essa animação do terreno da diversão ligeira.
Para um fim de noite em feriado, na companhia de amigos, diverte. Mas, até aí, novelas também.
/
“Sob o Domínio do Mal” coloca bons atores a serviço de uma trama rocambolesca em excesso. Não há credibilidade suficiente na conspiração armada na narrativa, o que faz a tensão cair em descrédito aos olhos do espectador e faz a agulhada política embaralhar-se e doer menos do que poderia (em quem tem que doer, leia-se George W Bush).
Mas, para assistir no feriado, com amigos já um tanto dispersos, não é entediante. Nem ruim. Só fica aquém de suas possibilidades.
/
“Respiro” é um retrato em fotografia estonteante de uma sociedade arcaica. Em uma ilha na Sicília italiana, homens vivem relações emocionais brutas em uma civilização de economia simples e modernidade nula.
É uma pena que Valeria Golino seja atriz sem carisma, sem técnica e sem personalidade para segurar o papel de demônio e mártir desse núcleo familiar e social pedregoso. A loucura e o descontrole de sua personagem emergem (ou flutuam) como verdadeiro respiro na rudeza e limitação de pessoas aprisionadas (não necessariamente para o mal) em suas próprias vidas. Mas falta atriz para que a sucessão de belas imagens e algumas fascinantes cenas alcance o esplendor da tessitura poética e deixe de ser apenas belas imagens e algumas fascinantes cenas.
Para o feriado, com parte dos amigos, é sobremesa para os olhos.
Mas não é só isso que esvazia sua força de sugestão e seu humor. Apesar do peixe-bolha de Martin Scorcese, não há grandes personagens, nem muito charme, nem sacadas de roteiro que tirem essa animação do terreno da diversão ligeira.
Para um fim de noite em feriado, na companhia de amigos, diverte. Mas, até aí, novelas também.
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“Sob o Domínio do Mal” coloca bons atores a serviço de uma trama rocambolesca em excesso. Não há credibilidade suficiente na conspiração armada na narrativa, o que faz a tensão cair em descrédito aos olhos do espectador e faz a agulhada política embaralhar-se e doer menos do que poderia (em quem tem que doer, leia-se George W Bush).
Mas, para assistir no feriado, com amigos já um tanto dispersos, não é entediante. Nem ruim. Só fica aquém de suas possibilidades.
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“Respiro” é um retrato em fotografia estonteante de uma sociedade arcaica. Em uma ilha na Sicília italiana, homens vivem relações emocionais brutas em uma civilização de economia simples e modernidade nula.
É uma pena que Valeria Golino seja atriz sem carisma, sem técnica e sem personalidade para segurar o papel de demônio e mártir desse núcleo familiar e social pedregoso. A loucura e o descontrole de sua personagem emergem (ou flutuam) como verdadeiro respiro na rudeza e limitação de pessoas aprisionadas (não necessariamente para o mal) em suas próprias vidas. Mas falta atriz para que a sucessão de belas imagens e algumas fascinantes cenas alcance o esplendor da tessitura poética e deixe de ser apenas belas imagens e algumas fascinantes cenas.
Para o feriado, com parte dos amigos, é sobremesa para os olhos.
18.4.05
DE VOLTA AO SAMBA (teatral) - pensou que eu não vinha mais, pensou?
De volta ao teatro, duas vezes por semana, como deve ser (regularidade que, espero, possa perdurar).
:
“Coda” é uma proposta e uma experiência. É daqueles convites para se liquidificar todas as expectativas e pré-conceitos sobre uma determinada forma de arte, porque já se sabe (ou se deveria saber) que não vai sobrar quase nada do convencional. Experiências como essas, “vanguardistas” (essa palavra ainda existe, meu deus?!) fazem, necessariamente, um dos seguintes efeitos: ou bem descortinam toda uma nova perspectiva de percepção, revelando possibilidades antes pouco percebidas, ou colocam em questão os limites dos veículos artísticos, despertando o faro para a linha separatista de dicotomias como a genialidade e o blefe, a inovação e o vazio.
Simplificando, não é susto nem descabimento alguém sair de “Coda” achando tudo chatíssimo e sem propósito. Tampouco é surpreendente ou inexplicável que o espectador tenha, de fato, algumas de suas sensibilidades renovadas. Porque esse é daqueles espetáculos que são mesmo um chacoalho – colocam conceitos e convenções na mira, saraivando-os até.
Se eu gostei?
Ainda não decidi.
;
Não é de hoje que a poeta Elisa Lucinda ocupa lugar de apreço em minhas preferências. No entanto, com “Parem de Falar Mal da Rotina”, imperdível espetáculo até dia 01 de maio em cartaz, a atriz/comunicadora/mulher/poeta Elisa Lucinda alargou seu espaço dentro das cavidades nem sempre tateáveis da minha sensibilidade.
Porque conhecer Elisa (somente) através de seus textos é deliciar-se com um tino aguçado para o ritmo, a melodia, o sabor das palavras. É compartilhar de visões simples – e nunca simplificadas - e muito bem expressas acerca do cotidiano, do amor, do mundo, dos seres. Ler a obra de Elisa Lucinda é a partir do mínimo chegar ao todo e, dessa forma, de volta ao essencial.
Mas vê-la no palco é bem outra história. Porque ela conduz esse “one-womam-show” com um molejo, uma simpatia, um talento para a palavra e uma facilidade para o humor que só tornam ainda mais contagiantes a sua intensa alegria de viver, de escrever, de estar em cena e de compartilhar.
Porque nada substitui a união dos corpos.
Elisa Lucinda possui, hoje, atualmente, ontem, no palco do Teatro Augusta, uma espontaneidade e uma energia impressionantes. Entre ela e a platéia faísca. E é dessa troca tão sincera e direta que o teatro é feito, que a arte é feita.
Você não conhece Elisa Lucinda?
Corra.
/
“Reencarnação” é um filme maior que si.
Porque Jonathan Glazer propõe uma premissa absolutamente fascinante e leva-a a cabo com impressionante capacidade de construção de climas, com pesados e ricos silêncios, com atores competentíssimos.
Nicole Kidman, por exemplo, ganhou de presente uma personagem que é tão complexa, mas tão complexa, que é acerto máximo da direção rondá-la cuidadosamente, sem tentativas rasas de “aprofundamento”. É vital que seu mistério, sua dúvida, seus pensamentos largamente questionáveis fiquem na grandeza do não-dito. Extravasamento em lágrimas e gritaria seriam sua ruína total.
Mas “Reencarnação”, com tanta pegada em seus 2 primeiros terços, não sabe concluir sua trama com a mesma maestria com que a propõe. E dizer que a culpa é dos realizadores talvez não seja o caso. Porque fosse qual fosse a conclusão desta bela história, ela dificilmente deixaria de soar inverossímil ou simplesmente boba.
Nesse sentido, a parte final do filme ser “ruim” é quase uma inverdade. Porque “boa”, de fato, ela não é. Mas seria “ruim” por que exatamente? Porque traz para a objetividade “explicativa” e comezinha uma trama que, sem tirar os pés do chão, habitava de forma inebriante o metafísico? Porque soluciona o insolucionável?
Mas fica, como boa lembrança, o oceano de conflito interior que é a Anna de Nicole Kidman. Sem que tenhamos que ter seus atos explicados, como os de seu co-protagonista mirim, entendemos tudo. Ou, antes, compartilhamos plenamente de sua não-compreensão, de seu estupefato e da violenta maré de sentimentos tumultuosos que nela residem.
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“Coda” é uma proposta e uma experiência. É daqueles convites para se liquidificar todas as expectativas e pré-conceitos sobre uma determinada forma de arte, porque já se sabe (ou se deveria saber) que não vai sobrar quase nada do convencional. Experiências como essas, “vanguardistas” (essa palavra ainda existe, meu deus?!) fazem, necessariamente, um dos seguintes efeitos: ou bem descortinam toda uma nova perspectiva de percepção, revelando possibilidades antes pouco percebidas, ou colocam em questão os limites dos veículos artísticos, despertando o faro para a linha separatista de dicotomias como a genialidade e o blefe, a inovação e o vazio.
Simplificando, não é susto nem descabimento alguém sair de “Coda” achando tudo chatíssimo e sem propósito. Tampouco é surpreendente ou inexplicável que o espectador tenha, de fato, algumas de suas sensibilidades renovadas. Porque esse é daqueles espetáculos que são mesmo um chacoalho – colocam conceitos e convenções na mira, saraivando-os até.
Se eu gostei?
Ainda não decidi.
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Não é de hoje que a poeta Elisa Lucinda ocupa lugar de apreço em minhas preferências. No entanto, com “Parem de Falar Mal da Rotina”, imperdível espetáculo até dia 01 de maio em cartaz, a atriz/comunicadora/mulher/poeta Elisa Lucinda alargou seu espaço dentro das cavidades nem sempre tateáveis da minha sensibilidade.
Porque conhecer Elisa (somente) através de seus textos é deliciar-se com um tino aguçado para o ritmo, a melodia, o sabor das palavras. É compartilhar de visões simples – e nunca simplificadas - e muito bem expressas acerca do cotidiano, do amor, do mundo, dos seres. Ler a obra de Elisa Lucinda é a partir do mínimo chegar ao todo e, dessa forma, de volta ao essencial.
Mas vê-la no palco é bem outra história. Porque ela conduz esse “one-womam-show” com um molejo, uma simpatia, um talento para a palavra e uma facilidade para o humor que só tornam ainda mais contagiantes a sua intensa alegria de viver, de escrever, de estar em cena e de compartilhar.
Porque nada substitui a união dos corpos.
Elisa Lucinda possui, hoje, atualmente, ontem, no palco do Teatro Augusta, uma espontaneidade e uma energia impressionantes. Entre ela e a platéia faísca. E é dessa troca tão sincera e direta que o teatro é feito, que a arte é feita.
Você não conhece Elisa Lucinda?
Corra.
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“Reencarnação” é um filme maior que si.
Porque Jonathan Glazer propõe uma premissa absolutamente fascinante e leva-a a cabo com impressionante capacidade de construção de climas, com pesados e ricos silêncios, com atores competentíssimos.
Nicole Kidman, por exemplo, ganhou de presente uma personagem que é tão complexa, mas tão complexa, que é acerto máximo da direção rondá-la cuidadosamente, sem tentativas rasas de “aprofundamento”. É vital que seu mistério, sua dúvida, seus pensamentos largamente questionáveis fiquem na grandeza do não-dito. Extravasamento em lágrimas e gritaria seriam sua ruína total.
Mas “Reencarnação”, com tanta pegada em seus 2 primeiros terços, não sabe concluir sua trama com a mesma maestria com que a propõe. E dizer que a culpa é dos realizadores talvez não seja o caso. Porque fosse qual fosse a conclusão desta bela história, ela dificilmente deixaria de soar inverossímil ou simplesmente boba.
Nesse sentido, a parte final do filme ser “ruim” é quase uma inverdade. Porque “boa”, de fato, ela não é. Mas seria “ruim” por que exatamente? Porque traz para a objetividade “explicativa” e comezinha uma trama que, sem tirar os pés do chão, habitava de forma inebriante o metafísico? Porque soluciona o insolucionável?
Mas fica, como boa lembrança, o oceano de conflito interior que é a Anna de Nicole Kidman. Sem que tenhamos que ter seus atos explicados, como os de seu co-protagonista mirim, entendemos tudo. Ou, antes, compartilhamos plenamente de sua não-compreensão, de seu estupefato e da violenta maré de sentimentos tumultuosos que nela residem.
15.4.05
CINEMATOGRÁFICAS 6 - uma questão de roteiro
Agnès Jaoui e Jean-Pierre Bacri são tidos como especialistas em roteiro. A tal ponto que Alain Resnais os convoca para que escrevam para ele. A tal ponto que levam, fácil, fácil, o prêmio de melhor roteiro em Cannes.
E o premiado é esse “Questão de Imagem”, agora em cartaz, que plenamente corrobora a reputação de casal de roteiristas.
Porque Agnès Jaoui e Jean-Pierre Bacri sabem plenamente como eleger uma idéia e criar alguns personagens riquíssimos para desenvolvê-la. Sabem (re) criar um punhado de situações inusitadas e bastante atípicas (no cinema) por serem absolutamente comuns (na vida). Sabem escrever ótimos diálogos, de inteligência simples e humor certeiro. Sabem perfeitamente como amarrar as pontas de uma história, como encadear sub-tramas e desenvolvê-las, unindo-as em um todo coeso e coerente. E, principalmente, sabem que o drama da vida rende sempre uma ótima comédia.
Os títulos de seus filmes resumem tudo, sem revelar nada. Depois da projeção, as palavras “O Gosto dos Outros”, filme anterior roteirizado pela dupla, e “Questão de Imagem” não só adquirem ambivalências e perspectivas como amarram com perfeição o conceito abordado.
Vale dizer que, longe de serem formulaicos, seus filmes possuem uma cara – ou, antes, uma “personalidade”. Melhor que entre essas características bem definidas estejam, além do já mencionado, atores com incrível capacidade para a comédia dramática (incluindo os próprios Agnès Jaoui e Jean-Pierre Bacri) e uma direção (de Jaoui, somente) capaz de transmitir uma humanidade nos personagens e um senso de realismo raros – para o que essa mesma direção é, imageticamente, limpa, a serviço da trama.
Afinal, se o negócio aqui é o roteiro, para que “estragá-lo” com imagens, né mesmo?
/
“Quase Dois Irmãos”, filme que recebe elogios e indiferença com a mesma intensidade, tem, sim, mais méritos do que problemas. Não que esses últimos não abundem. Há passagens de roteiro “roteirizadas” demais (ah, que falta que faz a capacidade de realismo cinematográfico de uma Agnès Jaoui), diálogos ruins no papel e mal conduzidos na tela.
Mas como falar mal dos colegas nunca foi elegante, vale ater-se ao que o filme de Lucia Murat tem de melhor. Ele foge de estigmas visuais da teledramaturgia. Ele tem uma cadência em seu encadeamento temporal bastante interessante, fluída. Tem um tema mais do que pertinente. Tem alguns bons atores.
E é um filme de pulso, para dizer o mínimo. Uma história de desagravo, de incômodo. Não vem para divertir, nem vem com lenga-lenga asséptica de roteiros “de bem com a vida” (alguém aí disse “A Dona da História”?). Nem com seriedade história ridiculamente solene (“Olga”, alguém?).
(Quem foi que disse que falar mal dos colegas não era elegante?)
Bem, ao que interessa: “Quase Dois Irmão” é filme louvável. E não só porque o nível geral é péssimo fazendo-nos aceitar o imperfeito com espanto. É filme bom de fato, que resiste a uma segunda olhada, que se comunica bem com o público em geral e que tem uma certa força, até mesmo nos seus erros.
E o premiado é esse “Questão de Imagem”, agora em cartaz, que plenamente corrobora a reputação de casal de roteiristas.
Porque Agnès Jaoui e Jean-Pierre Bacri sabem plenamente como eleger uma idéia e criar alguns personagens riquíssimos para desenvolvê-la. Sabem (re) criar um punhado de situações inusitadas e bastante atípicas (no cinema) por serem absolutamente comuns (na vida). Sabem escrever ótimos diálogos, de inteligência simples e humor certeiro. Sabem perfeitamente como amarrar as pontas de uma história, como encadear sub-tramas e desenvolvê-las, unindo-as em um todo coeso e coerente. E, principalmente, sabem que o drama da vida rende sempre uma ótima comédia.
Os títulos de seus filmes resumem tudo, sem revelar nada. Depois da projeção, as palavras “O Gosto dos Outros”, filme anterior roteirizado pela dupla, e “Questão de Imagem” não só adquirem ambivalências e perspectivas como amarram com perfeição o conceito abordado.
Vale dizer que, longe de serem formulaicos, seus filmes possuem uma cara – ou, antes, uma “personalidade”. Melhor que entre essas características bem definidas estejam, além do já mencionado, atores com incrível capacidade para a comédia dramática (incluindo os próprios Agnès Jaoui e Jean-Pierre Bacri) e uma direção (de Jaoui, somente) capaz de transmitir uma humanidade nos personagens e um senso de realismo raros – para o que essa mesma direção é, imageticamente, limpa, a serviço da trama.
Afinal, se o negócio aqui é o roteiro, para que “estragá-lo” com imagens, né mesmo?
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“Quase Dois Irmãos”, filme que recebe elogios e indiferença com a mesma intensidade, tem, sim, mais méritos do que problemas. Não que esses últimos não abundem. Há passagens de roteiro “roteirizadas” demais (ah, que falta que faz a capacidade de realismo cinematográfico de uma Agnès Jaoui), diálogos ruins no papel e mal conduzidos na tela.
Mas como falar mal dos colegas nunca foi elegante, vale ater-se ao que o filme de Lucia Murat tem de melhor. Ele foge de estigmas visuais da teledramaturgia. Ele tem uma cadência em seu encadeamento temporal bastante interessante, fluída. Tem um tema mais do que pertinente. Tem alguns bons atores.
E é um filme de pulso, para dizer o mínimo. Uma história de desagravo, de incômodo. Não vem para divertir, nem vem com lenga-lenga asséptica de roteiros “de bem com a vida” (alguém aí disse “A Dona da História”?). Nem com seriedade história ridiculamente solene (“Olga”, alguém?).
(Quem foi que disse que falar mal dos colegas não era elegante?)
Bem, ao que interessa: “Quase Dois Irmão” é filme louvável. E não só porque o nível geral é péssimo fazendo-nos aceitar o imperfeito com espanto. É filme bom de fato, que resiste a uma segunda olhada, que se comunica bem com o público em geral e que tem uma certa força, até mesmo nos seus erros.
10.4.05
Bethânias cheias de graça e a arte de atuar (Maria, Catalina e Annette)
“Tempo tempo tempo tempo” não faz jus absoluto à artista que é Maria Bethânia, mas tampouco a envergonha . Ao contrário do que se diz, o show não é um tédio ondulante, não se dorme, não se sente sono, não se odeia a si próprio por estar ali.
Sim, o cenário trabalha contra a mise-en-scène, sim, os arranjos redundam. Mas Bethânia é Bethânia, faz o que faz muito bem. Há momentos empolgantes, há momentos realmente muito bonitos, há escolhas acertadas, há faíscas de emoção.
E Maria Bethânia está linda, na juventude de seus quase 60 anos. E está feliz, canta com prazer e ocupa o palco com a propriedade de quem está fazendo aquilo que melhor sabe fazer – ainda que este “aquilo” possa não bastar para alguns. Bethânia é um bicho em cena, uma força vital contagiante e de controladíssimo descontrole, de extravasamento bem ensaiado mas nem por isso menos eletrizante.
É rainha sem equivalentes de um tipo de interpretação e de um tipo de espetáculo. Que vai e volta, rodopia, ocupa melhor ou pior seu espaço eterno no tempo presente, mas nunca cai. Sai-se de lá querendo devolver a Maria Bethânia a benção que ela pede à platéia, por estar, aos 40 anos de carreira, “só começando”.
Porque todos querem, pra bem ou mal, que Maria Bethânia continue sendo Maria Bethânia. E por ser uma das poucas artistas da música que administram tal proeza, ama-se Maria Bethânia querendo ser Maria Bethânia com a plena satisfação da frustração de saber o quão difícil é ser Maria Bethânia.
Maria Bethânia é uma das mais espetaculares atrizes de si mesma.
(Quando você me entendeu, eu não entendia nada. Seu olho me olha, mas não me pode alcançar).
/
Outra Maria, a “Maria Cheia de Graça” agora nos cinemas, também merece uma olhada. Construído de forma seca e com estética irmã da trama que narra, este longa metragem de estréia de Joshua Marston é tenso e bem pensado. Toma para si, com propriedade e sem espalhafato, a idéia religiosa de uma jovem predestinada a carregar algo glorioso em seu ventre. Aqui, no caso, o ventre maculado carrega a salvação que é desgraça que é salvação.
É um comentário político, sócio-econômico e bastante humano. Bom.
Catalina Sandino Moreno, indicada ao Oscar, tem uma atuação em tom contido – é um sussurro. Faz muito, fazendo pouco. Seu olhar e sua expressão de revoltada resignação traduzem e demonstram seus conflitos internos premidos pela conjuntura externa que a bamboleia.
/
“Adorável Júlia” rodopia, não cai por pouco, alterna achados com preguiças dramáticas. A história faz que vai, fica, e eleva-se com um clímax simplista, porém divertido. E o teatro no cinema, para quem gosta, sempre tem seus diminutos prazeres.
Annette Bening, indicada ao Oscar, tem atuação larga. Surge com histrionismo e caretas, mas vai contornando suas intenções com cuidado e surpreendendo ao longo da projeção. Nos bons momentos, Julia é seu personagem mais humanizado, mais adequadamente desenhado. Tem tessituras fortes. É um grito - mas um bem dado.
Sim, o cenário trabalha contra a mise-en-scène, sim, os arranjos redundam. Mas Bethânia é Bethânia, faz o que faz muito bem. Há momentos empolgantes, há momentos realmente muito bonitos, há escolhas acertadas, há faíscas de emoção.
E Maria Bethânia está linda, na juventude de seus quase 60 anos. E está feliz, canta com prazer e ocupa o palco com a propriedade de quem está fazendo aquilo que melhor sabe fazer – ainda que este “aquilo” possa não bastar para alguns. Bethânia é um bicho em cena, uma força vital contagiante e de controladíssimo descontrole, de extravasamento bem ensaiado mas nem por isso menos eletrizante.
É rainha sem equivalentes de um tipo de interpretação e de um tipo de espetáculo. Que vai e volta, rodopia, ocupa melhor ou pior seu espaço eterno no tempo presente, mas nunca cai. Sai-se de lá querendo devolver a Maria Bethânia a benção que ela pede à platéia, por estar, aos 40 anos de carreira, “só começando”.
Porque todos querem, pra bem ou mal, que Maria Bethânia continue sendo Maria Bethânia. E por ser uma das poucas artistas da música que administram tal proeza, ama-se Maria Bethânia querendo ser Maria Bethânia com a plena satisfação da frustração de saber o quão difícil é ser Maria Bethânia.
Maria Bethânia é uma das mais espetaculares atrizes de si mesma.
(Quando você me entendeu, eu não entendia nada. Seu olho me olha, mas não me pode alcançar).
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Outra Maria, a “Maria Cheia de Graça” agora nos cinemas, também merece uma olhada. Construído de forma seca e com estética irmã da trama que narra, este longa metragem de estréia de Joshua Marston é tenso e bem pensado. Toma para si, com propriedade e sem espalhafato, a idéia religiosa de uma jovem predestinada a carregar algo glorioso em seu ventre. Aqui, no caso, o ventre maculado carrega a salvação que é desgraça que é salvação.
É um comentário político, sócio-econômico e bastante humano. Bom.
Catalina Sandino Moreno, indicada ao Oscar, tem uma atuação em tom contido – é um sussurro. Faz muito, fazendo pouco. Seu olhar e sua expressão de revoltada resignação traduzem e demonstram seus conflitos internos premidos pela conjuntura externa que a bamboleia.
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“Adorável Júlia” rodopia, não cai por pouco, alterna achados com preguiças dramáticas. A história faz que vai, fica, e eleva-se com um clímax simplista, porém divertido. E o teatro no cinema, para quem gosta, sempre tem seus diminutos prazeres.
Annette Bening, indicada ao Oscar, tem atuação larga. Surge com histrionismo e caretas, mas vai contornando suas intenções com cuidado e surpreendendo ao longo da projeção. Nos bons momentos, Julia é seu personagem mais humanizado, mais adequadamente desenhado. Tem tessituras fortes. É um grito - mas um bem dado.
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